Uma questão de gênero? A diferença sexual como valor no discurso histórico acerca da histeria

AutorGleisson Roberto Schmidt
CargoDoutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas67-84
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/1984-8951.2013v14n104p67
Uma questão de gênero? A diferença sexual como valor no
discurso histórico acerca da histeria
One matter of gender? The sexual difference as a value in the
history of hysteria
Gleisson Roberto Schmidt1
Resumo
Contemporaneamente, vários autores têm se debruçado sobre o tema da
“objetividade” da ciência e dos valores científicos. A questão mais básica é a da
existência de valores em curso na prática, métodos e produtos da ciência. Este
artigo pretende apresentar o discurso histórico acerca da histeria como uma teoria
nosológica pautada por valores, sendo estes tanto sociais quanto cognitivos, cuja
inter-relação íntima interroga a tese acerca da objetividade dos valores epistêmicos.
A histeria afigura, assim, como um exemplo de teoria médico-científica na qual,
valores sociais (nomeadamente: valores políticos e religiosos que institucionalizaram
uma diferença de gênero) influenciaram decisivamente ora a recusa da existência da
entidade mórbida, ora sua descrição e tratamento. Tamanha foi a força dos valores
sociais nas teorias etiopatológicas da histeria que, até mesmo na teoria psicanalítica,
se ela já não é mais descrita como uma “doença das mulheres”, ainda o continua
sendo como “sofrimento do feminino”.
Palavras-chave: Nosologia da histeria. Diferença sexual. Valores sociais. Freud.
Abstract
Contemporaneously, several authors have been addressing the issue of ‘objectivity’
of science and scientific values. The most basic question is the existence of values in
the current practice, methods and products of science. This article intend to present
the historical discourse about hysteria as a nosological theory guided by values
which are, at the same time, social and cognitive values, and whose intimate
interrelation casts doubt on the thesis of the objectivity of epistemic values.
Therefore, the hysteria stands as an example of medical-scientific theory in which
social values (including political and religious values that have institutionalized a
gender difference) decisively influenced sometimes the rejection of the existence of
the disease entity and sometimes its description and treatment. Such it was the
strength of social values in the etiopathological theories of hysteria that even in the
psychoanalytic theory, if it is no longer described as a ‘disease of women’, it still
remains as a ‘female suffering’.
Keywords: Nosology of hysteria. Sexual difference. Social values. Freud.
1 Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina. Professor da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná. E-mail: gleisson.schmidt@gmail.com.
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não Adaptada.
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Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s., Florianópolis, v.14, n.104, p.67-84, jan/jun 2013
Contemporaneamente, muitos autores têm se debruçado sobre o tema da
“objetividade” da ciência e dos valores científicos. A questão mais básica é a da
existência de valores em curso na prática, nos métodos e nos produtos da ciência.
Questionam ainda se objetividade e neutralidade científicas são sinônimas, ou se
haveria uma dissociação entre elas. Outros se detêm sobre o problema da inter-
relação entre valores sociais ou morais e valores cognitivos: existe uma influência
mútua entre eles? Se sim, sob qual vetor? Valores sociais/morais compõem o
escopo dos assim chamados valores epistêmicos, ou são estes que influem nos
valores da sociedade?
Um desses autores é o australiano Hugh Lacey (1998). Opondo-se à tese
historicamente consagrada segundo a qual a ciência seria um domínio estéril ao
subjetivismo do discurso valorativo (em outras palavras, a ciência se pautaria pela
objetividade, enquanto que o discurso ético seria essencialmente subjetivo), Lacey
(1998) afirma a objetividade dos valores (compreendidos no amplo espectro que
inclui os valores morais ou sociais). Essa objetividade tem sua origem na
socialização dos mesmos, pela via da institucionalização ou em virtude da sua
predominância em determinada sociedade.2 É essa objetividade consensual dos
valores que permite avaliar o que seria um “juízo científico correto”, não a partir de
um conjunto de regras, mas “por meio do diálogo entre os membros da comunidade
2 Em “Para uma análise dos valores” (1998), após introduzir o pro blema da polissemia da palavra
“valor”, Lacey descreve a origem dos valores pessoais e sua inter-relação com os valores sociais.
Afirma que os valores pessoais são “dialeticamente tanto produtos quanto p ontos de referência de
processos com os quais nós refletimos e avaliam os nossos desejos” (LACEY, 1998, p. 40), desej os
acerca do futuro (LACEY, 1998, p. 47) e que, relacionados a crenças pessoais ou coletivas,
constituem uma parte essencial da explicação da vida prática. Desejos e crenças constituem, então, a
“fonte” dos valores pessoais. Sustentar tais valores envolve “o desejo de segunda ordem, o qual
representa um dos objetivos fundamentais de uma pessoa, de que os desejos de primeira ordem (que
levam à ação, diferentemente de meramente sentidos) sejam ou se tornem das espécies que levam a
ações que moldam ou produzem uma vida caracterizada por certa qualidade (pela participação em
certa prática, ou pela relação adequada com determinado objeto de valor) que caracteriza uma vida
realizada (boa, repleta de significado, bem vivida), e que é parcialmente constitutiva da identidade de
alguém)” (LACEY, 1998, p. 40). Vividos e manifestados no comportamento do indivíduo ou grupo
social, tais “desejos de segunda ordem” podem ser incorporados em instituições sociais ou na
sociedade como um todo daí a articulação dos valores pessoais com os valores sociais. Entre
ambos há “uma relação estreita” (LACEY, 1998, p. 43), bem como entre os valores pessoais e
aqueles articulados pelas instituições dominantes na sociedade. Nesta teia (em nada determinista,
com certeza, mas dialética), observamos a possibilidade do “retorno” dos valores sobre as próprias
crenças e desejos do indivíduo: se por um lado estes elementos modulam os valores exercitados na
vida prática podendo institucionalizá-los ou transformá-los em valores sociais, por outro, esses
mesmos valores sociais podem se voltar sobre os indivíduos, moldando suas crenças e desejos.

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