Corrupção Pública: uma Pandemia Nacional

AutorGustavo Senna Miranda
CargoPromotor de Justiça; Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Professor da FDV
Páginas225-261

Page 225

Introdução

“Se o único ideal dos homens é a busca da felicidade pessoal, por meio do acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída”.

HOBSBAWM, Eric.

É inquestionável que a Administração Pública exerce um papel fundamental para preservação do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Realmente, da Administração Pública depende a concretização de direitos sociais fundamentais, como saúde, educação, alimentação, trabalho, habitação, lazer, segurança publica, enfim, direitos essenciais para a própria sobrevivência humana, com o mínimo de dignidade.

Nesse sentido, a concretização de tais direitos é incompatível com uma administração desonesta e negligente. Fundamental, portanto, que todo agente público – desde o do mais alto escalão até o mais baixo – atue com observância irrestrita aos princípios que regem a boa Administração Pública, não sendo por outro sentido que foram eles cristalizados no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988, regra que serve de norte para o administrador público – em sentido amplo -, da qual não pode se afastar, sob pena de sacrificar vários direitos fundamentais.

Assim, um dos mais graves problemas enfrentados pela coletividade é justamente o de garantir uma administração proba, o que atualmente parece ser uma utopia, vez que diuturnamente a população brasileira testemunha, estarrecida, inúmeros escândalos de corrupção envolvendo agentes públicos e políticos de diversosPage 226 escalões, que agem de forma a capturar o Estado fazendo com que ele funcione a seu favor, numa total inversão de valores, que aumenta ainda mais o abismo social, exterminando direitos essenciais da população, deixando o Brasil numa triste posição no cenário mundial: de um País com um dos mais altos índices de desigualdade social, com diversas regiões entre aquelas com o menor índice de desenvolvimento humano do planeta.

O Quadro realmente é desanimador. Vive o sofrido povo brasileiro uma verdadeira era de desencantos. Porém, não há como aceitar passivamente esse quadro de desolação, de descaso com a coisa pública. Com efeito, os atos caracterizadores de improbidade administrativa, pelos seus efeitos deletérios, devem ser controlados e combatidos com a máxima efetividade, vez que representam grande risco para a manutenção do próprio Estado Democrático de Direito, mormente através de uma de suas faces mais perversa: a corrupção, cujo combate tem que estar enraizado no coração e na mente de cada um, e que, de forma metafórica, é como um “cano de água” quando em seu percurso há diversos furos, o que importa em desperdício de uma necessidade vital da pessoa humana.

Frise-se que o combate à corrupção não é discurso demagógico. É lógico que medidas preventivas devem ser pensadas. Porém, não se pode olvidar de medidas repressivas, a fim de que não se generalize uma sensação de impunidade. Não por outra razão que o sancionamento dos atos de improbidade administrativa é inegavelmente um dos comandos da atual Constituição Federal, como se percebe pelo seu art. 37, § 4, que determina a punição de tais condutas com graves sanções, o que foi regulamentado através de uma das leis mais importantes para a concretização dos direitos sociais: a Lei nº 8.429/1992, que tipifica os atos de improbidade administrativa, cominando as respectivas sanções, sem prejuízo da ação penal cabível, um outro importante instrumento para um efetivo enfrentamento desse grave problema.

É premente para os operadores jurídicos a reflexão sobre os graves efeitos da corrupção, notadamente no contexto atual, diante da lamentável constatação de verdadeiro descaso com a coisa pública, do absoluto desrespeito por parte dosPage 227 agentes públicos e políticos aos princípios que regem a boa Administração Pública, fulminando diversos direitos, em especial os direitos sociais cristalizados na atual Constituição Federal, comprometendo, repita-se mais uma vez, a manutenção do próprio Estado Democrático de Direito, cujo cenário ficou ainda mais caótico no ano de 2005, quando a população assistiu desencantada a corrupção vencer a esperança.

Nessa linha, o presente estudo tem por objetivo fazer uma análise no problema da corrupção – sua origem e conceito, suas conseqüências etc. -, sendo importante destacar que nos ocuparemos tão-somente da corrupção pública, vez que a corrupção privada demandaria estudo em separado, em vista de suas peculiaridades e distinção nas estratégias de combate.

1 Conceito de corrupção e sua influência para os direitos humanos

Sob o prisma léxico múltiplos são os significados do termo corrupção, expressão que se origina do latim corruptione, que dá a idéia de corromper, que por sua vez significa decomposição, putrefação, depravação, desmoralização, devassidão, suborno ou peita, chegando-se até a afirmar que suas raízes se insinuam no cerne da alma humana, eis que os atos que a caracterizam se encontram ligados a uma fraqueza moral1. Assim, em resumo, a corrupção tanto pode indicar a idéia de destruição como a de mera degradação, ocasião em que assumirá uma perspectiva natural, como acontecimento efetivamente verificado na realidade fenomênica, ou meramente valorativa.

Porém, atualmente a corrupção vem sendo ligada aos atos desviantes dos agentes públicos (em sentido amplo) frente à Administração Pública, materializados na conduta abusiva no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, com oPage 228 objetivo de obter ganhos privados e, conseqüentemente, lesando o patrimônio público.

Não se trata de fenômeno atual da sociedade moderna, eis que sua prática remonta a épocas passadas de nossa história, conforme salientam os doutrinadores. Assim, segundo Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Júnior, a corrupção pública configura fenômeno antigo, que inclusive já encontrava previsão na Lei das XII Tábuas, que punia severamente condutas desonestas dos juízes, aplicando àqueles que recebiam pecúnia a pena capital, destacando que a severidade da punição era comum entre os povos da antiguidade2.

Porém, não se desconhece que a corrupção também incide - de forma igualmente grave - na esfera particular, sendo emblemática a questão da sonegação fiscal no Brasil. Nesse ponto, conforme observa Luciano Feldens, em excelente obra sobre crimes de colarinho branco, no ano de 1998 a Secretaria da Receita Federal diagnosticou que 11,7 milhões de pessoas e 464.363 empresas não declararam imposto de renda, sendo paradoxal a constatação de que tiveram capacidade financeira suficiente para movimentar nas instituições financeiras (bancos) 341,6 bilhões de reais, valor esse que escapou integralmente ao fisco. Só para se ter uma idéia do que isso representa, observa o autor que no mesmo exercício (1998), o Produto Interno Bruto brasileiro, que, como se sabe, é o índice que registra toda a produção de bens e serviços do País e representa, em termos Monetários, o porte da economia nacional, alcançou o patamar de R$ 899,8 bilhões.3

Page 229

Assim, ao lado da corrupção pública temos a corrupção privada. Porém, esta última, pela sua complexidade e peculiaridades, merece estudo específico, o que foge aos objetivos desses comentários. Daí porque nos próximos pontos nos limitaremos à corrupção pública, pela gravidade que representa para a manutenção do Estado Democrático de Direito.

Realmente, na esfera pública a questão da corrupção se agrava ainda mais, notadamente quando a Administração Pública deve respeito irrestrito aos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade e eficiência, conforme dispõe o art. 37 da Constituição Federal, dos quais o agente público não pode se afastar, sob pena de comprometer o adequado funcionamento da administração e, conseqüentemente, a deficiência das prestações sociais de responsabilidade do Estado.4

Logo, por conseqüência, se pode dizer que os atos de corrupção pública, que podem ocorrer de diversas formas5, acabam sendo os mais elevados graus de improbidade administrativa, uma vez que o agente público, dolosamente, atua visando o benefício próprio ou alheio, num total desrespeito aos padrões normativosPage 230 do sistema, quando deveria dirigir sua conduta com observância estrita aos princípios que regem a Administração Pública, do que se conclui que sua ação desviante configura ato ilegal e imoral, vez que substitui as finalidades da função pública pelo interesse particular na obtenção de alguma vantagem, seja patrimonial ou moral.

Daí porque da necessidade de que as normas existentes para seu combate e controle, como será explicitado mais adiante, não podem mais se restringir tãosomente à esfera penal, merecendo, outrossim, ser interpretadas com a máxima efetividade, o que se afigura fundamental para a preservação do Estado Democrático de Direito e da própria credibilidade da Administração Pública6, já que, com isso, se objetiva resguardar não apenas o patrimônio público, mas, também, a probidade administrativa, cuja importância foi cristalizada pela atual Constituição Federal (art. 37, § 4º), como possibilidade de punição civil, penal e administrativa.

Porém, infelizmente, nos dias atuais presenciamos diversos casos de corrupção pública campeando em todo Brasil7, o que se deve principalmente em decorrência da liberdade de imprensa e do avanço dos meios tecnológicos. Referidas práticas têm deixado a população atônita, mormente diante da audácia e o total descaso comPage 231 a coisa pública e com os princípios consagrados na Constituição Federal, em especial os...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT