Uma outra pena de morte: a violência letal do sistema penal brasileiro
Autor | Luiz Phelipe Oliveira Dal Santo |
Cargo | Doutorando em Criminologia pela University of Oxford (2019-) |
Páginas | 167-197 |
Uma outra pena de morte: a violência letal
do sistema penal brasileiro
Another capital punishment: the lethal violence of the
Brazilian penal system
Luiz Phelipe Dal Santo*
Universidade de Oxford – Inglaterra, Reino Unido.
1. Introdução
Costuma-se compreender o monopólio sobre o uso legítimo da violência
como uma das principais características dos Estados Modernos.1 Conforme
denotado pela palavra “legítimo”, isso não significa que os Estados têm
(ou deveriam ter) liberdade para dispor da violência contra seus cidadãos
como bem entenderem.
A despeito do desenvolvimento de distintas diretrizes nacionais2 e in-
ternacionais3 sobre a regulação e restrição do uso da força, a realidade bra-
* Doutorando em Criminologia pela University of Oxford (2019-). Mestre em “Criminologia Critica e Sicu-
rezza Sociale. Devianza, istituzioni e interazioni psicosociali” pela Università degli Studi di Padova e pela
Università di Bologna (2018-2017). Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Coimbra (2016).
Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016). Aluno especial do programa de
Doutorado em Direito - área de concentração em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia - pela Uni-
versidade de São Paulo (2018). Membro da European Society of Criminology. Seu principal campo de
estudo é a Criminologia, especialmente sociologia da punição, punição e democracia, e economia política
da pena. E-mail: luiz.dalsanto@crim.ox.ac.uk
1 WEBER, 1946. No entanto, esta premissa nem sempre encontra respaldo na realidade. Sobre o caso
brasileiro, ver ADORNO e DIAS (2014), WILLIS (2015), DIAS e DARKE (2016), DAL SANTO (2018).
2 Portaria Interministerial nº 4.226 (do Ministério da Justiça), de 31 de dezembro de 2010, a qual estabe-
lece diretrizes sobre o uso da força pelos agentes de Segurança Pública, os quais devem obedecer aos prin-
cípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência. Há, também, a Resolução
n. 8/2012 da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
3 Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotado pela Assembléia
Geral das Nações Unidas na sua Resolução 34/169, de 17 de dezembro de 1979; Princípios orientadores
para a Aplicação Efetiva do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da
Lei, adotados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas na sua resolução 1989/61, de 24 de
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sileira é conhecida pelo uso excessivo da força letal promovido por suas
polícias. Diversos estudos e relatórios elaborados por reconhecidas institui-
ções internacionais de defesa dos direitos humanos atestam esse quadro.4
A maior parte dos estudos acerca da letalidade policial brasileira des-
tina-se a debater as causas de seus altos índices. Em regra, aponta-se para
um legado da ditadura, tanto como uma prática de controle político e/
ou social,5 quanto um processo de democratização inacabado,6 mantendo-
-se até diferentes status de cidadania.7 Há, ainda, explicações alternativas,
como a impunidade,8 a política de guerra às drogas,9 o aumento de crimes
patrimoniais violentos10 ou as variações políticas de governos11 e sua rela-
ção com a opinião pública,12 por exemplo.
Em sentido diverso, este trabalho não pretende revelar as determina-
ções causais da letalidade policial no Brasil. Procura, no entanto, demons-
trar como esse quadro representa mais do que um mero excesso ou abu-
so da violência letal ou, ainda, do que execuções extrajudiciais, como se
costuma dizer. Embora seja vedada no ordenamento jurídico brasileiro,13
a pena de morte ganha forma concreta no sistema de justiça criminal bra-
sileiro por meio de um sistemático processo de oficialização promovido
maio de 1989; Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis
pela Aplicação da Lei, adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e
o Tratamento dos Delinquentes, realizado, em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1999;
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotara
pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua XL Sessão, realizada em Nova York em 10 de dezembro
de 1984 e promulgada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991, entre outros.
4 AI, 2005; 2015b; HRW, 2009; 2013.
5 CHEVIGNY, 1990; PINHEIRO, 1997; BECHARA, 2016
6 PINHEIRO, 1991; AHNEN, 2007.
7 CALDEIRA, 2002.
8 OSSE; CANO, 2017; CECCATO 2018. A impunidade aqui é tratada como a eventual ineficiência do
sistema de justiça criminal (ou a percepção popular de que assim o seja), de modo que o assassinato de
suspeitos seria um meio de “fazer justiça com as próprias mãos”. Não se trata, portanto, da impunidade em
relação aos homicídios cometidos pelos policiais.
9 MAGALONI; CANO, 2016.
10 CLARK, 2008.
11 OLIVEIRA, 2012. O autor aponta para a forte influência do Executivo Estadual nos índices de letalidade
da polícia, embora isto não seja suficiente para alterar o padrão de atuação (letal) da polícia.
12 HINTON, 2005; LEEDS, 2007.
13 A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XLVII, veda expressamente a aplicação da pena
de morte no Brasil, abrindo única e exclusiva exceção para a hipótese de caso de guerra declarado, nos
termos do artigo 84, inciso XIX, da própria Constituição.
Luiz Phelipe Dal Santo
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