Uma antropologia do 'fluxo': reflexões sobre dependência no contexto do crack

AutorYgor Diego Delgado Alves - Pedro Paulo Gomes Pereira
CargoDoutor em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia. Pós-doutorando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil - Livre Docente pela Universidade Federal de São Paulo. Pós-Doutorado na Universidade de Barcelona, Barcelona, Espanha. Professor Associado da Universidade Federal de São Paulo. Professor do ...
Páginas121-142
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.16, n.1, p.123-144 Jan-Abr 2019
ISSN 1807-1384 DOI: https://doi.org/10.5007/1807-1384.2019v16n1p121
Artigo recebido em: 21.06.2018 Revisado em 02.10.2018 Aceito em: 31.10.2018
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons
UMA ANTROPOLOGIA DO “FLUXO”: REFLEXÕES SOBRE DEPENDÊNCIA NO
CONTEXTO DO CRACK
Ygor Diego Delgado Alves
1
Pedro Paulo Gomes Pereira
2
Resumo:
O conceito biomédico de dependência não consegue dar conta da atração exercida
pelas cenas de uso de crack que vai muito além da necessidade de se consumir
uma droga para aliviar a fissura. Uma antropologia do “fluxo”, como são chamados
os movimentos e percursos em torno do consumo do crack, permitiu refletir sobre o
porquê da existência de cracolândias e questionar certas dimensões da chamada
dependência química. Prazer e sofrimento passam a ser considerados em sua
dimensão social: a satisfação proporcionada em desfrutar da companhia de outros
usuários e o constrangimento provocado pelo estigma em torno da droga. A conexão
com os parças e a relações estabelecidas nas ruas possibilitam a fruição dos efeitos
desejados da substância e ensinam modos de viver e perceber a cidade.
Palavras-chave: Etnografia. Crack. Dependência. Cracolândia. Fluxo
ANTHROPOLOGY OF “THE FLOW”: REFLECTIONS ON ADDICTION IN THE
CONTEXT OF CRACK COCAINE
Abstract:
The biomedical concept of addiction cannot handle the attraction of the crack
consuming scenes that goes far beyond the need to use a drug to relieve the craving.
An anthropology of the “flow” – as the movements and trajectories that surround the
consumption of crack cocaine are called allowed me to reflect on the motivations
for the existence of cracolândias (urban zones dominated by the sale and use of
crack cocaine), and to question certain dimensions of so-called drug addiction. Over
the course the study, I consider pleasure and suffering in terms of their social
dimensions, such as the satisfaction of sharing in the company of other crack users,
or the shame that the drug’s stigma provokes. The connections between parças
(roughly, “homies”) and the relationships established on the street allow the
substance’s desired effects to come to fruition while also teaching users different
modes of living in and perceiving the city.
Keywords: Ethnography. Crack Cocaine. Addiction. Cracolândia. Flow.
1
Doutor em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia. Pós-doutorando em Saúde Coletiva
pela Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail:
antropologiaygor@yahoo.com.br
2
Livre Docente pela Universidade Federal de São Paulo. Pós -Doutorado na Universidade de
Barcelona, Barcelona, Espanha. Professor Associado da Universidade Federal de São Paulo.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de São
Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: pedropaulopereira@hotmail.com
122
UNA ANTROPOLOGÍA DEL "FLUJO": REFLEXIONES SOBRE DEPENDENCIA
EN EL CONTEXTO DEL CRACK
Resumen:
El concepto biomédico de dependencia no puede dar cuenta de la atracción ejercida
por las escenas de uso de crack que va mucho más allá de la necesidad de
consumir una droga para aliviar la fisura. Una antropología del "flujo", como se
llaman los movimientos y recorridos alrededor del consumo del crack, permitió
reflexionar sobre el porqué de la existencia de cracolandias y cuestionar ciertas
dimensiones de la llamada dependencia química. El placer y el sufrimiento pasan a
ser considerados en su dimensión social: la satisfacción proporcionada en disfrutar
de la compañía de otros usuarios y la vergüenza provocada por el estigma en torno
a la droga. La conexión con los camaradas y las relaciones establecidas en las
calles posibilitan la fruición de los efectos deseados de la sustancia y enseñan
modos de vivir y percibir la ciudad.
Palabras clave: Etnografía. Crack. Dependencia. Cracolândia. Flujo
1 INTRODUÇÃO
Este artigo trata da cracolândia paulistana. Sua existência vem desafiando o
esforço interpretativo da grande mídia e da academia por mais de vinte anos, sendo
objeto de intervenções estatais e da sociedade civil que vão desde a violência mais
desenfreada até políticas inclusivas de reconhecimento internacional. Porém, apesar
de todo o trabalho realizado pelos(as) pesquisadores(as) até o momento, que
servem de base para nossa análise e com os quais iremos debater. Acreditamos,
pelo tipo de inserção que empreendemos no campo, uma etnografia por quase seis
anos com a possibilidade de frequentar as rodas de consumo de crack nos mais
variados horários do dia e épocas do ano, poder oferecer um ponto de vista que nos
permita elucidar considerações consistentes sobre o porquê da existência e enorme
resiliência da Cracolândia. Assim como, lançar uma luz sobre a existência de cenas
abertas de uso do crack.
Localizada na região central da cidade de São Paulo, a Cracolândia, é uma
imensa cena de uso de crack que chegou a possuir um “fluxo”
3
de mil e quinhentos
frequentadores diários (PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, 2015). O
local foi objeto de pesquisas etnográficas, referências sobre as quais
fundamentamos nosso raciocínio, que destacaram os mais variados enfoques, tais
como: (1) as relações entre o Estado, o legal e o ilegal (ADORNO et al., 2013;
3
De modo geral, o termo refere-se aos movimentos e percursos em torno do consumo da droga
(Alves, 2015).

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