Uma análise marxiana da política de cotas no ensino superior público brasileiro

AutorCassia Engres Mocelin
Páginas101-110

Page 101

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592020v23n1p101

ESPAÇO TEMÁTICO - SERVIÇO SOCIAL: FORMAÇÃO, TRABALHO PROFISSIONAL E TENDÊNCIAS TEÓRICAS CONTEMPORÂNEAS

Uma análise marxiana da política de cotas no ensino superior público brasileiro

Cassia Engres Mocelin1https://orcid.org/0000-0002-3751-5580

1Universidade Federal de Santa Maria, Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis, Santa Maria, RS, Brasil

Uma análise marxiana da política de cotas no ensino superior público brasileiro

Resumo: Construído por meio de revisão teórica e bibliográfica, este artigo objetiva discutir a política de cotas sociais e étnico-raciais nas instituições federais de ensino superior brasileiras a partir do materialismo histórico e dialético. Toma a universidade como arena onde a luta de classes também é travada e questiona: em que medida a política de cotas sociais e étnico-raciais constitui processos de resistências frente à distribuição justa e ao igual direito burguês? Compreende-se que a política de cotas emerge e justifica-se no pressuposto de que o igual direito não contempla a população negra. Essa pseudoigualdade burguesa não considera o acesso historicamente negado dessa população aos bens e à riqueza socialmente produzida. Por isso, há de se ter outra forma de acesso, que se vincule a outro tipo de universalidade e que, assim, contemple uma universalidade a partir da diversidade e da desigualdade, pois, sob a ótica da igualdade, a desigualdade permanece.

Palavras-chave: Distribuição justa. Ensino superior. Igual direito. Marx. Política de cotas.

Marxian analysis of quota policy in Brazilian public higher education

Abstract: This article presents a theoretical and bibliographic review discussing social and ethnic-racial quotas in Brazilian federal higher education institutions, based on the historical and dialectical materialism. The study considers the university as an arena of class struggle and raises the question: to what extent does the policy of social and ethnic-racial quotas constitute processes of resistance to fair distribution and equal bourgeois rights? It is understood that the quota policy emerges and is justified on the assumption that the equal right does not include the black population. This bourgeois pseudo-equality does not consider this population’s historically denied access to socially produced goods and wealth. Therefore, there must be another form of access, which is connected to another form of facing the issue of universality, considering diversity and the need for unequal treatment, since the equal treatment maintains the inequality.

Keywords: Fair distribution. Higher education. Equal right. Marx. Quota Policy.

Recebido em 01.02.2019. Aprovado em 17.09.2019. Revisado em 25.10.2019.

© O(s) Autor(es). 2020 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar, distribuir e reproduzir em qualquer meio, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material, desde que para fins não comerciais e que você forneça o devido crédito aos autores e a fonte, insira um link para a Licença Creative Commons e indique se mudanças foram feitas.

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Introdução

Com o presente artigo, construído a partir de revisão teórica e bibliográfica, objetiva-se discutir a política de cotas sociais e étnico-raciais nas instituições federais de ensino superior brasileiras (IFES) a partir de uma perspectiva marxiana, com base nos conceitos de igual direito e distribuição justa que Marx desenvolve no texto “Crítica do Programa de Gotha”. Toma a universidade como arena onde a luta de classes também é travada e questiona: Em que medida a política de cotas sociais e étnico-raciais constitui processos de resistências frente à distribuição justa e ao igual direito burguês?

Como caminho teórico-metodológico, assume-se o materialismo histórico e dialético fundamentado nas concepções de Marx e Engels, em que a leitura e a interpretação da realidade social só se realizam a partir da base insuprimível real, concreta e materialista.

Ancora-se a justificativa deste trabalho em tais pressupostos, assim como os esforços e as reflexões acerca do entendimento de que raça e classe constituem, na realidade sócio-histórica brasileira, elementos dialeticamente articulados. Expressões do processo de formação social do Estado brasileiro, que rebatem nas condições concretas de vida de grande parte da população brasileira, ou seja, da população negra, entendida como pretas/os e pardos/as.

Além disso, aporta-se a discussão no âmbito do Serviço Social, adstrita ao Núcleo de Fundamentos da particularidade da formação sócio-histórica da sociedade brasileira,1sistematizados nas Diretrizes Curriculares de 1996 pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss). Igualmente, o Código de Ética de 1993, por meio de seus princípios fundamentais, orienta a categoria profissional ao “Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças” (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012, p. 23, grifo nosso), assim como o articula na construção e “Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero” (Idem, ibidem, p. 23-24, grifo nosso).

Para dar conta dessa abordagem, organizou-se o texto em duas partes. Na primeira, discute-se breve-mente o processo de formação social do Estado brasileiro a fim de compreender a articulação entre classe e raça; na segunda, centra-se a discussão na política de cotas sociais e étnico-raciais, tensionando-a com base nos conceitos de igual direito e distribuição justa.

Imbricações entre classe e raça no Brasil

A formação do Brasil, a partir da invasão portuguesa em 1500, nos seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais, derivou do sistema econômico-agrícola denominado plantation, ancorado na fase mercantilista e comercial do capitalismo, por meio das grandes navegações. Tal sistema baseava-se na monocultura de exportação (cana-de-açúcar), na grande propriedade de terra (latifúndios e engenhos) e, principalmente, no trabalho escravo2(inicialmente de índios, posteriormente, e sobretudo, de africanos escravizados3).

Ao se referir à escravidão dos negros no Suriname, nas regiões meridionais da América do Norte e no

Brasil, Marx (2008, p. 96) escreve:

A escravidão direta é o “pivot” da indústria burguesa, do mesmo modo como as máquinas, o crédito, etc. Sem a escravidão, não teríamos a indústria moderna. Foi a escravidão que deu às colônias o seu valor, foram as colônias que criaram o comércio mundial, é o comércio mundial que é a condição da grande indústria. Assim, a escravidão é uma categoria econômica da maior importância.

O sistema escravocrata brasileiro a partir do século XIX, em um contexto de profundas modificações societárias e macroestruturais, aos poucos cedia lugar à implantação do modo de produção capitalista. Com isso, instituiu-se um conjunto de legislações que, progressivamente, foram “liberando” o trabalho escravo.4 Porém, embora tenha representado a progressiva liberdade civil da população até então escravizada, esse arcabouço legal não possuía caráter estritamente humanitário. Estava articulado aos movimentos de expansão da sociedade capitalista em âmbito mundial, em que a Inglaterra, como o país capitalista mais desenvolvido à época, capitaneava esse processo, além de pressionar outros países a também tornarem-se capitalistas, entre eles o Brasil.

Ainda nesse contexto, em 1850 o Brasil promulga a Lei de Terras e oficializa a propriedade privada. Estabeleceu-se assim, um mercado de terras que tinha por objetivo, além de transformá-la em uma mercadoria, também bloquear o seu acesso por parte da população livre (indígenas e negros aos poucos

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libertos). A Lei de Terras foi instituída anteriormente à abolição total da escravidão e aliava-se ao projeto de construção do Estado-nação brasileiro, o qual privilegiou e fomentou uma política de branqueamento5 da população baseada no racismo científico, nas teorias deterministas e evolucionistas, o que contribuíram para atribuir um lugar social ao negro.

Portanto, quando a propriedade não era privada, o trabalho era escravo. No momento em que a propriedade torna-se privada, o capitalismo requisita o trabalhador livre em dois sentidos: livre para vender a sua força de trabalho como mercadoria (pois o escravo não poderia fazê-lo) e despossuído de todos os meios e instrumentos que lhe permitiriam trabalhar por conta própria, ou seja, não possuir outra mercadoria para vender senão a própria força de trabalho. (MARX, 2013).

Com o fim oficial da escravidão no Brasil e com a instituição da Lei de Terras, o contingente de população negra viu-se obrigado a buscar, nas cidades, suas condições de vida e de sobrevivência por meio do trabalho assalariado, informal e/ou precarizado. Com isso, negaram-se à população negra oportunidades de trabalho e de vida, as quais ficaram reservadas aos imigrantes europeus, resultando numa histórica divisão social e racial do trabalho na sociedade brasileira. Ao segmento negro, sobraram e ainda continuam “a sobrar” apenas as posições de trabalho inferiores e rejeitadas pelos trabalhadores brancos.

Tendo em consideração o processo de formação social do Brasil, torna-se possível compreender as amarras da escravidão com a constituição do capitalismo em solo nacional, onde a...

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