Por um triunfo do direito científico de F. K. von SAVIGNY: cláusulas gerais, uniformização de jurisprudência e súmula vinculante (acerca de um eventual paralelo relativo ao judge-made law do sistema de origem anglo-americana)

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas197-247

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* Estudo previamente publicado na coletânea organizada por G. H. JABUR, A. J. PEREIRA JÚNIOR, Direito dos Contratos II, São Paulo, Quartier Latin, 2008, pp. 151-191.

1. Introdução

Uma das primeiras indagações de quem quer que se depare com o presente estudo há de ser a seguinte: que elo poderia ser entrevisto entre a Lei Federal nº 11.417/06 (regulamentadora da edição, revisão e cancelamento de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal), a polê-mica sobre a codificação (estabelecida na Alemanha do século XIX entre
A. F. J. Thibaut e F. K. von Savigny) e o judge-made law típico do sistema jurídico de origem anglo-americana1

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A obtenção de uma resposta ao questionamento do leitor pressupõe que seja previamente resolvida outra indagação (e que foi o autêntico ponto de partida desta análise): teria F. K. von Savigny sido “derrotado” por A. F. J. Thibaut em sua batalha contra a codificação? Ou em outros termos: a entrada em vigor do Código Civil alemão (1900) assinala o declínio do direito científico preconizado pelo pai da Escola Histórica do Direito? Como outrora nos advertira um interlocutor bastante estimado, sempre é possível esboçar uma tentativa de resposta a tal dúvida; entretanto, entre sua articulação e a obtenção de qualquer resultado plausível, medeia uma considerável (e por vezes intransponível) distância2.

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Uma vez imbuídos da sugerida cautela, lançamo-nos então à tarefa de debelar tal dúvida. Entretanto, para que pudéssemos chegar a um resultado satisfatório, pareceu-nos sensato estruturar a análise da maneira seguinte: primeiramente, caberia realizar um breve apanhado sobre o significado histórico e as linhas gerais da polêmica sobre a codificação alemã; em seguida, seria necessário apresentar as linhas gerais do método de trabalho característico da atuação jurisdicional no sistema do common law (judge-made law); em um terceiro momento, pareceu-nos útil esboçar uma diferenciação entre os estilos da corte e assentos da Casa de Suplicação de nosso direito do século XVIII, o incidente de uniformização de jurisprudência e a súmula vinculante regulamentada pela Lei Federal nº 11.417/06 (quanto aos respectivos alcance e finalidade); e, antes de concluir, restar-nos-ia analisar a postura do Superior Tribunal de Justiça ao ensejo de um julgamento específico (REsp nº 12.507-0/RS), aparentemente consagradora de um sistema aberto à atuação criativa do Poder Judiciário à moda do common law.

Eis o itinerário por nós proposto, para que afinal se possa concluir por uma eventual proximidade entre os métodos casuísticos dos jurisconsultos romanos clássicos e dos tribunais ingleses e pela necessidade de profundas reformas que atinjam a formação (e não apenas a atuação) de nossos estudiosos e práticos do Direito.

2. Duas linhas sobre a polêmica relativa à codificação alemã

Decisivamente infiuenciada pelo ideário romântico, a Escola Histó-rica do Direito teve uma importância indisfarçável no desenvolvimento do direito alemão posterior à promulgação do Code Civil (1804), atuando (segundo as diretrizes de F. K. von Savigny) como fator de resistência à adoção do referido paradigma por uma nação então ansiosa por sua respectiva unificação política3.

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De fato, a situação social na Alemanha pouco antes da codificação não era muito mais avançada do que ao final da Baixa Idade Média (havendo inclusive quem chegue a considerar “semifeudal” sua estrutura social); de todo modo, não se pode descurar que a invasão francesa de parte do território alemão proporcionou uma ocasião extremamente propícia à discussão sobre a adoção de um estatuto jurídico inteiramente novo, fundado nos princípios da igualdade civil e do império da lei (bem como nos postulados de completitude e coerência do ordenamento jurídico). Em um tal cenário, a crítica de A. F. J. Thibaut ganhou considerável repercussão, postulando-se a eliminação dos obstáculos representados pela pluralidade de fontes e pelo fracionamento do sistema jurídico4.

Não obstante sua ampla divulgação, a manifestação de A. F. J. Thibaut (Über die Nothwendigkeit eines allgemeinen burgerlichen Rechts für Deutschland

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Sobre a necesidade de um Direito civil geral para a Alemanha) ecoou em um ambiente eminentemente conservador. Ressalvados os eventuais excessos de uma tal redução, acreditamos ser plausível afirmar que a projeção do espírito romântico alemão sobre o direito poderia ser satisfatoriamente sintetizada pela expressão Escola Histórica do Direito; dotada de características singulares, esta postulava a fundamentação do Direito no Volksgeist (“espírito do povo”) – mostrando-se, evidentemente, infensa a qualquer tentativa de adoção abrupta de um sistema jurídico “novo”55.

A resposta (às críticas de A. F. J. Thibaut) sobreveio em opúsculo de F. K. von Savigny, intitulado Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft (Da vocação do nosso tempo para a legislação e a jurisprudência), no qual se rejeita a fórmula codificadora a pretexto

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de sua inadequação ao contexto histórico alemão da época. Entretanto, examinada mais a fundo a contrariedade de F. K. von Savigny, pode-se depreender uma aparente oposição de princípio – decorrente da inconveniência da codificação em qualquer época (seja em um cenário jurídico primitivo, seja mesmo em ocasiões em que este se revele maduro ou mesmo decadente)6.

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Entretanto, uma abordagem cuidadosa da crítica de F. K. von SAVIGNY parece nos revelar uma oposição não à codificação propriamente dita, mas sim aos seus efeitos potencialmente danosos; de fato, pretendendo a manutenção de um contínuo estágio de direito científico, o autor entrevê na idéia codificadora o inevitável “engessamento” do sistema jurídico. Todavia, no instante em que se logra dissociar a técnica codificadora da idéia de imobilidade, a “estabilidade” pretendida por A. F. J. Thibaut deixa de se confundir com a necessária “estagnação” da ciência jurídica7.

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A partir de um exemplo prático (com que concluiremos nossa exposição) teremos a oportunidade de depreender de que forma tal “engessamento” pôde ser obstado pelo legislador ao cabo do século XIX (e o papel desempenhado pelas cláusulas gerais a contribuir para o “arejamento” constante do ordenamento). Contudo, fiquem desde já destacados não apenas a infiuência decisiva da Escola Histórica do Direito para a conformação do direito civil alemão dos séculos XIX e XX (via pandectística), como também o profundo receio dos partidários da vertente anticodificadora quanto à estagnação do arcabouço normativo; pois é exatamente aí que encontraremos o “escape” para um novo modo de se pensar o direito civil – consideravelmente mais compatível com o processo de paulatina construção do Direito que tem caracterizado o sistema jurídico anglo-americano (sobre o qual trataremos no parágrafo seguinte)8.

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3. Linhas gerais sobre o método de trabalho dos juristas do sistema anglo-americano

De antemão advertimos o leitor de que não pretendemos desenvolver neste parágrafo qualquer análise ex professo sobre a história e a evolução do direito anglo-americano; entretanto, não nos seria lícito negar que o modelo dos writs (típico das origens do Common Law) revelou ao estudioso um arcabouço técnico bastante rudimentar, responsável por uma série de injustiças sociais que logo justificaram a busca por um progressivo aprimoramento técnico – notadamente através de uma série de reformas metodológicas concentradas nos “Judicature Acts” (do final terceiro quartel do século XIX)9.

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De fato, representando a superação completa de um paradigma já relativizado pelo advento da jurisdição da Equity, as reformas metodológicas implementadas pelos “Judicature Acts” (1873-1875) redundaram no desenvolvimento de um novo método de trabalho, estruturado na doutrina do stare decisis et quieta non movere (que em ambiente inglês deu origem ao sistema de precedentes). Nos termos da famigerada teoria, a atividade jurisdicional tem duplo significado na medida em que, ao decidir um determinado caso concreto, o juiz exerce sua função não apenas dirimindo o litígio que lhe é submetido, senão também criando (potencialmente) uma nova regra jurídica, ensejadora de um autêntico processo de “retroalimentação” do sistema – desde que inexista prévio comando jurídico decorrente de enunciado contido em julgado que lhe seja cronologicamente anterior10.

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Em suas origens, o precedente judicial consistia no resultado de um processo de pura revelação de regras jurídicas então latentes no próprio direito costumeiro (regras que embora não escritas seriam do conhecimento de todo bom inglês); por tal razão, em uma primeira fase do desenvolvimento da teoria do precedente judicial, não se pode vislumbrar um autêntico “judge-made law”, mas sim uma função meramente declarativa do juiz, bastante semelhante àquela de autômato (“boca da lei”) cometida ao magistrado francês pelos escritos de Montesquieu11.

Desta doutrina tradicional do sistema de precedentes anglo-americano decorrem três postulados fundamentais: a) em primeiro lugar, cabe ao estudioso distinguir em meio a uma decisão judicial única aquilo que

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consiste em ratio decidendi e aquilo que corresponde ao chamado obiter dictum; b) em segundo lugar, deve meditar a respeito da matéria de fato a que se mostra vinculado um determinado precedente, pois; c) caso os fatos relevantes (que determinaram a edição de uma decisão anterior) não se repitam na hipótese submetida à...

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