Por um tribunal de justiça para a Unasul: a necessidade de uma corte de justiça para a América do Sul sob os paradigmas do Tribunal de Justiça da União Europeia e da Corte Centro-Americana de Justiça

AutorValerio de Oliveira Mazzuoli
Páginas526-564

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Ver Nota12

1. Introdução

O processo de integração sul-americano é incipiente3, até mais, em alguns aspectos, que o concernente à Organização dos Estados Centro-Americanos – Odeca4. De fato, esta última organização – diferentemente do que se passa atualmente com a Unasul5 – já conta em sua estrutura organizacional com sua Corte de Justiça6, à guisa da que a União Europeia já conhece desde 19527.

De institucionalização recente8 e inspirada no processo de integração da União Europeia9, a Unasul tem a perspectiva de avançar nos próximos anos rumo à união cada vez mais efetiva dos doze países da América do Sul. À medida que os laços entre esses países se fortalecem, consequência natural é o aparecimento de questões jurídicas que deverão ser resolvidas por alguma forma. O tratado constitutivo da Unasul (de 23.05.2008) prevê apenas meios diplomáticos de solução de controvérsias, ao dispor no art. 21 que “as controvérsias que puderem surgir entre Estados-partes a respeito da interpretação ou aplicação das disposições do presente Tratado Constitutivo serão resolvidas mediante negociações diretas”, e que “em caso de não se alcançar uma solução mediante a negociação direta, os referidos Estados-membros submeterão a controvérsia à consideração do Conselho de Delegadas e Dele-

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gados, o qual, dentro de 60 dias de seu recebimento, formulará as recomendações pertinentes para sua solução”. No caso de não se alcançar tal solução, o mesmo art. 21 complementa que “essa instância elevará a controvérsia ao Conselho de Ministras e Ministros das Relações Exteriores, para consideração em sua próxima reunião”10. Como se nota, nada além desse restrito (e pouco claro) meio de solução de contendas existe no convênio constitutivo da Unasul capaz de resolver definitivamente as divergências entre os respectivos países-membros11. Assim, levando-se em conta o fato de que não há, até o presente momento, um órgão judicial de solução de controvérsias para o bloco, parece premente que venha à luz uma corte de justiça para a Unasul, capaz de decidir os litígios que entre os seus membros eventualmente venham a surgir12.

Destaque-se que o Tratado Constitutivo da Unasul elenca uma longa lista de objetivos da organização (art. 3º)13. Não obstante todos os propósitos ali estabelecidos, não se previu um mecanismo jurisdicional (mas tão só diplomático) de solução de controvérsias entre os doze países-membros da organização, sem o qual, pensamos, a garantia de estabilidade de tais objetivos torna-se extremamente fragilizada. Sem dúvida, as questões afetas,
v.g., ao acesso universal à educação, à integração energética, à integração financeira, à proteção da biodiversidade, dos recursos hídricos e dos ecossistemas, assim como a luta contra as causas e efeitos da mudança climática, aquelas ligadas à seguridade social e aos serviços de saúde, à pesquisa, inovação, transferência e produção tecnológica, à luta contra o terrorismo, corrupção, drogas, tráfico de pessoas, tráfico de armas, crime organizado transnacional e não proliferação de armas nucleares e de destruição em massa, são sempre tratadas sob pontos de vista distintos pelos diversos países, não havendo uma uniformidade de entendimentos a elas relativos, o que demanda existir um tribunal ou corte internacional regional capaz de resolver tais contendas.

Este ensaio tem por finalidade investigar a possibilidade do Tribunal de Justiça da União Europeia (Tribunal de Luxemburgo) e da Corte Centro--Americana de Justiça (Corte de Manágua) servirem de paradigmas à criação de um futuro tribunal de justiça no âmbito da União das Nações Sul-Americanas – Unasul14.

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2. Dois possíveis paradigmas à criação de um tribunal de justiça para a Unasul

São inúmeros os tribunais internacionais hoje existentes, tendo alguns vocação universal (como a Corte Internacional de Justiça, doravante CIJ) e outros vocação regional (v.g., as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos). Entre todos eles, e para os fins que interessam às nossas reflexões neste momento, seria necessário encontrar os que mais se assemelhem à ideia de um tribunal de justiça para a Unasul (doravante, TJU). Segundo pensamos, tais tribunais seriam o Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, TJUE) e a Corte Centro-Americana de Justiça (doravante, CCJ). Relativamente ao primeiro, sua utilização como paradigma justifica-se pelo fato de a Unasul estar institucionalmente baseada no processo de integração da União Europeia15; no que tange à CCJ, tal se dá por se tratar de um tribunal latino de justiça (muito próximo do nosso sistema em razão de inúmeras circunstâncias). Dessa forma, parece possível unir a experiência europeia (na qual a Unasul está institucionalmente inspirada) com a experiência centro--americana, para o fim de se esboçar a estrutura do (futuro) Tribunal de Justiça da Unasul.

2. 1 O Tribunal de Justiça da União Europeia

Após a instituição da União Europeia – hoje constituída por 28 Estados-membros16 – entendeu-se que ela só poderia cumprir os objetivos dos tratados se estes fossem respeitados pelos Estados e pelos organismos da própria União, de acordo com uma aplicação e interpretação uniformes do direito comunitário17. Esse propósito importou a jurisdicionalização da União pela criação de um tribunal de justiça, cuja finalidade consiste em uniformizar a interpretação e aplicação do direito da União Europeia, garantindo a superioridade do direito comunitário frente às ordens estatais internas18.

O TJUE resolve as questões que envolvem o direito da União Europeia, bem assim os litígios ligados aos Estados e organismos da União. Além dos Estados, também os particulares, empresas e organizações podem demandar perante o TJUE quando julgarem que algum de seus direitos foi violado por determinada instituição da União.

O TJUE compõe-se de um juiz de cada Estado da União Europeia (28 Estados) e tem o auxílio de oito advogados-gerais, aos quais incumbe dar pa-

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receres imparciais (e também públicos) sobre os processos perante o TJUE19.

Tanto os juízes como os advogados-gerais são nomeados por um período de seis anos.

Em razão do grande número de processos intentados perante o TJUE, criou-se um Tribunal Geral com competência de julgar as ações propostas por particulares, empresas e organizações, e também processos ligados ao direito da concorrência20. As decisões do Tribunal Geral podem, no prazo de dois meses, ser objeto de recurso para o TJUE, limitado às questões de direito. Destaque-se haver também o Tribunal da Função Pública Europeia, que se manifesta relativamente aos litígios entre as instituições da União e os seus funcionários.

A fim de se desenhar institucionalmente um tribunal de justiça para a Unasul, merece ser realizada uma análise (brevíssima e especificamente ligada ao que interessa a este ensaio) das funções e competências do TJUE, bem assim verificar a estrutura do chamado “triângulo judicial europeu” em matéria de direitos humanos.

2.1. 1 Funções e competências do TJUE

O TJUE é o órgão judiciário máximo da União Europeia (UE)21. Sua função é a de interpretar o direito da União Europeia – que vai do direito escrito ao costumeiro no âmbito das comunidades –, para que a sua aplicação seja uniforme nos Estados que compõem a União22. O TJUE tanto resolve conflitos entre Estados quanto litígios propostos por particulares ou empresas (por entenderem que algum de seus direitos tenha sido violado por uma instituição europeia). Grande parte de sua atividade jurisdicional é materialmente constitucional, atuando o tribunal como controlador final da convencionali-dade23 dos tratados comunitários; também atua administrativamente, especialmente em tema de responsabilidade civil extracontratual das instituições, órgãos e organismos da União Europeia e em matéria de controle da função pública desenvolvida pelos tribunais da União24.

Têm sido comuns alguns tipos de ações no âmbito do tribunal, quais sejam: (a) os pedidos de decisão a título prejudicial (quando os tribunais dos Estados requerem ao TJUE esclarecimentos sobre a interpretação de um elemento do direito da UE); (b) ações de descumprimento (propostas em desfavor dos Estados pela não aplicação do direito da UE); (c) recursos de anulação (interpostos contra as normas da UE que violem os tratados ou os direitos fundamentais da UE); (d) ações por omissão (propostas em desfavor das ins-

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tituições comunitárias por não terem tomado as medidas de sua competência); e (e) ações diretas (intentadas por particulares, empresas ou organizações contra ações ou decisões da UE)25.

O TJUE tem uma jurisprudência integradora, que não se limita em meramente aplicar as normas comunitárias, senão também desenvolver teses e doutrinas novas, como a da supremacia do direito comunitário, do efeito direto de algumas de suas normas, dos poderes implícitos e dos princípios gerais de direito da UE26. Para falar como Jónatas Machado, o TJUE é cada vez mais “um supremo tribunal da UE, com um papel central na fiscalização jurídica na garantia da uniformidade da jurisprudência”27. Exatamente...

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