Um Mercado Controlado por Intermediários: padrões de qualidade e formas de coordenação das transações em uma região produtora de café em Minas Gerais

AutorMarisa Singulano
CargoProfessora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto
Páginas11-45
http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15n33p11
1111 – 45
Um mercado controlado
por intermediários: padrões de
qualidade e formas de coordenação
das transações em uma região
produtora de café em Minas Gerais
Marisa Singulano1
Resumo
Neste artigo analisamos a organização do mercado de café na região das Matas de Minas desde
a desregulamentação na década de 1990. Este mercado é caracterizado pelo controle dos inter-
mediários sobre as formas de coordenação das transações. Analisamos como a diferenciação do
café, e consequentemente dos cafeicultores, pela produção de padrões de qualidade específicos
gerou novas formas de coordenação. Propomos uma análise desse caso a partir da perspectiva da
sociologia dos mercados, enfocando as relações de poder que se estabelecem entre os agentes
econômicos e como estas estruturam a comercialização. Assim, estabelecemos uma discussão
crítica com a perspectiva alternativa para análise de mercados agroalimentares representada pela
Economia dos Custos de Transação.
Palavras-chave: Mercado de café. Qualidade. Desregulamentação.
1 Introdução
Nosso intento neste artigo é reetir sobre a realidade do mercado de café
no contexto da liberalização comercial desde a década de 1990, a partir da
análise do caso de um mercado na região produtora Matas de Minas2. Con-
sideramos os impactos da desregulamentação sobre a produção e a comercia-
lização na região e analisamos de que modo os produtores se adaptaram às
transformações institucionais decorrentes de tal fato.
1 Professora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto.
E-mail: marisasingulano@gmail.com
2 A análise se fundamenta em um estudo de caso conduzido na região das Matas de Minas entre os anos de
2012 e 2014. Nesse estudo foi realizada pesquisa de campo em diversos municípios e comunidades rurais que
compõem a região, foram feitas cinquenta entrevistas com produtores, compradores e membros de organiza-
ções e foram analisados documentos e legislações referentes ao período, à área da pesquisa e ao setor do café.
Um mercado controlado por intermediários: padrões de qualidade e formas de coordenação das transações em uma região
produtora de café em Minas Gerais | Marisa Singulano
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Tratamos aqui da dimensão local do mercado, constituída pelas transa-
ções entre produtores e intermediários que atuam na compra do café para
destiná-lo à exportação ou à indústria. Consideramos as formas de coorde-
nação da distribuição de café nas Matas de Minas, as quais são caracterizadas
pela predominância dos intermediários e de que modo estas se rearranjaram
no contexto pós-liberalização.
Nesse novo contexto, pode-se dizer que a qualidade se torna um elemen-
to-chave no mercado de café. Observamos que nas Matas de Minas ocorreram
importantes mudanças nos âmbitos da produção e do mercado relacionadas a
mudanças na qualidade do café. Podemos observar que neste mercado, produ-
tores com traços socioeconômicos distintos, os quais categorizamos por meio
de uma tipologia, produzem padrões de qualidade de café especícos, que
se destinam a canais de comercialização diferentemente organizados. Assim,
tratamos da construção social da qualidade a partir dos processos de diferen-
ciação dos cafés das Matas – especialmente os denominados cafés sustentáveis
e cafés especiais –, e sua relação com os nichos de especialidades e o mercado
de commodity.
Nesse sentido, a “construção social da qualidade” é acionada como uma
ferramenta para a compreensão das formas de coordenação das transações no
mercado local de café nas Matas de Minas. Tais transações não são denidas
apenas em função das assimetrias no estoque de informação disponível aos
agentes. Contra a perspectiva da Economia dos Custos de Transação (ECT),
a chave analítica proposta para compreender a estruturação deste mercado
considera que os padrões de qualidade, em função dos quais se organizam as
transações, objetivam relações de poder. Estes padrões são manejados pelos
intermediários na comercialização de café commodity. O acesso dos produto-
res a canais de comercialização que sejam mais interessantes de sua perspec-
tiva passa pela construção de novos padrões de qualidade que se sustentam
em esquemas especícos de avaliação, suportados por determinados agentes e
mecanismos institucionais. De tal modo, procuramos nos posicionar critica-
mente à perspectiva neoinstitucionalista econômica e nos fundamentamos na
discussão da sociologia econômica sobre os mercados proposta por Bourdieu
(2005, 2006) e Fligstein (1996, 2001). Acreditamos ainda que os dados apre-
sentados pelo caso que analisamos traz elementos importantes para sustentar
uma crítica mais geral à ECT e fortalecer a proposta de uma análise socioló-
gica dos mercados.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 15 - Nº 33 - Maio./Ago. de 2016
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2 As mudanças no ambiente institucional do setor do
café a partir de 1990
O Instituto Brasileiro do Café (IBC) foi criado em 1952 e extinto em
1990. Durante sua existência, representou a fase de intervenção sistemática
do governo na cafeicultura por meio da formulação de um programa político
especíco para o setor3. Com a criação do IBC, o governo manteve a política
de defesa dos preços do café brasileiro no mercado internacional que já vinha
sendo desenvolvida, mas buscou também atuar de forma direta em todos os
segmentos da cadeia produtiva e comercial do café. O IBC se encarregava de
toda a política cafeeira tanto interna quanto externamente. Internamente, as
funções do IBC eram a proposição e acompanhamento da política econômi-
ca relacionada diretamente ao café. Isso incluía o controle dos preços, o que
era feito por meio da denição de preços de garantia e preços mínimos de
registro, controle de estoques e das exportações, incluindo a arrecadação da
quota de contribuição ou consco cambial. A política de controle dos preços
internos do café é anterior ao próprio IBC e constituiu o cerne da política
brasileira de defesa do café durante décadas. Sua existência se justicou pela
importância do café para a economia nacional, que foi o principal produto de
exportação durante boa parte dos séculos XIX e XX, apesar de ter implicado
em altos custos para o governo (BACHA, 1992). Além disso, devido ao fato
de que a pesquisa, extensão e crédito para a cafeicultura dependiam direta ou
indiretamente da atuação do IBC e este órgão concentrava o planejamento e
direcionamento das políticas nestas áreas, havia uma grande integração entre
as atividades governamentais de apoio e sustentação para a cadeia do café.
Em 1989, encerrou-se o último AIC, que não foi renovado, sobretudo
por pressões de países consumidores, como os EUA. A partir de então, o mer-
cado internacional de café passou a funcionar dentro dos parâmetros liberais,
extinguindo-se o sistema de cotas e qualquer participação direta dos Estados
sobre o comércio. O IBC foi extinto por meio da Lei Ordinária n. 8029, de
12 de abril de 1990. A extinção do IBC não implicou apenas em uma trans-
ferência de competências entre determinados órgãos públicos ou organizações
privadas, mas representou uma grande mudança nas relações entre o Estado e
3 O órgão que antecedeu imediatamente o IBC foi o DNC (Departamento Nacional do Café), que foi criado pelo
decreto n. 22.452, de 10 de fevereiro de 1933, e extinto pelo decreto-lei n. 9068, de 15 de março de 1946.

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