Um espectro ronda o princípio da continuidade

AutorGeovane de Assis Batista
CargoJuiz do Trabalho Substituto (TRT5-BA)
Páginas75-109

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1. Introdução

Assim como o homem, o vínculo de emprego tem início, meio e ?m; ambos estão fadados à ?nitude existencial. Quanto ao contrato, independentemente de ter sido engendrado por tempo determinado (certus an: onde o início e o ?m são previamente sabidos pelos contratantes), ou indeterminado (incertus quando: onde o começo do contrato é certo e o ?m, incerto), seu ?m ocorrerá ou por resilição bilateral (distrato), ou por iniciativa unilateral do empregado (demissão, ou despedida indireta) ou do empregador (despedida).

Não obstante a inevitabilidade da ?nitude dos contratos de duração indeterminada, a dogmática protecionista trabalhista, apoiada no princípio da continuidade do emprego, engendrou o instituto da estabilidade, deter-minando sintomática frenagem ao exercício potestativo resilitório do empregador. Assim é que, uma vez de?agrada a despedida de um empregado estável, a consequência jurídica é a inevitável declaração de nulidade com consequente determinação judicial mandamental reintegratória.

Sucede que, de modo recorrente, as cortes trabalhistas vêm enveredando pela conversão da reintegração em indenização substitutiva, fenômeno jurídico que vem depondo contra o princípio da continuidade. Importa, portanto, desocultar o fundamento jurídico ?losó?co capaz de arrostar um princípio tão caro ao Direito do Trabalho. A quem prejudica e a quem aproveita tal fenômeno? É possível refreá-lo?

Essas inquietudes ensejaram o presente estudo com tríplice objetivo: (I) noticiar que um espectro ronda o princípio da continuidade: o espectro do niilismo; (II) demonstrar que esse anátema vem constituindo prática judicial axiológica malfazeja também ao Direito do Trabalho — especialmente naqueles casos em que, no lugar de determinar a reintegração ao emprego do trabalhador estável, o Juiz envereda pela conversão em indenização substitutiva, sob o fundamento sumular consubstanciado no exaurimento do período estabilitário; (III) postular a hipótese de que, paradoxalmente, o niilismo (nietzschiano) oferece condições de possibilidade para potencialização e atualização do jus pós-positivismo jurídico contrafeito ao positivismo jurídico e a uma das expressões do capitalismo tardio, a saber: o neoliberalismo político-econômico.

Para consecução desses ?ns, a metodologia também é tríplice e fundada numa estrutura expositiva e descritiva, com ênfase nas perspectivas (1) jurídico-trabalhista, (2) ?losó?ca e (3) juris?losó?ca.

Sob a primeira, far-se-á uma rápida incursão epistemológica sobre os institutos do Direito do Trabalho, revisitando conceitos clássicos (como o da garantia no emprego, estabilidade, nulidade, reintegração e a indenização substitutiva), onde será trazido a lume o pensamento dominante da doutrina e da jurisprudência pretoriana juslaboralista, com exposição de ementas ilustrativas capazes de evidenciar o caráter empírico indutivo da investigação. Ainda, nessa linha cognitiva, serão

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expostas proposições a?rmativas e negativas acerca da possibilidade, ou não, da conversão da reintegração ao emprego em indenização substitutiva.

Na perspectiva ?losó?ca, cuidar-se-á do signi?cado operado pelo senso comum e ?losó?co sobre o niilismo, quando será tomado de empréstimo o pensamento de Parmênides, Platão e Nietzsche — este em especial, já que parece ter sido o ?lósofo contemporâneo que encetou ao niilismo uma conotação diametralmente oposta à concebida até então por seus antecessores e contemporâneos.

Finalmente, a partir de uma tessitura crítica juris?losó?ca, será exposta a tensão entre o niilismo (e seus modos de expressão: positivismo jurídico e neoliberalismo político-econômico) e a teorética do jus pós-positivismo jurídico estruturada na maximização dos princípios constitucionais direcionados à refutação da dissimetria social, econômica e política que se queira encetar aos autores e atores da relação empregatícia.

2. Desenvolvimento
2.1. Garantia no emprego

Na lição do Professor Luciano Martinez1, o instituto da garantia no emprego passou por três momentos importantes na historiogra?a juslaboralista brasileira. O primeiro deles foi revelado pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), ao consagrar duas garantias: uma básica e outra, especial. Diz-se básica aquela garantia reservada ao empregado contratado por tempo indeterminado e que tivesse na mesma empresa entre um e dez anos de serviço, e que cuja despedida implicasse pagamento de indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de efetivo serviço, ou por ano e fração igual ou superior a seis meses. Já a garantia especial signi?cava a manutenção no emprego do trabalhador que contasse com mais de dez anos de serviço prestados à mesma empresa, sendo vedado ao empregador o exercício da resilição unilateral do contrato, ante a estabilidade de?nitiva que protegia o obreiro.

Para Luciano Martinez, o segundo momento se revelou quando a estabilidade de?nitiva passou a conviver com o regime do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), onde ao empregado era dado o direito de optar por um ou por outro regime. Na esteira desse arbítrio, optando o empregado pela segunda sistemática, abdicaria da primeira e passaria a faz ius, mês a mês, ao recolhimento de 8% (oito por cento)sobre a remuneração; na hipótese de se ser despedido, contaria com a incidência indenizatória de dez por cento sobre o total dos depósitos realizados na conta vinculada do trabalhador2.

O terceiro momento, arremata o ilustre doutrinador, coincidiu com o advento da Constituição do Brasil de 1988, que, tornando obrigatória a observância do regime do FGTS, encetara duro golpe à garantia especial (estabili-dade de?nitiva), cuja subsistência concomitante se fez residualmente.

2.1.1. Sentido estrito

Luciano Martinez ensina ainda que a garantia de emprego, em sentido estrito, é uma das espécies da expressão “garantia no emprego”, que deve ser compreendida como a fórmula protecionista caracterizada pelo condicionamento do despedimento do empregado ao pagamento de indenização, enquanto artifício jurídico para desestimular a sanha potestativa patronal3. Pondera, todavia, que, se o empregador se revelasse insensível à injunção teleológica

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do legislador consolidado e, mesmo assim, procedesse à despedida, não haveria mais falar em reintegração, mas em simples pagamento indenizatório, por entender que, em tais casos, a dispensa não seria vedada.

Para Martinez, a prática da indenização compensatória tem sido progressivamente adotada como fórmula “substituinte da estabilidade”, citando como exemplos desse expediente a indenização devida pela rescisão de contrato por prazo indeterminado, correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço efetivo, ou por ano e fração igual ou superior a seis meses4; igualmente, a indenização de 40% sobre o FGTS; a indenização prevista para os casos de resilição patronal nos contratos que tenham termo estipulado5; a indenização paga para desestimular a dispensa sem justa causa durante o período da URV6; a indenização paga ao professor, na hipótese prevista no § 3º, do art. 322 da CLT e a indenização prevista no § 5º, do art. 476-A da CLT.

2.2. Estabilidade: conceito, natureza jurídica, definição e classificação

Ainda, na esteira da garantia no emprego, sobressai o instituto da estabilidade. Orlando Gomes e Elson Gottschalk7 confessam não encontrar facilidade para conceituá-la. Sem embargo, dizem, literalmente, que estável no emprego era aquele empregado que contasse com mais de dez anos de serviço na mesma empresa, situação em que, advertem, o empregado não poderia ser despedido, exceto por motivo de falta grave ou força maior — e desde que devidamente comprovado em inquérito judicial.

Todavia, para esses insignes juristas8, o conhecimento ontológico de um instituto jurídico não pode decorrer da simples leitura da de?nição legal, senão da investigação da natureza jurídica que encerra. Nessa perspectiva, anotam que, para muitos autores, a estabilidade tem natureza sui generis, porquanto relacionada à subjetividade de cada uma das partes do vínculo empregatício.

No que diz respeito à obrigação do empregador, possui os caracteres de um contrato por tempo determinado cujo termo ?nal é a cessação da vida pro?ssional do empregado. Portanto, do ponto de vista do empregador, a estabilidade seria um contrato a termo ?nal, segundo a fórmula: “certus na et incertus quando.” [...] No que diz respeito às obrigações do empregado, apresenta os caracteres próprios de um contrato de trabalho por tempo indeterminado. O interesse público de proteção à liberdade individual justi?ca a ruptura, pelo empregado, do vínculo jurídico, pois, do contrário, este o sujeitaria a liames perpétuos. A estabilidade vincula somente o empregador, garantido o empregado contra certas incertezas geradas pela precariedade da relação de emprego por tempo indeterminado9.

Participando da mesma di?culdade conceitual de Orlando Gomes e Elson Gottschalk, Martinez prefere de?nir a estabilidade como uma...

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