Por um direito do trabalho repersonalizado

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro
Páginas147-154

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1. O exemplo do direito civil

O Direito Civil sofreu o processo de constitucionalização a partir da promulgação da Constituição da República em 1988, o que culminou na edição de um novo Código Civil em 2002.

O Constituinte de 1988 deixou um importante legado e uma verdadeira missão de redefinição do modelo jurídico vigente, na medida em que alicerçou o Brasil no Princípio da Dignidade Humana, colocando o ser humano no centro da sua normatividade.

A doutrina civilista, desde então, passou em parte a adotar a nomenclatura do Direito Civil Constitucional para enfatizar o importante movimento de redemocratização vivenciado no país.

Farias afirma que a utilização do Direito Civil Constitucional tem por finalidade ressaltar a necessária releitura do Direito Civil, que passa a redefinir suas categorias jurídicas civilistas, partindo agora dos princípios que fundamentam a ordem constitucional, tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a solidariedade social (art. 3º, III) e a igualdade substancial (arts. 3º e 5º)1.

A colocação do ser humano no cerne da tábua axiológica constitucional é um importante indicador do nível de demo-cracia de um país. A Democracia diz respeito a um sistema político que se arrima em princípios afirmadores da liberdade e de igualdade e no compromisso de a condução da vida social se realizar de acordo com esses ditames.2

Não obstante a imprecisão que o termo Democracia possa levantar, seu compromisso com os valores insculpidos na Constituição já diz bastante do tipo de Estado que pretende ser democrático, a começar pelo grau de intervenção do poder público na esfera privada. Nesse aspecto, encontramos Estados formalmente democráticos, com excesso de legislação simbólica3, e Estados materialmente democráticos.

A propósito, Miguel Reale fala em Constitucionalização do Direito Civil e, citando Pontes de Miranda, salienta que este fato é da maior importância para o processo da democratização do País, já que a passagem dos direitos e liberdades às constituições representa uma das maiores conquistas políticas da invenção humana, considerando-o como a invenção da democracia4.

No entanto, embora a constitucionalização do Direito Civil seja apontada como um importante passo para o processo de redemocratização do país, ela representou muito mais uma decorrência natural do processo de constitucionalização da própria organização social e econômica que caracterizam o modelo de Estado Democrático de Direito contemporâneo. Porém, mais do que isso, representa um avanço irretroativo no sentido da valorização da pessoa humana em detrimento do patrimonialismo predominante no antigo Código Civil.

De fato, no contexto do liberalismo típico do superado Estado Liberal de Direito, havia uma supervalorização do individual, porém, não necessariamente uma valorização do indivíduo em suas diferenças e em sua dignidade humana, pois o Estado era colocado em posição inerte e passiva, a ele cabendo tão somente o respeito à esfera privada.

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Assim, a relação entre as esferas pública e privada retratavam o próprio contexto histórico de uma época em que o sistema capitalista era dominado pela economia de mercado e cujo modelo de Estado era o liberal. Mas, consequentemente, a igualdade dos liberais é apenas formal e como o Estado não intervinha na esfera privada, notava-se uma separação muito nítida entre o Governo e a sociedade civil, que Norberto Bobbio batizou de a grande "dicotomia" entre as esferas pública e privada, considerando-a a distinção mais marcante do que qualquer outra na teoria do Direito5.

Então, embora houvesse a extrema valorização do indivíduo, havia um total distanciamento e falta de penetração do Direito Constitucional no Direito Privado, o que levava este ramo a observar tão somente a autonomia privada e a igual-dade formal, dividindo a sociedade e o Estado, a política e a economia, o direito e a moral. Segundo Paulo Lôbo, "nenhum ramo do direito era mais distante do direito constitucional do que o Direito Civil, que em contraposição à constituição política, era cogitado como constituição do homem comum, máxime depois do processo de codificação liberal6.

Enfim, imperava nesse período a lógica de um direito público para disciplinar o Estado, sua organização e seu funcionamento; e um direito privado para regrar relações contratuais e econômicas entre os indivíduos da sociedade civil, sempre sob os signos da plena liberdade e da propriedade absoluta. E esses signos estavam estruturados em todos os códigos civis que surgiram no primeiro ciclo das codificações7.

Desta forma, o Estado Liberal acabou se caracterizando como um Estado alheio aos problemas sociais e descompromissado com a igualdade substancial.

Eugênio Facchini Neto revela que a liberdade dos burgueses (Estado Liberal), no entanto, teve seus méritos ao se contrapor à liberdade dos antigos (Estado Antigo), ou seja, foi no Estado liberal que se franqueou aos cidadãos a intervenção no espaço público, pois consistia na possibilidade de o indivíduo decidir livremente, sem qualquer intervenção estatal, todos os assuntos que lhe diziam respeito, isto é, de tomar soberanamente todas as decisões concernentes à sua vida privada. Daí o endeusamento da autonomia privada e do seu consectário, no campo negocial, a liberdade contratual8.

No entanto, Fábio Konder Comparato demonstra uma curiosa contradição pois, ao analisar o processo de codificação, observa que embora a Revolução Francesa tenha permitido a abolição das classes estamentais, acabou reduzindo a sociedade civil a um conjunto de indivíduos abstratos e egoístas. Ao mesmo tempo em que a filosofia iluminista, por meio da razão, substituiu o império da tradição pela liber-dade, esta liberdade individual concebia a política como mero instrumento de conservação de uma sociedade dominada pela burguesia9.

Esse modelo de relacionamento entre o público e o privado, típico do Estado liberal de direito, é concebido também como "modelo da incomunicabilidade", na medida em que a Constituição e o Código Civil se encontravam apenas no aspecto formal e caminhavam paralelamente: a Constituição regrando o Estado e o homem político; e o Código Civil como império da sociedade civil e do sujeito proprietário e cidadão10, ou seja, o Código Civil, fincado na igualdade formal, exigia uma postura omissa do Estado, consagrando liberdades ditas negativas. Em verdade, pode-se dizer que o Código Civil desempenhava o papel de Constituição e estava sempre a favor do valor fundamental do liberalismo: o sujeito livre e (formalmente) igual.

Não obstante, em um campo eminentemente político, esta neutralidade é questionável, pois a contratualidade clássica acaba separando o espaço público da esfera privada e reservando para o Estado uma função supostamente ‘imparcial’ de garantidor do ato negocial11.

Com o advento do Estado social e a implementação do Welfare State (nos EUA), há uma inversão na trajetória de emancipação da sociedade civil perante o Estado, passando a se delinear uma maior prevalência do público sobre o privado, mediante intervencionismo estatal e a caracterização de um Estado promocional.

Esta mudança pode ser notada pela diminuição dos limites impostos à atuação do Estado, que vai aos poucos se reapropriando do espaço conquistado pela sociedade civil burguesa e sedimentando um Estado que não deixa qualquer assunto alheio à sua atuação12.

Norberto Bobbio, ao constatar uma sociedade tão profundamente permeada pelo Estado social, "ao ponto de transformar o próprio direito", percebe que "à função repressiva dos comportamentos indesejados se une uma crescente função promocional, manifestada pelos incentivos com os quais o Estado induz aos comportamentos desejados"13.

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Bobbio analisa o processo inverso à distinção entre a sociedade civil e o Estado, e afirma que onde a intervenção do poder público na esfera dos interesses econômicos cresce ao invés de recuar, as concepções tradicionais de direito mostram-se inapropriadas, "como vestidos que se tornaram demasiado apertados para um corpo que, de repente, cresceu"14.

O Direito Civil então sofre sua primeira grande transformação, pois um novo enfoque é atribuído à ordem pública pela releitura do Direito Civil à luz da Constituição. Diferentemente do Estado liberal, no Estado social, busca-se ressaltar "valores não patrimoniais" pelos quais a dignidade do ser humano deve ser efetivada e o desenvolvimento de sua personalidade garantido. O Estado passa a "promover os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais"15.

O Direito Civil até então impregnado de ideologia liberal e com pretensões centralizadoras e totalizantes da codificação não apresentava mais soluções para regular em contento às novas exigências sociais16.

As mudanças ocorridas na passagem do Estado liberal para o Estado social representaram transformação completa no próprio ordenamento jurídico. O Estado abandona a posição passiva de proteção da propriedade e do interesse exclusivamente individual e passa a promover a efetivação da dignidade da pessoa humana.

O Código Civil se apresenta com nova tônica, pois também passa a coordenar o público e o privado. Em sua normatividade são inseridos princípios e valores voltados à efetivação da dignidade da pessoa humana e o exercício de valores não patrimoniais.

No contexto de um Estado Social de Direito, de viés intervencionista e promotor de políticas públicas, não é mais concebível um Direito Civil impenetrável pelo direito público. Assim, o Estado social se reveste de uma postura ativa e passa a interferir na regulamentação das relações privadas, em busca pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pela efetivação dos direitos sociais.

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