Um Direito Constitucional Penal Militar?

AutorFrederico Magno de Melo Veras
Páginas47-57

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O curso do qual este relatório é apenas modesto corolário, cuida do Direito Constitucional Penal, incluindo os valores e critérios que limitam e conformam o Direito Penal a partir do texto constitucional38. Sendo o caso de verificar-se se nas Constituições brasileira e portuguesa existem disposições capazes de dar uma tônica característica ao Direito Penal Militar39, especialmente no que se refere à questão da culpa penal militar. Sirvo-me deste capítulo para fazer esta

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verificação de forma parcial, centrando-me muito mais na CRP, como se verá adiante.

Todo o Direito Penal deve amoldar-se à Constituição40, porém, sob este aspecto, além da obrigatória observância às garantias e liberdades constitucionais, deverá ater-se aos próprios valores constitucionais41. Tendo-se em mente a constituição de um Estado Democrático de Direito, fruto do acerto político possível entre as diversas expressões sociais representadas no órgão constituinte, pode-se imaginar que ao legislador ordinário não será possível erigir em crimes as condutas que não forem socialmente reprováveis, quer de forma absoluta, quer pela indução a um prejuízo social a ser evitado.

O legislador penal punirá o que evidentemente for reprovável em termos sociais, v.g., o homicídio, o roubo e a violação, bem como novas molduras cuja reprovação so-

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cial seja notória, por exemplo, a produção de pornografia infantil para difusão no sistema informático (art. 9º, 1, a), da Convenção sobre o Cibercrime do Conselho da Europa. Além destes, o legislador penal prevê uma série de condutas delitivas que, além de terem uma carga de reprovabilidade social menor, podem não obter um consenso social a respeito da sua necessidade e conveniência, mormente se tratando de crimes relacionados com a sociedade de risco e com a ordem tributária42.

Pois bem, no campo do Direito Penal Militar, existem delitos de inegável gravidade, como a traição à Pátria e os crimes de guerra cometidos contra populações civis indefesas. Ao lado destes, existem diversos outros que só possuem valor dentro da sociedade militar, sendo perfeitamente indiferentes em termos de reprovabilidade no âmbito da sociedade civil. A esta segunda categoria, pertencem, v.g., o abandono de posto e o incumprimento dos deveres de serviço.

Seria fácil ver na última categoria de crimes militares, principalmente ao refietir-se sobre a sua prática em tempo de paz, como delitos de menor importância. Ocorre que, no âmbito restrito da sociedade castrense, tais delitos são clássicos, sendo impensável para o militar que certas condutas relativas ao cumprimento do dever militar não sejam passíveis de punição.

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Sob o prisma constitucional, há uma igualdade formal entre todos os cidadãos. Porém, esta igualdade se equilibra sob o fio condutor das normas constitucionais.

Tome-se o seguinte exemplo: o Presidente da República Portuguesa comete um crime no exercício de suas funções, descoberto o crime, por este responderá perante o Supremo Tribunal de Justiça. A iniciativa do processo será da Assembléia da República e dependerá de quorum qualificado, sendo constitucionalmente previstas como penas acessórias a destituição do cargo e a impossibilidade da reeleição.

No exemplo dado, pode-se verificar que:

  1. apesar de ser uma pessoa igual às demais, igualdade formal, como o Presidente exerce uma função especial, pode potencialmente praticar certas modalidades de crimes de responsabilidade dos titulares de cargos públicos (Lei n. 34/87, de 16 de Julho);

  2. o órgão judicial com competência originária para o julgamento é uma corte que habitualmente julga recursos em terceira instância;

  3. o órgão acusatório não é o Ministério Público, mas sim um órgão essencialmente político; e

  4. existe uma previsão constitucional quanto a penas acessórias decorrentes da eventual condenação.

    O exemplo talvez seja um pouco extremado, mas visa a destacar que, para certos cidadãos que exercem determinadas funções estatais, se criam regras penais e processuais penais próprias. Diante disso, pergunto: qual é a função constitucional prevista para o militar?

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    Na resposta à indagação feita e, por falta de espaço nesta obra concentrar-me-ei na Constituição da República Portuguesa, até por haver uma certa similitude entre esta e a Constituição Federal brasileira43na delimitação constitucional do papel das Forças Armadas.

    A defesa da Pátria não é função privativa dos militares, pois prevê o Artigo 276.º que esta "é direito e dever funda-mental de todos os portugueses".

    Para entender-se qual seria a função militar, ter-se-ia de analisar o art. 275.º da CRP, verificando-se que às Forças Armadas incumbe:

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    a) "a defesa militar da República" (n.º 1): não se confunda a defesa da República com a defesa da Pátria, esta última está relacionada a agressões externas, enquanto a defesa militar da República está relacionada com a defesa desta forma de governo contra forças internas e externas44;

    b) "a satisfação dos compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte" (n.º 5);

    c) "colaborar em missões de protecção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da...

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