Um conflito da Constituicao com ela mesma? Poder destituinte e o desafio transnacional.

AutorMoller, Kolja

O conceito de poder constituinte tornou-se um importante vertente de discussao na teoria politica e juridica internacional. (1) A questao colocada e se poder constituinte pode ser transferido para a esfera inter e transnacional. A primeira vista, parece tratar-se de uma questao delicada. O poder constituinte esta intrinsecamente ligado a dimensao fundamental do processo constituinte: Uma comunidade politica concebe a si mesma como um poder supremo (ou e, retroativamente, construida nesse sentido) e estabelece um modo de autogoverno coletivo por meio de uma ordem juridica de hierarquia superior. (2) Mas, encarando a pluralidade de regimes juridicos transnacionais e comunidades politicas em nosso mundo contemporaneo, e dificil discernir o equivalente a uma "vontade" fundamental comum, que, no texto referencia do abade Sieyes, constitui-se "independente" de "todas as formas e condicoes". (3) Alem disso, os concomitantes holisticos do poder constituinte (remanescentes do direito canonico catolico) podem ser um duvidoso ponto de partida para um ressurgimento ao nivel transnacional. (4) A primeira vista, pode parecer mais promissor abordar os desafios normativos da esfera transnacional atraves de explicacoes baseadas em direitos ou, simplesmente, no estado de direito, que sao mais propensas a serem totalmente internalizados em um sistema juridico coerente, sem apelar a nacao ou ao povo. (5)

O crescente interesse no papel do poder constituinte e impulsionado por um certo desconforto com os deficits democraticos e o vies tecnocrata do constitucionalismo transnacional. Sob uma variedade de rotulos, tais quais o "novo constitucionalismo", (6) o "estado global imperial em formacao" (7) ou o "federalismo executivo pos-democratico" (8), indica-se que o constitucionalismo transnacional funciona como um dispositivo egoista para as elites politicas e economicas ou para os sistemas sociais funcionais. Nesta perspectiva, o constitucionalismo transnacional se fecha para seus vinculos com a legitimidade democratica e, de fato, deixa de oferecer uma conexao significativa com o poder constituinte.

Mais especificamente, duas tendencias sao responsaveis por induzir efeitos hegemonicos. A primeira tendencia e uma usurpacao procedimental do poder constituinte. Os exemplos paradigmaticos vao desde o decisionismo politico de estados poderosos e praticas de constitucionalizacao externa (por exemplo, quando os advogados ocidentais implementam e, ate mesmo, escrevem textos constitucionais para os paises do sul global) a observacao de uma nascente juristocracia global. (9) Nestes casos, os poderes ja constituidos, como tribunais ou poderes executivos, usurpam competencias constituintes sem fornecer a legitimacao democratica necessaria. A segunda tendencia consiste na constitucionalizacao de projetos hegemonicos em bases materiais. As bolsas escolares juridicas transnacionais e a Economia Politica Internacional (EPI) enfatizam o papel de projetos politicos que estao inscritos nas ordens juridicas de hierarquia superior. (10) Os exemplos mais impactantes derivam da economia transnacional. Nela, as politicas neoliberais eram dignificadas como compromissos prioritarios nos respectivos acordos e jurisdicoes. Apesar de toda a pluralidade, a maioria das instituicoes e regulamentos sao tendenciosos em direcao ao livre comercio e a uma nocao liberal da propriedade privada. (11) Isto restringe severamente as opcoes politicas disponiveis no processo politico regular em todos os niveis de tomada de decisoes politicas e tende a minar a autorregularao democratica.

A via obvia para contestar essas tendencias consiste na evocacao de um poder fundamental que, possivelmente, retome o necessario questionamento dos projetos hegemonicos. (12) Ao contrario de ser considerada obsoleta, uma concepcao reformulada do poder constituinte deve colocar em evidencia os deficits mencionados. Assim, deve se tornar possivel identificar lacunas aparentes de legitimidade, bem como deficiencias democraticas e materiais. No entanto, continua sendo uma questao aberta como conceber o poder constituinte para alem do estado, na ausencia de seu ponto de referencia herdado: um povo claramente demarcado em um determinado territorio. (13)

No presente artigo, discuto alguns dos problemas que surgem com a transferencia do poder constituinte para a esfera transnacional. Tanto no nivel conceitual, como em relacao aos contextos transnacionais, vou argumentar que devemos conceber o poder constituinte como um "poder destituinte". Esse giro negativo revigora uma caracteristica particular do raciocinio sobre o poder constituinte, que remete a teoria politica de Maquiavel e do jovem Karl Marx. (14) Como vou mostrar, esta linha de pensamento fornece amplos recursos para uma critica das hegemonias existentes no constitucionalismo transnacional.

O argumento prossegue em tres etapas: Na primeira parte, eu realoco o papel do povo. Um ponto de partida promissor pode ser encontrado na sociologia constitucional recente. Nela, as pessoas nao sao vistas como um agente unitario ou coletivo, mas, simplesmente, como um mecanismo comunicativo que assume uma funcao peculiar em relacionar o sistema politico ao juridico, e vice-versa. (15) O poder constituinte equivale a um mecanismo generalizado de des-paradoxalizacao que nao esta vinculado a uma comunidade politica pre-existente. No entanto, este movimento radical mostra as suas fraquezas quando se trata de uma critica ao constitucionalismo transnacional. Ele se baseia numa concepcao excessivamente generalizada, que nao e capaz de distinguir as tendencias usurpadoras desde "acima", que emana dos poderes ja constituidos, das variantes democraticas, como os contraciclos desde "abaixo".

Na segunda parte, debato abordagens que restabelecem uma explicita conexao com aspiracoes democraticas. Mais especificamente, serao discutidas as abordagens baseadas na soberania popular e na sociedade. Ou o poder constituinte e colapsado em um procedimentalismo do direito publico reconstrutivo (transnacionalizacao da soberania popular), ou vinculado a um reflexividade funcional (constitucionalismo societario), ou identificado com o "povo" do estado-nacao (soberania baseada no estado-nacao). Em todos estes casos, continua a ser uma questao em aberto a forma de lidar com a interacao da usurpacao procedimental e da sobredeterminacao substantivahegemonica.

Finalmente, no terceira parte, eu desenho outra opcao: reconstruir o poder constituinte como um dispositivo negativo. Ao revisitar uma linha de pensamento que remonta a Maquiavel e Marx, argumenta-se que o poder constituinte e expresso atraves de cenarios revogatorios que abrem vias para uma re-negociacao das ordens existentes.

  1. Poder constituinte como dispositivo funcional

    O poder constituinte encontrou uma variedade de expressoes e usos historicos. E uma categoria de direito constitucional que evoluiu ao longo dos seculos e desempenha um papel importante na vida politica. (16) Lideres politicos e movimentos apelam para o "noso-povo". Eles reforcam seus respectivos interesses invocando uma dimensao fundamental da comunidade politica. (17) Mesmo no coracao do poder constituinte, a Franca, a pioneira invocacao de "la nation" pelo Abbe Sieyes durante a Revolucao Francesa foi interpretada de varias maneiras. (18) Sempre foi uma questao controversa como a nacao poderia ser representada ou personificada, quem pertencia ao povo frances, ou o qual seria o criterio de definicao. Desde o inicio, permaneceu aberta a questao se o poder constituinte pertencia a ninguem e foi reduzido a uma figura de imaginacao puramente legal, ou se pertencia a todos em um fluido "plebiscite de tous les jours" (19) no plano social, ou se foi definido por um grupo de representantes esclarecidos e ativistas politicos.

    A sociologia constitucional contribuiu fortemente na elucidacao desta duvida. De acordo com Gunther Teubner, Niklas Luhmann e Chris Thornhill, um olhar mais atento a intersecao da evolucao social e a semantica constitucional revela que seria completamente equivocado simplesmente esperar esclarecimentos normativos. (20) Eles argumentam que o discurso atrativo sobre "nos-o-povo" ou "la nation" exagera que o poder constituinte sirva como um mecanismo funcional, o qual desencadeou a evolucao do sistema juridico e politico nas sociedades modernas. Ao se basear no poder constituinte, foi possivel externalizar os respectivos paradoxos fundamentais no direito e na politica e, assim, ocultar as bases paradoxais em que ambos os sistemas residem.

    Do ponto de vista da teoria dos sistemas, o direito e a politica sao baseados em comunicacoes autorreferenciais que giram em torno de codigos binarios: (21) legal/ilega l, no caso do sistema legal, e, poderoso/impotente, no caso do sistema politico. Se indagarmos mais sobre a autorreferencia desses codigos, encontramos a questao da autoridade e, mais notavelmente, o "paradoxo fundacional" em ambos os sistemas. (22) Por paradoxo fundacional, temos que entender o seguinte: nao esta claro se o estabelecimento do codigo foi em si legal ou ilegal, ou se pode ser considerado como uma expressao de superioridade de poder ou de inferioridade de poder. Esses fundamentos paradoxais representam uma cortina de fumaca. Por um lado, os sistemas sociais inventam mecanismos para esconder suas origens paradoxais e para se apresentar como necessarios e viaveis. Por outro lado, eles podem usar explicitamente a estrutura basica paradoxal para se adaptar em um ambiente social em mudanca e rever o que consideram como "legal" ou "poderoso".

    Uma vez que o poder constituinte esta preocupado com a autorizacao, mostra uma conexao direta com o paradoxo fundacional. Mais especificamente, o direito e a politica externalizam seus respectivos paradoxos fundacionais por forca do poder constituinte. Do ponto de vista do sistema juridico, o estabelecimento do codigo legal/ilegal remonta a um ato politico fundador que e (pelo menos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT