Tutela jurisdicional diferenciada

AutorJosé Wellington Bezerra da Costa Neto
Páginas393-436

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38. Introdução: aspectos históricos

O Poder Judiciário no cenário absolutista era rigorosamente submisso à vontade soberana do rei, e a função jurisdicional nada mais era que instrumento de opressão da sociedade, em especial das classes mais humildes. Com a queda do absolutismo e a emergência do Estado Liberal clássico, centrado no homem, o processo assume as seguintes características: i) excessiva neutralidade do juiz, exacerbando-se a valorização da iniciativa das partes; ii) valorização das formas procedimentais; iii) condicionamento da atividade executiva à coisa julgada; iv) distanciamento do direito processual do material; v) elevação da coisa julgada ao nível de dogma; vi) excesso de tecnicismo, com estanque repartição das tutelas cognitiva; executiva e cautelar916.

O descortinamento da ciência processual como ramo autônomo está imerso no contexto filosófico-político do iluminismo racionalista e liberalismo como doutrina econômica correspondente. Neste quadrante, a máxima expressão do ser humano é a razão. Assume primazia o princípio da segurança jurídica, que conduz à supervalorização do processo ordinário de cognição plena, relegando-se a segundo plano as formas sumárias que já desde o Direito Romano existiam917.

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Mais ou menos na mesma linha das características já enumeradas, Monroy Palacios e Monroy Gálvez pontuam igualmente as características que, na sua visão, ressaltam do processo imerso no contexto político, econômico e social liberal-clássico: i) neutralidade do juiz: o juiz liberal, como afirmam, padece do mal de Pilatos (não assume responsabilidade pelos efeitos de sua decisão), confundindo-se independência com indiferença; ii) defesa da autonomia da vontade: serve o processo como meio de que se valem as partes com a única finalidade de regular seus negócios, portanto, deve estar sob controle absoluto destas (com realce, então, ao princípio dispositivo); iii) incoercibilidade do "fazer": severa limitação imposta à tutela específica deste tipo de obrigação, com proeminência da liberdade individual; iv) repúdio às formas sumárias de tutela: porque desprestigiam o princípio da segurança jurídica e geravam situação de incerteza918.

O pós revolução francesa envolve o desvio de foco do indivíduo para a sociedade, com o reconhecimento de interesses supraindividuais. A superação do Estado Liberal com a passagem ao chamado Welfare State envolve a configuração do Estado como agente realizador de direitos, e os procedimentos judiciais forjados no século XIX mostravam-se ineficazes à persecução da justiça então almejada. O direito de ação evolui para se caracterizar como uma das principais garantias de paz social e de realização política dos ideais da nação919.

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Apenas a partir da metade do século XX o influxo de princípios como da instrumentalidade e da economia processuais conduzem à mudança de caráter do papel do processo no corpo social, quando então se retoma a visão de conexão entre o direito processual e o material, o chamado processo civil de resultados920.

Ao fim da primeira guerra mundial as características das relações sociais se modificam, com a ascensão das maiorias, surgindo o embrião daquilo que posteriormente veio a ser denominado sociedade de massas. A natureza dos direitos materiais nesta conjuntura também sofre mudanças, pois passam agora de direitos privados a direitos sociais: coletivos, difusos ou públicos921.

As principais características destes novos direitos são o serem infungíveis (ou seja, impossível a substituição por equivalentes) e não comportarem a espera de um processo ordinário para seu reconhecimento, pena de converterem-se em definitivo agravo ao titular.

Unem-se então os elementos apontados: o reconhecimento do influxo de princípios como da instrumentalidade e efetividade processuais; a superação dos excessos da fase autonomista, com a reaproximação do processo em relação ao direito material. Tudo isto conspira na conformação da tutela jurisdicional a formas diferenciadas922.

A chamada judiciabilidade dos interesses coletivos em sentido lato, afastando a deletéria atomização, conduz à potencialização da resposta judiciária de eficácia expandida, tornando o processo instrumento de reivindicações sociais de largo espectro, impulsionando irremediavelmente o juiz a deixar a clássica posição de neutralidade a se engajar no esforço

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geral pela melhor gestão da coisa pública e a preservação do interesse geral da sociedade923.

Portanto, com a evolução ao Estado Social, a técnica processual igualmente evolui, assumindo novas feições: i) postura mais ativa do juiz, menor neutralidade e maior iniciativa no comando do processo; ii) atuação do juiz no sentido de promover a efetiva igualdade das partes em juízo, como alvo do devido processo legal; iii) supremacia das técnicas de efetividade sobre o formalismo exagerado e cego; iv) valorização máxima da instrumentalidade; v) abrandamento do dogma da coisa julgada; vi) remodelação das técnicas executivas, para que melhor se predisponham aos resultados práticos esperados, com a adoção de técnicas de tutela diferenciada e sumarização; vii) abrandamento da divisão estanque entre tutelas cognitiva, executiva e cautelar; viii) simplificação das técnicas executivas, conferindo-se ao juiz maior liberdade de escolha daquelas que se amoldem ao caso concreto.

Obviamente que esta evolução liga-se ao fato de que Estados liberal e social atribuem ao Judiciário funções políticas diversas, embora não excludentes. Num primeiro momento, conferir eficácia aos direitos individuais, resolvendo conflitos interindividuais (liberalismo clássico); em seguida, cumulativamente com aquela primeira função, fiscalizar o respeito aos direitos sociais e impelir o Estado a uma atuação compensatória e distributiva (Welfare State)924.

No século XXI chega-se às culminâncias de um processo que vem se desenvolvendo desde o pós-Segunda Guerra Mundial que tem como principais traços característicos: i) constitucionalização da ordem jurídica; ii) devido processo legal que ultrapassa a ideia de simplesmente compor litígios, assumindo pesados compromissos éticos com resultados justos;

iii) incorporação de valores éticos sobre o resultado substancial do provimento, falando-se na garantia do processo justo925.

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Superados os excessos da fase autonomista da ciência processual reacendeu-se a preocupação com a função básica da jurisdição, atrelada ao direito material.

"Razões dessa natureza evidenciam que os institutos básicos do direito processual – e dentre eles o direito de ação e a classificação das ações – não podem permanecer enfocados dentro de prismas separados e incompatíveis com a visão contemporânea da missão atribuída à jurisdição" 926.

As preocupações, então, desviam-se para os verdadeiros problemas da justiça: custo elevado; morosidade; falta de estrutura material, etc. Ou seja, o momento pós-autonomista permite a reaproximação entre direito material e processual. Mais que isto, proporciona a realocação de ambos em posições próprias um em relação ao outro. Reconhece-se o que Humberto Theodoro Jr chamou de vínculo genético entre direito substancial e processo: não podendo o cidadão, salvo raras exceções, defender por si seu direito, deverá submeter-se ao instrumento pré-ordenado pelo Estado para tanto, o qual deve, por sua vez, contar com medidas adequadas às necessidades do direito substancial927. Obtempera Bedaque, neste sentido, que quanto mais a tutela jurisdicional aderir ao direito substancial mais perto se estará da verdadeira paz social928.

Um valor marcante que flui desde os albores do Estado Social, e perpassa ao contexto contemporâneo, é a superação do modelo de imparcialidade judicial identificada com a neutralidade ou mesmo a indiferença pelo resultado do processo. Os compromissos éticos que agora pesam so-

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bre a atividade jurisdicional somente podem ser cumpridos mediante a atuação judicial progatonista.

Neste contexto, os poderes do juiz são pressupostos necessários ao exercício das funções que lhe são atribuídas com caráter de dever, porém contêm implicitamente requisitos éticos que igualmente estão atrelados ao adimplemento destes mesmos deveres judiciários929.

Cuida-se, é certo, de visão foco de críticas. Dierle Nunes, por exemplo, posta-se contrariamente ao atrelamento das noções de ativismo judicial e diferenciação de tutela. Afirma que se trata de uma falácia a "credulidade romântica" no ativismo técnico processual voltado ao caso concreto, em face das peculiaridades deste. Seu argumento básico é de que o magistrado brasileiro não possui tempo e infraestrutura para sopesar no caso concreto quais as melhores opções procedimentais930.

Não nos parece que a falta de infraestrutura e tempo possam se justificar se negligencie poder que deriva das atribuições funcionais do Poder Judiciário no Estado Pós-Social. Melhor do que mutilar a função jurisdicional é dotá-la da infraestrutura e do tempo necessários ao pleno exercício destas atribuições. Parece que esta posição subverte os valores em jogo. A falta de estrutura material para exercício adequado do poder estatal não o elimina, pois que atribuído por ímpeto constitucional.

39. Fundamentos teóricos

A relação entre direito de ação e tutela jurisdicional contém três graus de intensidade: a) poder incondicionado e vago, é o chamado direito de demanda; b) direito de obter o provimento de mérito; c) direito ao provimento favorável, que exige, além dos pressupostos próprios ao ins-

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trumento processual, o atendimento aos requisitos de direito material. Este terceiro momento somente será verdadeiramente atendido quando preordenados instrumentos que assegurem uma tutela...

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