A garantia constitucional à tutela interdital: a especificidade da tutela específica

AutorFlávio Luís de Oliveira/Carlos Eduardo de Freitas Fazoli
CargoMestre e Doutor em Direito - UFPR/Mestrando em Direito - ITE/Bauru
Páginas145-153

Flávio Luís de Oliveira1

Carlos Eduardo de Freitas Fazoli2

Page 145

1 Introdução

A despeito de o direito do acesso à justiça já estar previsto no artigo 5° da Carta Magna, a Emenda Constitucional n° 48/2004 trouxe expressamente a garantia da razoável duração do processo. Todavia, ainda é preciso avançar no estudo da tutela constitucional do processo como forma de garantir o devido acesso à justiça, bem como a razoável duração do processo. Uma tutela jurisdicional que reconheça um direito fundamental deve ser prestada em um tempo útil ao demandante. De nada adianta uma jurisdição tardia e ineficaz. Para isso, necessitamos de tutelas diferenciadas como forma de garantir a realização dos pronunciamentos jurisdicionais. Da CartaPage 146 surge o direito à construção de procedimentos adequados e técnicas processuais aptas a concretizar o mandamento constitucional.

Diante de uma necessidade, o operador do direito deve ter à sua disposição meios que lhe proporcionem a tutela específica ao seu caso, mormente quando falamos em direitos fundamentais. O processo civil não pode mais passar à margem do interesse material protegido3 . Cada espécie de direito deve ter um procedimento e uma tutela a protegê-lo. Ainda, "é preciso que o autor possa se valer das técnicas processuais hábeis à efetiva tutela do direito material"4 . Um direito não pode, portanto, receber o mesmo tratamento de uma mera pretensão.

É que o procedimento deve sempre adaptar-se às necessidades do direito e da relação jurídica material. As exigências da dinâmica dos direitos absolutos são necessariamente diversas das concernentes aos direitos relativos. Por isso, não é possível considerar o direito processual como algo separado e independente do direito material. Vincula-os um nexo permanente de finalidade e de fidelidade instrumental5.

Com a evolução social, observamos que o individualismo deu lugar às necessidades coletivas e sociais. Não há mais espaço para procedimentos longos, meramente formais e que não trazem efetividade, ou seja, resultado prático ao caso concreto. Precisamos de procedimentos céleres, afinal, "num ambiente de individualidade jurídica, o rito processual se torna lento, pesado, longo no tempo. Na medida, porém, em que preponderem valores sociais, a tendência se inverte, em favor do procedimento sumário"6 .

Se faz necessária a diferenciação de procedimentos, ações e tutelas, inclusive, para equilibrar os ônus decorrentes do trâmite processual. Ovídio Araújo Baptista da Silva, em precisa lição, nos traz o problema de um mesmo procedimento aplicado a situações diferente:

[...] como o Processo de Conhecimento é necessariamente ordinário, posto que a relação processual 'termina com a sentença' (Buzaid), a proclamada igualdade das partes torna-se exclusivamente igualdade formal, no sentido de que a ambas as partes a lei assegura as mesmas oportunidades de ataque e defesa, sem levar em conta que, durante o longo e fatigante percurso do procedimento ordinário, o status quo ante é mantido em benefício do demandado, de tal sorte que o custo do processo - correspondente ao tempo necessário a que o Estado se convença de que o autor tem razão - é descarregado inteiramente sobre os ombros do demandante7

Com efeito, a tutela interdital, de origem romana, protegia direitos e não meras pretensões. Era uma especificidade da tutela específica. Assim, pode ser usada como paradigma na nossa busca de um procedimento adequado a propiciar a efetividade processual dos direitos fundamentais.

Antes de prosseguirmos, porém, é imperioso deixar clara a diferenciação entre obrigação em sentido amplo, obrigação em sentido estrito, dever, direito e pretensão.

2 Direitos versus pretensões

Obrigação (sentido lato) é o gênero do qual o dever jurídico e a obrigação em sentido estrito são espécies. Numa relação jurídica, o direito se opõe ao dever. Já a pretensão se opõe à obrigação em sentido estrito. Primeiro nasce o direito. Em momento posterior, após a violação do direito, pode surgir a pretensão.

Nesta linha, temos o ensinamento de Pontes de Miranda:

Dever corresponde a direito; obrigação, a pretensão. Todos têm o dever de atendimento dos direitos de personalidade e de propriedade. Daí falar-se em responsabilidade civil quando se trata de dano. Há dever, que foi violado; alguns juristas mal se dão conta de que o ato é ilícito porque houve violação de algum dever, que não se origina da regra jurídica, logicamente posterior, sobre responsabilidade pelo ato ilícito. Porque à pretensão é que corresponde a obrigação, há direitos sem pretensão e pois, do outro lado, sem obrigação. Não, porém, obrigações sem dever [...]8

Eros Roberto Grau, em primorosa lição, nos ensina que "o dever jurídico consubstancia precisamente uma vinculação ou limitação imposta à vontade de quem por ele alcançado"9 . Como decorre da lei, o dever deve ser cumprido compulsoriamente, já que o seu não-atendimento configura um comportamento ilícito, acarretando uma sanção jurídica10 .

Para Orlando Gomes, "a obrigação é, numa relação jurídica, o lado passivo do direito subjetivo,Page 147 consistindo no dever jurídico de observar certo comportamento exigível pelo titular deste"11 . E prossegue definindo dever jurídico como "[...] a necessidade que corre a todo indivíduo de observar as ordens ou comandos do ordenamento jurídico, sob pena de incorrer numa sanção, como o dever universal de não perturbar o exercício do direito do proprietário"12 .

Com efeito, "obrigação tem, pois, dois sentidos, o do dever, que é larguíssimo (posição subjetiva passiva correlata à de direito), e o de posição subjetiva passiva correlata à de pretensão"13 . Observamos, pois, que o dever jurídico é um plus em relação à obrigação em sentido estrito. Desta forma, "o correlato da pretensão é um dever "premível" do destinatário dela, talvez obrigação (no sentido estrito), sempre obrigação (no sentido lato)"14 .

É preciso destacar, porém, que segundo Orlando Gomes, "o direito das obrigações cuida apenas de uma das espécies do dever jurídico, isto é, daqueles que provocam um vínculo especial entre pessoas determinadas, dando a uma delas o poder de exigir da outra uma prestação de natureza patrimonial"15 . Essa diferenciação é de suma importância, pois o direito não pode ser confundido com a pretensão, ou melhor, o dever de não violar um direito não pode ser confundido com a eventual obrigação gerada por essa violação.

Os direitos, portanto, preexistem a qualquer ação humana. Produzem efeitos por si só, geram direitos subjetivos imediatos e antecedem qualquer declaração jurisdicional. Nesta toada, Ovídio Araújo Baptista da Silva faz observação lapidar: "Basta ler CHIOVENDA para saber que os direitos preexistem à sentenças que os reconhecem"16 .

Nesta linha de pensar, precisamos encontrar meios processuais diferenciados para a proteção dos direitos e das pretensões. Fazendo uma análise histórica, observamos que, desde a Roma antiga, há ações17 sincréticas aptas a realizar o direito material. Entre outros, citamos os interditos, os quais são a origem remota das ações sincréticas18 e da tutela antecipada19 . Os interditos eram utilizados para a proteção dos direitos (que se opõem ao dever jurídico), enquanto as pretensões (que se opõem às obrigações em sentido estrito) eram protegidas por outro instituto, a actio.

Firmadas estas premissas, passaremos ao estudo do sistema processual romano, mas especificamente do ponto que toca a tutela interdital.

3 Dualidade do sistema processual romano

No sistema processual romano havia uma clara separação entre conhecimento e execução. Ao praetor (juiz estatal) cabia fixar os termos da controvérsia e nomear o iudex (árbitro privado), perante o qual se desenvolvia a "fase de conhecimento". Ao árbitro era conferida, pelo agente do poder, o praetor, a missão de solucionar o conflito jurídico20 . Limitava-se, porém, a declarar o direito.

Uma vez declarado o direito, apenas o praetor, com fundamento no seu poder de imperium, podia autorizar atos executivos. O iudex não tinha poderes para tanto. A cognição, que era realizada na actio, ficava sob a responsabilidade do iudex, fundada na iurisdictio, enquanto a execução (actio iudicati) era função do praetor, baseada no seu poder de imperium. Esta separação ocorria "numa quadra de instituições processuais completamente diversa da atual, porque inspirada no caráter arbitral do julgamento do processo cognitivo"21 .

Mesmo quando a figura do iudex foi suprimida do direito romano, com a publicização do processo de conhecimento, por apego às suas origens, a jurisdição continuou restrita à mera declaração do direito22 .

3. 1 Períodos do direito processual romano

Historicamente, o direito processual romano é dividido em três fases23 : 1) período primitivo; 2) período formulário; e 3) fase da cognitio extraordinaria.

O período primitivo era chamado de legis actiones. As partes podiam utilizar somente os ritos previstos em lei, que eram numerus clausus24 . O procedimento se desenvolvia em duas fases, sendo a primeira perante o magistrado (praetor) e a segunda diante do árbitro privado (iudex). Iniciava-se através de uma fase pública, in iure, e era concluído numa fase arbitral privada, apudPage 148 iudicem25 . O processo era todo oral e caracterizava-se pela rigidez e pelo formalismo26 . Como o iudex não possuía poderes executórios, ocorrendo o inadimplemento após a declaração do direito, instaurava-se um novo procedimento perante o praetor. Contudo, embora o iudex não tivesse poderes para realizar a execução, sua decisão produzia coisa julgada27 .

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