A Tutela Administrativa do Consumidor de Serviços Públicos Essenciais: Experiências do Programa de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado do Rio Grande do Sul

AutorDiego Ghiringhelli de Azevedo
CargoAdvogado. Especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Páginas111-134

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Excertos

"O Código de Defesa do Consumidor demonstra clara preocupação quanto à posição de vulnerabilidade do consumidor também no que pertine especificamente aos serviços públicos"

"Percebe-se, em regra, a utilização de três elementos pelos doutrinadores do direito administrativo, quais sejam: o material, no qual serviço público é toda prestação de utilidade pública que visa satisfazer interesses coletivos; o formal, na submissão a um regime jurídico próprio (não necessariamente público, mas, pelo menos, híbrido, e nunca totalmente comum); e o subjetivo, contemplando tanto a participação direta quanto a indireta do Estado na prestação"

"Onde faltam regulamentação e fiscalização permanente do seu cumprimento, abre-se a possibilidade para que o lucro decorrente da exploração das atividades se sobreponha ao espaço em que deveria estar a qualidade com que teriam de ser ofertados"

"Considerando apenas os essenciais, objeto do estudo aqui proposto, tem-se como serviços mais reclamados os de telefonia celular e telefonia fixa, seguidos de longe por energia elétrica, água e esgoto, e transporte"

"Os serviços públicos gerais, tanto entendidos como apenas gratuitos ou pagos indiretamente, não caracterizam relação de consumo, pois remunerados por tributos"

* Outras qualificações do autor

Assessor Jurídico do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenador da Turma de Serviços Públicos Essenciais do Programa de Proteção e Defesa do Consumidor de novembro de 2010 a agosto de 2012.

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Introdução

O presente artigo objetiva abordar de que maneira as questões envolvendo os serviços públicos essenciais são tratadas pelo Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) do Estado do Rio Grande do Sul (RS) por meio de seus processos administrativos e demais atos.

Inicialmente, analisando-se a evolução histórica do direito do consumidor, percebe-se que a preocupação com o consumidor se deve ao seu reconhecimento como elo mais fraco dessa desigual relação jurídica presente no consumo - e, por que não dizer, no consumismo1.

Após a segunda guerra, fenômenos e acontecimentos como a produção em massa, a desmaterialização da riqueza, a desvinculação da autonomia da vontade, a especialização do trabalho, a urbanização, entre outros, concederam à figura do consumidor o papel de destaque das relações de consumo, posição não alcançada até então.

Em 1962, o presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy fez declaração ao Congresso enumerando alguns direitos do consumidor. Na ocasião, afirmou que "consumidores somos todos nós".

Em Genebra, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, em sua 29ª sessão, em 1973, defendeu os direitos fundamentais do consumidor, citando especificamente o direito à segurança, integridade física e dignidade humana dos consumidores.

Mais tarde, em 1985, a ONU, através da Resolução 39/248, previu normas acerca da proteção ao consumidor, de forma a reconhecer sua vulnerabilidade diante dos desequilíbrios de aspectos econômicos, educacionais e de poder aquisitivo, além de incentivar a aplicação de políticas firmes de proteção ao consumidor. Sendo assim, diante desta vulnerabilidade e do reconhecimento da proteção e defesa do consumidor como direito fundamental, a relação consumerista passa a ser equilibrada. Este equilíbrio dos diferentes não deixa espaço para a liberdade formal difundida pelos ideais liberais.

No Brasil, a conquista mais relevante para a proteção do consumidor ocorreu com o advento da Constituição de 1988, tratando o direito do consumidor como direito fundamental e como princípio informador da ordem constitucional econômica. Além disso, o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) determinou a confecção do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em vigor desde 19902.

Ademais, não há como analisar a existência de violações ao ordenamento jurídico sem levar em conta a ideia de que todos somos consumidores - ativos ou em potencial - e de que o direito do consumidor é direito fundamental, precisamente

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de terceira dimensão (direitos da fraternidade ou solidariedade)3. Os próprios fornecedores de produtos e serviços - utilizando-se a denominação consagrada no Código de Defesa do Consumidor - devem se valer deste entendimento, uma vez que, além do quadro de pessoal ser composto por consumidores (novamente a lição de Kennedy), a própria prestadora do serviço é, invariavelmente, consumidora em determinadas ocasiões, vindo a depender de outros fornecedores.

Este breve introito histórico apresenta a face da consagração de direitos. A julgar pela realidade brasileira no que se refere à prestação dos serviços públicos4, poderse-ia pensar que aí reside a problemática. Ocorre que, em termos de legislação nesta área, paira o entendimento de que o país está bem servido. O problema certamente reside na outra face, a da concretização dos direitos. Em outras palavras, estão previstos mas não saem do papel; existem na teoria (law in the books) mas não na prática (law in action)5.

A pretensão, aqui, é desvendar o porquê desta situação de desamparo e o que vem sendo feito no órgão estadual de proteção do consumidor tomando por base a atuação de sua 5ª Turma, responsável pelas demandas que versam sobre serviços públicos essenciais.

Para tanto, é necessária atenção à posição do serviço público no ordenamento jurídico brasileiro, a incidência do Código de Defesa do Consumidor nesse tipo de serviço e o seu caráter de essencialidade, matérias recorrentes na doutrina. Superados tais temas, a abordagem toma contornos mais particulares e concretos, recaindo sobre o papel das instituições administrativas na proteção dos consumidores de serviços públicos essenciais, enfatizando a atuação da 5ª Turma do Procon do Estado com amparo em vasto levantamento de dados, e o conteúdo de seus processos administrativos sancionadores, além da ingerência que recebem estes últimos do Poder Judiciário.

1. Serviço público no direito brasileiro

O Código de Defesa do Consumidor demonstra clara preocupação quanto à posição de vulnerabilidade do consumidor também no que pertine especificamente aos serviços públicos.

É assim com o art. 4º, VII, ao fazer referência à racionalização e melhoria dos serviços públicos como uma das metas da Política Nacional das Relações de Consumo; art. 6º, X, ao estabelecer como direito básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral; e art. 22, ao declarar que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

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Da mesma forma, aproveitando a ideia de diálogo das fontes6, o art. 7º, I, da Lei 8.987/95, que estabelece o regime de concessão dos serviços públicos, preconiza como direito do usuário "receber serviço adequado". De modo a dirimir as dúvidas interpretativas, prevê o art. 6º, § 1º, do mesmo diploma legal: "Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas."

Quanto ao tratamento doutrinário dispensado à definição de serviço público, pode-se dividi-lo em amplo (abrangendo todas as atividades exercidas pela administração pública) e restrito (excluindo as funções legislativa, executiva, atividades de cunho burocrático, relativas ao poder de polícia, atividades de fomento, obras públicas, desapropriações, todas exercidas pelo Estado). Tal abordagem, por tratar de conceitos, pede o uso de suas exatas transcrições.

A proteção da coletividade e das necessidades e interesses públicos deve prevalecer principalmente se cotejada com os interesses econômicos das grandes corporações

Na esteira do primeiro sentido, para Hely Lopes Meireles serviços públicos são "todos aqueles prestados pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado"7.

Embora ainda amplo, o doutrinador restringe um pouco ao não falar em Estado, mas em Administração, o que já afasta as atividades legislativa e jurisdicional8.

Já na segunda e mais aceita vertente assume destaque a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, na qual "serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestados pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público - portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais - instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo"9.

Aí reside, também, a noção de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: "Toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público."10Percebe-se, em regra, a utilização de três elementos pelos doutrinadores do direito administrativo, quais sejam: o material, no qual serviço público é toda prestação de utilidade pública que visa satisfazer interesses coletivos; o formal, na submissão a um regime jurídico próprio (não necessariamente público, mas, pelo menos, híbrido, e nunca totalmente comum); e o subjetivo, contemplando tanto a participação direta quanto a indireta do...

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