A Tutela Coletiva do Dano Extrapatrimonial no Direito do Trabalho

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Ocupação do AutorCoordenadora
Páginas161-171

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1. Introdução

O presente artigo visa ao estudo do dano extrapatrimonial e sua tutela coletiva na seara trabalhista, com ênfase na atuação do Ministério Público do Trabalho no Brasil.

Primeiramente, busca-se conceituar o dano extrapatrimonial, como lesão aos direitos da personalidade, bem como suas espécies, destacando-se o dano moral, individual e coletivo, e o dano existencial. Nesse sentido, será estudado também o Direito comparado, em especial o Direito italiano. Em seguida, será analisada a sua tutela coletiva, com ênfase na atuação do Ministério Público do Trabalho por meio de seus diversos instrumentos.

2. Os danos extrapatrimoniais

O vocábulo dano origina-se do latim damnun, sendo utilizado na linguagem jurídica para indicar todo mal ou ofensa que uma pessoa tenha causado a outrem, do qual possa resultar uma deterioração ou destruição de alguma coisa dele ou gerar um prejuízo a seu patrimônio1.

O dano extrapatrimonial pode ser conceituado como a lesão a um interesse protegido pelo ordenamento jurídico e que tem por objeto uma utilidade sem expressão monetária no mercado2. Difere-se, assim, do dano patrimonial, consistente na lesão a interesses jurídicos que são passíveis de aferição econômica. Por tal motivo, o valor da indenização, no caso do dano patrimonial, corresponde à diferença do patrimônio da vítima antes e depois do evento lesivo.

Inicialmente, consoante às ordens jurídicas vigentes, bem como os ensinamentos da doutrina e a interpretação da jurisprudência, somente os danos patrimoniais eram reconhecidos e, portanto, passíveis de ressarcimento. Os próprios Códigos Civis, dos diversos países, centravam-se no patrimônio, a exemplo do Código Civil de Napoleão, de 1804, que, segundo este, foi o maior de seus legados.

O Code Napoléon, refletindo os ideais da Revolução Fran-cesa, fundava-se nos princípios individualistas da liberdade contratual e da propriedade como direito absoluto, bem como na responsabilidade fundada na culpa provada da vítima. A propriedade era definida como “o direito de gozar e de dispor das coisas da maneira mais absoluta”3

Segundo o civilista italiano Enzo Roppo, o Código Napoleônico, tendo sido produto da vitória da burguesia na Revolução de 1789, conferiu força de lei às conquistas políticas, ideológicas e econômicas dessa classe. Um exemplo claro dessa afirmação é a disciplina do contrato, que, longe de ser um instituto autônomo, ocupava uma posição subordinada, servil, em relação ao direito de propriedade. Este era o instituto-base da codificação, em função do qual foram ordenados todos os demais. O contrato veio, assim, a responder a uma exigência concreta presente na França pós-revolucionária: a “desoneração” e a mobilização da propriedade fundiária4. O

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Código Napoleônico serviu de modelo e inspiração para as codificações que o sucederam, a exemplo do Código Civil italiano de 1865.

Na lógica civilista clássica, era evidente a primazia do ter em relação ao ser. Somente com a evolução das ordens jurídicas, e de sua respectiva interpretação, as quais passaram a ter como centro a pessoa humana e sua dignidade, é que foi reconhecida a existência de danos de caráter não patrimonial, relacionados aos direitos da personalidade. O Direito italiano ilustra bem essa evolução, tendo partido da completa irressarcibilidade dos danos imateriais, em meados do século XIX, para o seu pleno reconhecimento, notadamente após a redemocratização do país com o fim da Segunda Guerra Mundial e a promulgação da Constituição de 1948, que expressamente reconhece e garante os direitos invioláveis do homem. Trata-se, assim, da interpretação histórico-evolutiva das normas de responsabilidade civil, adequando-as aos mandamentos constitucionais que asseguram proteção integral às diversas esferas da pessoa humana5.

Como observa Luisa Galantino, a norma que prevê que “o dano não patrimonial deve ser ressarcido apenas nos casos previstos em lei” (art. 2.059 do Código Civil italiano de 1942) durante muito tempo foi tida como aplicável apenas nas hipóteses de fatos ilícitos tipificados como crime. Todavia, a partir de maio de 2003, passou a ser interpretada pela Corte de Cassação, ratificada posteriormente pela Corte Constitucional, no sentido de abranger também as normas constitucionais relativas aos direitos invioláveis inerentes à pessoa (arts. , , e 35 da Constituição de 1948). Desse modo, a jurisprudência conferiu uma interpretação “constitucionalmente orientada” da norma civil, para incluir todo e qualquer dano de natureza não patrimonial decorrente da lesão de valores inerentes à pessoa6.

O próprio Direito brasileiro também é um exemplo dessa evolução. O Código Civil de 1916 previa expressamente apenas a ressarcibilidade dos danos materiais. A sua releitura interpretativa tornou-se imperativa com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que contempla, em seu art. 5º, V e X, o direito à indenização pelo dano moral, isto é, não patrimonial. O Código Civil de 2002, por sua vez, já o previu expressamente (art. 186), como consectário lógico da tutela, também expressa, aos direitos da personalidade (arts. 11 a 21).

Como bem observa Ney Maranhão, o simples fato de re-meter a uma ideia de extrapatrimonialidade em nada retira a legitimidade de uma pretensão indenizatória atinente a danos não materiais, tratando-se de uma questão de civilidade, de uma imposição de justiça7.

Costuma-se diferenciar, no âmbito dos danos extrapatrimoniais, o dano moral, que pode ser individual ou coletivo, do dano existencial.

O dano moral consiste em lesão na esfera subjetiva de um indivíduo, que atinge valores personalíssimos inerentes a sua qualidade de pessoa humana, tais como a honra, a imagem, a integridade física e psíquica, e provoca dor, angústia, sofrimento, vergonha8.

O dano moral, em sua dimensão coletiva, corresponde a uma lesão injusta da esfera moral de uma dada comunidade, isto é, à violação antijurídica de determinado círculo de valores coletivos. Trata-se de um dano genérico, de que foi alvo uma coletividade, ou mesmo a sociedade como um todo, na medida em que restaram violados o ordenamento jurídico e a ordem social. É, em realidade, a violação em dimensão transindividual dos direitos da personalidade9.

O dano existencial, por sua vez, não diz respeito à esfera íntima do ofendido, mas sim à frustração de um projeto de vida, que impede a realização pessoal do trabalhador. O ofendido resta privado do direito fundamental de dispor livremente de seu tempo, fazendo ou deixando de fazer o que bem entender.

No âmbito trabalhista, o dano existencial decorre da conduta patronal que impossibilita o empregado de se relacionar e de conviver em sociedade, de concretizar os seus projetos de vida, o que é essencial para a sua realização profissional, social e pessoal e, portanto, para a sua felicidade, que é, em última análise, a razão de ser da existência humana. Como exemplo, pode-se citar a exigência contumaz de sobrejornada do trabalhador, ou a exigência de um número excessivo de atribuições, de modo que, para executá-las, precise continuar em atividade nos períodos de descanso, ainda que fora do local de trabalho. Tais atribuições podem, ainda, deixá-lo de tal modo esgotado que não consiga usufruir o seu tempo livre.

É interessante notar um dispositivo presente no projeto de lei “El Khomri”, atualmente em discussão no Parlamento francês e que vem gerando grandes protestos por parte de organizações sindicais e estudantis nesse país. Tal projeto visa modificar profundamente o Código do Trabalho francês, inclusive para fazer prevalecer o negociado sobre o legislado, e traz alterações significativas em matéria de duração do trabalho e de dispensas, entre outras, no sentido de sua desregulamentação. O art. 25 do capítulo II desse projeto de lei prevê o direito do trabalhador à desconexão, a ser regulamentado por meio da negociação coletiva, o qual visa garantir a efetividade do direito ao repouso, face aos diversos instrumentos de controle à disposição do empregador propiciados pela tecnologia digital. Todavia, os possíveis benefícios advindos dessa norma

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provavelmente serão arrefecidos pelas normas que permitem
o excessivo elastecimento das jornadas de trabalho máximas
diária e semanal por meio da negociação coletiva10Outro exemplo de dano existencial, na esfera trabalhista, consiste nas doenças ocupacionais, como a LER/DORT, adquiridas em virtude de condições ambientais inadequadas e, portanto, de responsabilidade do empregador. Em razão do adoecimento, o trabalhador pode restar incapaz de exercer diversas atividades, o que configura o dano existencial. Tratando-se de danos distintos, neste exemplo, podem ser perfeitamente cumuláveis o dano moral e o dano existencial, ao lado, obviamente, do dano material (dano emergente e lucro cessante).

O dano existencial se diferencia do dano moral, na medida em que este é essencialmente um sentir, ao passo que aquele um não mais poder fazer, um dever de agir de outra forma, um relacionar-se diversamente, com a consequente limitação do desenvolvimento normal da vida da pessoa11.

Como observa Mauricio Godinho Delgado, no âmbito trabalhista uma das mudanças e aperfeiçoamentos mais relevantes foi a descoberta do universo da personalidade do trabalhador no contexto da relação de emprego. Os direitos da personalidade –, que contam com tutela jurídica significativa, derivada diretamente da Constituição da República, mais precisamente do princípio da dignidade da pessoa humana e do próprio Estado Democrático de Direito –, estabelecem claros limites ao exercício do poder empregatício, objetivo, aliás, perseguido pelo próprio Direito do Trabalho desde as suas origens12. Nesse sentido, os direitos fundamentais devem ser...

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