A tutela coletiva brasileira em conflito com os direitos humanos

AutorGustavo Santana Nogueira
CargoPromotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela UNESA. Professor de Processo Civil na EMERJ e na Pós-Graduação de Direito Societário e Mercado de Capitais da FGV.
Páginas351-388

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1 - Introdução

"Os estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social."

Essa a redação do art. 1º da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que é o tratado mais importante sobre o tema nas Américas, assinado em 1969, em vigor desde 1978, e que se aplica aos Estados membros da OEA - Organização dos Estados Americanos. O Brasil é membro da OEA desde a sua criação, em 1948, e depositou a carta de adesão ao Tratado em 25 de setembro 1992, incorporando-o ao direito interno pelo Decreto 678, de 06 de novembro de 1992. 1

Desde então o Brasil assumiu, perante a comunidade internacional, o dever de respeitar os direitos assegurados no Tratado, podendo ser acionado perante os órgãos criados pelo próprio Tratado para fazer valer as suas normas, que são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. De acordo com Flávia Piovesan, "cabe ao Estado-parte a obrigação de respeitar e assegurar o livre e pleno exercício desses direitos e liberdades, sem qualquer discriminação. Cabe ainda ao Estado-parte adotar todas as medidas legislativas e de outra natureza que sejam necessárias para conferir efetividade aos direitos e liberdades enunciados." 2 Page 352

2 - A Comissão e a Corte

A Convenção prevê, na Parte II, que trata dos "Meios de Proteção", em seu art. 33 que são órgãos competentes para conhecer de assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos na própria Convenção a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A Comissão, criada em 1959, está sediada em Washington D.C., nos Estados Unidos da América, e é composta por 7 membros, competindo-lhe, dentre outras funções, atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade e formular recomendações aos governos dos estados-membros, quando considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos (art. 41 da Convenção).

E aí nós podemos perceber porque a petição foi dirigida primeiramente a esta Comissão, já que o art. 44 da Convenção prevê que "qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais estados-membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado-parte."

Já a Corte fica em São José, na Costa Rica, e também é integrada por 7 membros, chamados de Juízes, que são nacionais dos Estados-partes e juristas da mais alta autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as condições requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do estado do qual sejam nacionais ou do estado que os propuser como candidatos (art. 52, 1), mas eles não representam os seus Estados de origem, possuindo autonomia para prolatar os julgamentos. Inclusive não há impedimento a que, por exemplo, um Juiz brasileiro da Corte conheça de denúncia apresentada contra o Brasil.

A Corte tem uma função de natureza contenciosa (julgamento de violações aos direitos humanos), mas também exerce outra, de natureza consultiva, conforme dispõe o art. Art. 64, nos seguintes termos: Page 353

1. Os estados-membros da Organização poderão consultar a Corte sobre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos estados americanos. Também poderão consultá-la, no que lhes compete, os órgãos enumerados no capítulo X da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires.

2. A Corte, a pedido de um estado-membro da Organização, poderá emitir pareceres sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os mencionados instrumentos internacionais.

3 - Procedimento

Considerando que qualquer denúncia formulada contra Estado-parte por violação aos direitos humanos deve ser apresentada à Comissão, e que isso representa apenas um dos requisitos de admissibilidade, necessário é que analisemos os demais:

  1. que o Estado-parte, no caso o Brasil, haja feito uma declaração pela qual reconheça a referida competência da Comissão (art. 45, 1 e 2); 3

  2. que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos (art. 46, a);

  3. que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva (art. 46, b);

  4. que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional (art. 46, c); e Page 354

  5. que, quando for o caso, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição (art. 46, d).

    Sobre os requisitos, é pertinente ressaltar que a denúncia de violação aos direitos humanos previstos na Convenção deverá ser apresentada sempre contra o Estado-parte, que no nosso caso é a República Federativa do Brasil, ainda que a violação seja proveniente de ato praticado na esfera estadual ou municipal, posto que no plano internacional a divisão interna de nosso país não tem relevância. Assim decidiu a Comissão, por exemplo, no Relatório 06/10, do Caso José do Egito Romão Diniz onde o Estado do Rio de Janeiro foi indicado como órgão responsável pela violação dos direitos humanos, porém a solução foi muito melhor do que aquela adotada em processos internos, qual seja, a extinção sem resolução de mérito por ilegitimidade, posto que a Comissão não considerou o fato do Rio de Janeiro ter sido indicado como responsável, até porque a defesa foi apresentada pela República Federativa do Brasil, e admitiu a petição concluindo que:

    "A CIDH não tem a competência ratione personae para atender demandas contra o estado do Rio de Janeiro em si, porque é "o governo nacional de mencionado Estado parte [federal] [o que] cumprirá todas as disposições da presente Convenção relacionadas com as matérias sobre as quais exerce jurisdição legislativa e judicial", e também deverá "tomar de imediato as medidas pertinentes, conforme a sua constituição e suas leis, a fim de que as autoridades competentes de referidas entidades possam adotar as disposições do caso para o cumprimento desta Convenção [Americana]." 4

    No Caso Cayara vs. Peru, sentenciado em 1993, a Corte aplicou o que para nós, no plano interno, nada mais é do que o princípio da instrumentalidade do processo, ao estatuir que:

    "Es un principio comúnmente aceptado que el sistema procesal es un medio para realizar la justicia y que ésta no puede ser sacrificada en aras de meras formalidades. Dentro de ciertos límites de temporalidad Page 355 y razonabilidad, ciertas omisiones o retrasos en la observancia de los procedimientos, pueden ser dispensados, si se conserva un adecuado equilibrio entre la justicia y la seguridad jurídica." 5

    Dessa forma percebemos que a Comissão, responsável pela admissibilidade da petição contendo a denúncia, interpreta os requisitos de admissibilidade tendo em vista a precisa noção da sua responsabilidade e importância no plano internacional, já que ela não foi criada para rejeitar petições ao menor sinal de ausência dos requisitos necessários, mas sim para preservar os direitos humanos.

    O esgotamento dos recursos da jurisdição interna é também condição para a admissibilidade da denúncia, estatuindo na verdade uma necessidade de se resolver a questão dentro do Estado-parte, para somente depois, em caso de insucesso, se invocar a responsabilidade internacional. Ressalte-se que a própria Convenção permite três exceções a esse requisito. A primeira é a inexistência, no direito interno, do devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados (art. 46, 2, a). A segunda incide quando não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele...

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