A Tutela Antidiscriminatória e a Súmula n. 443 do TST

AutorHugo Carlos Scheuermann
Páginas103-109

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“Presume-se discriminatória a despedida do empregado portador do vírus HIV ou outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego”.

Na semana de 10 a 14 de setembro de 2012, os ministros do Tribunal Superior do Trabalho participaram de “Semana do TST” com o propósito de promover “uma ampla e profunda reflexão destinada ao aprimoramento institucional da Corte, sobretudo da sua prestação jurisdicional”.

Os trabalhos desenvolvidos nesta semana incluem a análise e atualização da jurisprudência sedimentada em súmulas, orientações jurisprudenciais e precedentes normativos, cuja atividade decorre da função uniformizadora que cabe aos tribunais superiores.

A uniformização de jurisprudência é justificável e até mesmo uma necessidade do serviço público da jurisdição, pois o texto da lei nem sempre apresenta solução para o problema trazido no processo, competindo ao juiz interpretar e, portanto, atribuir à letra fria da lei a sua compreensão moderna, adaptar o seu sentido aos valores, princípios e normas constitucionais, reavivar sua aplicabilidade segundo o bem comum e o senso de justiça. Ampliada essa atividade interpretativa por milhares de ações judiciais que trazem as mesmas premissas fáticas e jurídicas, é imperativo que a prestação jurisdicional responda racionalmente e com rapidez aos anseios de solução, inclusive padronizando a interpretação jurídica cabível, representada pelas súmulas, orientações ou precedentes jurisprudenciais1.

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Assim, por meio da Resolução n. 185/2012, publicada no Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho nas datas de 25, 26 e 27 de setembro de 2012, foi criada a Súmula de Jurisprudência n. 443, com o seguinte teor:

DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO. Presume-se discriminatória a despedida do empregado portador do vírus HIV ou outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.

Tal verbete expressa em seu bojo a compreensão das oito turmas julgadoras e da Subseção Especializada em Dissídios Individuais I do Tribunal Superior do Trabalho exarada nas últimas décadas em exame de inúmeros recursos de revista e embargos em recurso de revista que envolveu fatos relacionados à dispensa de empregado portador de vírus do HIV/SIDA e de doença grave, e sua (possível) caracterização como discriminatória, geradora da consequência jurídica da reintegração no emprego.

Os precedentes que originaram a referida súmula envolveram inúmeras ações trabalhistas individuais cujos casos concretos são do final da década de noventa, início dos anos dois mil até o presente ano de 2013, ou seja, contam com mais de uma década de profunda discussão nas diversas instâncias do Poder Judiciário Trabalhista na busca da interpretação jurídica cabível.

A temática do trabalhador portador do vírus HIV/ AIDS – e depois, por simetria, do trabalhador portador de doença grave – veio a ser conhecida dos juízes e tribunais trabalhistas através dos inúmeros processos judiciais, em grande número pelas reclamatórias individuais, mas também pela via dos dissídios coletivos.

Com efeito, até o presente ano de 2013 não há norma jurídica que expressamente afirme estabilidade provisória ou garantia no emprego de trabalhador soropositivo para o vírus HIV/AIDS ou de portador de doença grave considerada estigmatizante. Imagine-se o panorama a partir do início dos anos noventa, quando as demandas trabalhistas começaram a ingressar e exigir uma resposta estatal acerca do conflito originado pelas despedidas dos trabalhadores portadores de HIV/AIDS.

Nas reclamatórias trabalhistas individuais, de um lado os argumentos dos empregadores, de que a despedida imotivada é a regra e direito potestativo (art. 7º, I, da Constituição), de inexistência de lei a amparar estabilidade (art. 5º, II, da Constituição), de não se tratar de doença originada no labor, tudo a enfraquecer suposta discriminação, cabendo então ao trabalhador demons-trar o fato constitutivo de suas alegações. De outro, os argumentos dos trabalhadores despedidos, de que a despedida em momento de fragilidade física configuraria tratamento discriminatório (art. 1º, III e IV, art. 3º, IV, art. 5º, caput I e XLI, art. 7º, I e XXX, art. 170 e 193, todos da Constituição e Lei n. 9.029/1995) e levaria à questão social de sérias dificuldades de reinserção no mercado de trabalho. Isso sem excluir o preconceito e o assédio moral praticados em face do trabalhador doente, gerando danos além da esfera trabalhista, atingindo o âmago da dignidade da pessoa humana do trabalhador.

No plano coletivo, a questão social gerada pelas despedidas dos trabalhadores aidéticos não passaram desapercebidas e inspiraram negociações coletivas e dissídios coletivos de manutenção do trabalhador no emprego, ao menos enquanto não houvesse o afastamento previdenciário em auxílio-doença, sinalizando-se, assim, que as categorias profissionais e econômicas iniciavam a entender que a despedida por força de preconceito devia ser evitada, para que o trabalhador pudesse manter suas condições de vida, de subsistência, até para fazer frente ao próprio tratamento (v.g. TST-RO-DC 89.574/1993, DJU 10.02.1995).

Os precedentes que foram levados à pauta da referida semana de estudos jurídicos pelos ministros do Tribunal Superior do Trabalho em setembro de 2012, nos permitem encontrar razões jurídicas que impulsionaram a edição da Súmula n. 443. Inicialmente, vejamos ementas de alguns dos precedentes, para depois passarmos ao exame da hermenêutica realizada.

REINTEGRAÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS HIV. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. 1. Caracteriza atitude discriminatória ato de Empresa que, a pretexto de motivação de ordem técnica, dispensa empregado portador do vírus HIV sem a ocorrência de justa causa e já ciente, à época, do estado de saúde em que se encontrava o empregado. 2. O repúdio à atitude discriminatória, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 3º, inciso IV), e o próprio respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento basilar do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III), sobrepõem-se à própria inexistência de dispositivo legal que assegure ao trabalhador portador do vírus HIV estabilidade no emprego. 3. Afronta aos arts. 1º, inciso III, , caput e inciso II, e 7º, inciso I, da Constituição Federal não reconhecida na decisão de Turma do TST que conclui pela reintegração do Reclamante no emprego. 4. Embargos de

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que não se conhece. (RR – 439041/1998, Data de Julgamento: 05.05.2003, Relator Ministro: João Oreste Dalazen, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DJ 23.05.2003).

RECURSO DE REVISTA. AÇÃO TRABALHISTA PROPOSTA POR EMPREGADO CONTRA EMPREGADOR. OBRIGAÇÃO INERENTE AO CONTRATO DE TRABALHO. DANO MORAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. É competente a Justiça do Trabalho para apreciar lide entre empregado e empregador, visando ao pagamento de indenização por dano moral em razão de conduta discriminatória da empresa, que teria promovido a rescisão contratual por ser o autor portador do vírus da AIDS (art. 114 da Constituição Federal/1988). Recur-so de revista não conhecido. REINTEGRAÇÃO NO EMPREGO. EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS HIV. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. O fato de, no sistema jurídico, não haver texto de lei prevendo a estabilidade de empregado portador do vírus HIV não impede a sua reintegração no serviço, uma vez constatada a dispensa discriminatória, em evidente afronta aos princípios gerais do direito, especialmente no que se refere às garantias constitucionais do direito à vida, ao trabalho, à dignidade da pessoa humana e à igualdade (arts. 1º, III e IV; 3º, IV; 5º, caput e XLI, 7º...

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