Turnos ininterruptos de revezamento

AutorEllen Mara Ferraz Hazan
Páginas348-352

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Introdução

Nem sempre o trabalho em turnos ininterruptos ou de revezamento teve o tratamento legal merecido e isso, apesar de o instituto da jornada de trabalho estar vinculada, umbilicalmente, à saúde física e mental daqueles que vivem do trabalho.

O caput do art. 73 da CLT, em sua redação da década de 1940, negou aos trabalhadores em revezamento vários direitos trabalhistas, inclusive a hora ficta noturna e o adicional correspondente, o que acabou por ser corrigido pela jurisprudência na medida em que essa passou a negar a discriminação legal e a aplicar a isonomia de direitos.

Não obstante, o enquadramento jurídico correto, que reconhece o prejuízo biológico daqueles que laboram em turnos, somente veio para a legislação social, com a Constituição em 1988 que acabou com a discriminação contida no art. 73 da CLT. Ainda assim, a regra constitucional não tem sido aplicada devidamente pelos órgãos competentes, especialmente quanto à conceituação de revezamento e à garantia do cumprimento dos direitos sociais, especialmente limite de jornada, adicional noturno e hora reduzida.

A insistência em não se dar eficácia ao preceito constitucional contido no art. 7º, inciso XIV (XIV - jornada de seis horas para trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva...") é do interesse do capital flexibilizador que, para tanto, utiliza-se de todo o tipo de exegese, inclusive aquela não vinculada à hermenêutica do Estado Democrático de Direito para insistir no descumprimento da norma constitucional.

A exegese do preceito constitucional realizada pelos empregadores brasileiros é incorreta e afronta não só o próprio preceito contido no inciso XIV do art. 7º, mas também diversos outros preceitos constitucionais e até mesmo os fundamentos da ordem econômica contidos no art. 170 da CR.

Sendo assim, entendemos ser necessária uma leitura literal, teleológica e sistêmica do preceito constitucional para a compreensão da efetividade da norma constitucional em análise (inciso XIV do art. 7º da CR), assim como para garantir o princípio constitucional da não discriminação.

Tal exegese será realizada nos limites postos pela Constituição que assevera que o trabalho não pode violar o homem quando prestado em condições dignas. E mais, como nos ensina NEVES, Gabriela Delgado. In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG - Belo Horizonte, n. 49, jul.-dez. 2006, é o valor da dignidade o suporte de qualquer trabalho desenvolvido pelo ser humano.

A relação de emprego e o ser humano trabalhador

Fomos acostumados a achar que a essência das relações de trabalho ou seu tronco básico são a remuneração e a jornada de trabalho, ou seja, se ocorrem os elementos da relação de emprego e o trabalhador fica à disposição laborando na jornada determinada pelo seu empregador e esse último remunera tal trabalho (seja por qual valor for), a base ou a juridicidade desse contrato estará realizado.

Certamente, tal entendimento não está correto. Não basta a realização dos elementos fáticos jurídicos da relação de emprego, ainda mais quando os elementos jurídicos formais contidos na legislação civil restaram acrescidos, em 1988, com a proibição de qualquer trabalho análogo ao de escravo, ou que ofenda de forma direta ou indireta a cidadania e a dignidade do ser humano trabalhador.

As relações de trabalho no modelo que vivemos somente foram admitidas depois de muitas lutas sociais do ser humano trabalhador contra o ser jurídico, e nada humano, o capital.

Tais lutas fizeram surgir filosofias contrárias à escravidão, à servidão e à exploração do homem pelo capital, como nos conta a sociologia do trabalho, e levaram o direito a inserir o ser humano trabalhador no mundo jurídico, admitindo sua exploração pelo capital desde que sua condição de cidadão e sua dignidade humana não fossem aviltadas.

É essa a base negociada entre os trabalhadores, o capital e o Estado, para a existência das relações de trabalho onde o ser humano produz para o capital, sujeitando-se e subordinando-se ao empregador desde que respeitados os direitos humanos e sociais daquele que trabalha.

Este pacto concedeu ao Estado a paz social, ao capital a tranquilidade para acumulação de riquezas e ao trabalhador a segurança de que estaria inserido e protegido pela lei, deixando de ser tratado como coisa ou mercadoria.

Desta forma, é por meio das fontes materiais do direito do trabalho e não da leitura literal da legislação trabalhista,

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que encontramos as razões da existência desse ramo, apartado do ramo civil ordinário: a exploração contida e admitida pela lei do trabalho humano pelo capital, nos limites dessa lei.

Das fontes materiais do direito do trabalho, decorrem suas funções que estão brilhantemente destacadas por DELGADO, Mauricio Godinho em sua obra Curso de Direito do Trabalho, LTr, 2013: 53:58.

Por tais razões, é correto afirmar que é o ser humano, com cidadania, dignidade e a garantia pelo Estado de seus direitos sociais, a razão de a existência do direito do trabalho. Qualquer que seja o instituto ou a instituição decorrente desta relação deve ser analisada, interpretada e aplicada à luz das necessidades do ser humano trabalhador e não do capital.

Disto conclui-se que o tronco que sustenta o ramo trabalhista e todas as suas interpretações é o ser humano trabalhador e não os institutos da remuneração e da jornada de trabalho, muito menos os interesses do capital.

O paradigma de nossa sociedade onde o trabalhador representava uma mercadoria foi suplantado pelo paradigma do Estado Social e do Estado Democrático de Direito e não há possibilidades de retorno. A Constituição da República, em vigor, não admite tal retrocesso.

Jornada de trabalho em turnos ininterruptos de revezamento à luz da hermenêutica constitucional vigente

A jornada de trabalho, como instituto do direito do trabalho, tem sua razão de ser na proteção à saúde, à...

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