Projetos tuning e tuning américa latina: afinando os currículos às competências

AutorMaria Idati Eiró/Afrânio Mendes Catani
CargoDoutora em Integração da América Latina/USP ? Brasil/Professor Titular na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Páginas105-125

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Introdução

O Tratado de Bolonha, caracterizado como um acordo firmado por diversos países europeus em 1999 na cidade de Bolonha, Itália, para convergência dos sistemas de ensino superior do continente, tem como mola propulsora o aumento da competitividade econômica europeia no cenário mundial.

Neste contexto, os processos de produção aliam-se à formação profissional, sendo que a convergência tem seu foco, entre outras, na formação de mão de obra qualificada para as diversas frentes de trabalho existentes. Com o objetivo de elevar a competitividade educacional internacional, o conhecimento privilegiado é o conhecimento instrumental.

A formação universitária estrutura-se voltada para a busca dos resultados por meio da competitividade, em resposta aos anseios da lógica empresarial, do mercado e de seus clientes. Como explicam Catani e Oliveira (2002):

A lógica e as ações que presidem a desorganização da educação superior ocorrem na direção de tornar o trabalho acadêmico mais produtivo do ponto de vista dos interesses prevalecentes no mercado. Esta racionalidade econômica revela que a universidade e o trabalho acadêmico só possuem relevância econômica e social quando formam profissionais aptos às necessidades atuais do mercado de trabalho e quando pesquisam, geram ou potencializam os conhecimentos, as técnicas e os instrumentos de produção e serviços que possibilitam a ampliação do capital. (CATANI; OLIVEIRA, 2002, p. 24.)

LIMA (1997) complementa essa ideia ao declarar que:

Este modelo gerencial representa por referência básica o atendimento à lógica empresarial e ao mercado competitivo, adotando concepções instrumentais/funcionais de autonomia e de participação. O setor privado, através de dispositivos variados, constitui-se numa fonte de inspiração privilegiada e, nas suas versões mais puras, a fórmula apregoada para sua superação da crise de legitimidade aparece associando-a a uma imagem de moderna estação de serviços, funcionalmente adaptada às exigências do mercado dos seus clientes e consumidores. (LIMA, 1997, p. 38.)

Paralelamente à implantação de Bolonha e inseridas neste contexto, algumas universidades do bloco europeu fixaram pontos comuns de referência para currículos baseados em competências, com a finalidade de padronização e entendimentos comuns. Essas universidades devem trabalhar em conjunto os aspectos que gostariam de ver unificados, sobretudo, no que se refere ao aspecto pedagógico dos cursos universitários. Assim, nasceu o Projeto Tuning.

Universidades latino-americanas, por sua vez, apresentaram ao bloco europeu o projeto Tuning América Latina, procurando alinhar as propostas e ideais de trabalho com a União Europeia.

1. A formação por competência como estratégia didática para o setor produtivo

Tuning, característico do novo modelo educacional de Bolonha, propõe-se a elaborar currículos baseados em competências e a determinar pontos de referência para as competências genéricas e específicas de cada disciplina de cada curso universitário.

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Philippe Perrenoud define competência como a faculdade do indivíduo de mobilizar um conjunto de recursos (saberes, capacidades cognitivas, capacidades físicas, informações etc.) para solucionar de forma eficaz uma determinada situação (PERRENOUD, 2000). Para ele, competência compreende atributos de diferentes naturezas:

  1. Atributo de conhecimento (saber saber) — trata-se do âmbito cognitivo do desempenho, ou seja, o saber prático e teórico;

  2. Atributo de habilidade (saber fazer) — trata-se do âmbito operativo do desempenho, ou seja, saber fazer com eficiência;

  3. Atributo de atitude (saber ser, querer fazer) — trata-se do âmbito afetivo e moral do desempenho, inclui traços de personalidade, caráter, valores e crenças, projetando profissionalmente, como envolvimento, comprometimento, ética, responsabilidade, disponibilidade e flexibilidade para a abertura a novas visões, empatia, cooperação e solidariedade.

Perrenoud (2000) caracteriza competência como a capacidade de transferir o que foi aprendido, de ter autonomia na aprendizagem e na resolução de problemas. Para o autor, o enfoque por competência é uma maneira de retomar uma problemática antiga, a de “transferência de conhecimentos”, e de empregá-la em uma prática requerida.

A mobilização exerce-se em situações complexas, que obrigam a estabelecer o problema antes de resolvê-lo, a determinar os conhecimentos pertinentes, a reorganizá-los em função da situação, a extrapolar ou preencher as lacunas. Entre conhecer a noção de juros e compreender a evolução da taxa hipotecária, há uma grande diferença. Os exercícios escolares clássicos permitem a consolidação da noção e dos algoritmos de cálculo. Eles não trabalham a transferência. Para ir nesse sentido, seria necessário colocar-se em situações complexas como obrigações, hipotecas, empréstimo, leasing. Não adianta colocar essas palavras nos dados de um problema de matemática para que essas noções sejam compreendidas, ainda menos para que a mobilização dos conhecimentos seja exercida. Entre saber o que é um vírus e proteger-se conscientemente das doenças virais, a diferença não é menor. Do mesmo modo que entre conhecer as leis da física e construir uma barca, fazer um modelo reduzido voar, isolar uma casa ou instalar corretamente um interruptor. (PERRENOUD, 1999, p. 16.)

Marchesi (2007) define competência como a capacidade de desenvolver-se em um determinado âmbito e de utilização dos conhecimentos necessários, com eficácia, nas atividades e tarefas a ele relacionadas. Ter competência para exercer uma ação ou executar uma tarefa é ter êxito na sua execução, de forma demonstrada e efetivada. Desta forma, a competência necessária deve ser demonstrada em ações.

Trabalhar com o conceito de competência necessariamente envolve a transferência e a mobilização de capacidades e conhecimentos em situações reais (Le Boterf, 2003). Para Rué (2009), “competência é a forma como uma pessoa expressa o conjunto do próprio conhecimento em uma situação concreta” (RUÉ, 2009, p. 25).

No projeto denominado Definição e Seleção de Competências (DeSeCo — Definition and Selection of Competencies), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

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Econômico — OCDE (Organisation for Economic Co-Operation and Development — OECD, 2002), encarregado de definir e selecionar as competências consideradas essenciais para a vida das pessoas e ao bom funcionamento da sociedade, o termo competência é definido como a capacidade de responder às demandas complexas e levar a cabo tarefas diversas de forma adequada. Supõe uma combinação de habilidades práticas, conhecimentos, motivação, valores éticos, atitudes e outros componentes sociais e de comportamento que, conjuntamente, devem lograr uma ação eficaz. Disponível em: . A OCDE prevê uma definição de competência derivada da experiência cotidiana de cada indivíduo e ambiente de trabalho.

Muito embora Rué (2009) demonstre que o conceito está cercado de mal-entendidos e ainda encontra-se em construção, para muitos autores, competência relaciona-se tão somente ao sucesso profissional. O autor caracteriza o termo habilidade, “entendido instrumental-mente com relação ao posto de trabalho” (RUÉ, 2009, p. 29), proveniente de uma relação do homem com a máquina, e sua ampliação no novo contexto social da competência. Segundo Rué (2009), a associação do termo — e a consequente reserva a ele — aconteceu porque o conceito de competência no contexto educacional foi mediado por assessores de organismos internacionais (como a OCDE), e por autoridades políticas e administrativas, o que “o tornou suspeito” (RUÉ, 2009, p. 17).

Para Frigotto (2007), o desenvolvimento dos conceitos de competência e empregabili-dade significa que “não há lugar para todos e o direito social e coletivo reduzem-se ao direito individual” (FRIGOTTO, 2007, p. 1.138). A valorização do conhecimento se dá também como parâmetro de ascendência ao poder.

Ramos (2002), por sua vez, discute que as transformações atuais no capitalismo produzem um deslocamento conceitual de qualificação para o de competência, sendo que esta última ganha gradativamente relevância frente à noção de qualificação. Enquanto a noção de qualificação surge no modelo fordista de produção, a noção de competência advém da sua crise, isto é, da renovação do modelo capitalista produtivo. Isto significa que a noção de competência pode ser vista como uma atualização do conceito de qualificação.

Ferretti (1999) também acredita na atualização dos termos, colocando o conceito como uma forma de o capital se reorganizar para obter uma valorização mais rápida. Frigotto (1989) escreve que a qualificação, diferentemente das competências, pressupõe uma ausência de regulações sociais. Aplicadas ao mundo do trabalho, as regulações sociais visam reconhecer o trabalhador como membro de um coletivo e não apenas um indivíduo com um contrato de trabalho (CASTEL, 1998).

Para Amaro (2008), a noção de competência em empresas, nas atividades gerenciais, tende a individualizar as relações e enfraquecer a dimensão de qualificação. As qualificações dos trabalhadores são questionadas e o mercado passa a exigir profissionais com maior iniciativa e que assumam mais responsabilidades. O termo competência aparece, portanto, para expressar as novas características requeridas do trabalhador: iniciativa, flexibilidade, cooperação, autonomia.

Quanto ao âmbito profissional, as competências podem se estabelecer em três níveis: competências básicas, genéricas e específicas. A competência básica mostra a capacidade

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de colocar em prática de forma integrada, conhecimentos, habilidades, atitudes para encontrar situações e resolver...

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