Destinação dos recursos arrecadados a título de dano moral coletivo pelo Poder Judiciário

AutorBruno Gomes Borges da Fonseca - Carlos Henrique Bezerra Leite
Páginas125-137

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Introdução

O reconhecimento dos direitos humanos e fundamentais de terceira dimensão exige (re)interpretação de textos normativos, anteriormente analisados em um viés eminentemente individualista. O dano moral, assegurado constitucionalmente, inseriu-se nessa (re)avaliação.

O dano moral, tradicionalmente, agregou o adjetivo individual. Contudo, na concepção metaindividual de interesses, possibilitante da existência de lesados indeterminados ou indetermináveis, amoldou-se e consignou, também, o complemento coletivo.

O dano moral coletivo, portanto, tem perspectiva distinta, de afronta a direitos humanos e fundamentais de terceira dimensão. A coletividade, nessa óptica, está sujeita àquela lesão em virtude de ofensa a interesses metaindividuais juridicamente relevantes.

A destinação dos valores arrecadados a título de dano moral coletivo pelo Poder Judiciário, seja na hipótese de decisões homologatórias de transações, seja por imposição de sentenças e de acórdãos, tem encontrado diversos e inusitados caminhos.

O recurso arrecadado a título de dano moral coletivo, em certos contextos, é destinado a fundos por supostamente materializar o cumprimento da lei. Em outros, é volvido, sem intermediários, à coletividade lesada, sob a justificativa de maior efetividade. Às vezes, o direcionamento é desvinculado das lesões originantes da pretensão reparatória por satisfazer à vontade do julgador ou das partes envolvidas no processo.

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Essa diversidade de destinações dos recursos arrecadados a título de dano moral coletivo, além de gerar relativa incerteza quanto ao seu real fim, parece denunciar (esse ponto é o mais grave) a ausência de critérios justificantes, nos planos hermenêutico e de aplicação da norma, do posicionamento adotado pela decisão judicial.

Nesse quadro polemizado, indaga-se: na perspectiva do paradigma do estado democrático de direito e da ordem jurídica brasileira, quais os supostos justificantes para o Poder Judiciário destinar os recursos arrecadados a título de reparação por dano moral coletivo? Esse problema será enfrentado nesta pesquisa.

A hipótese almejada abster-se-á de indicar a(s) resposta(s) certa(s), isto é, o destino adequado do valor angariado a título de dano moral coletivo. Por essa razão, a escolha da palavra suposto. A proposta é discutir (algumas) possibilidades a serem observadas pelo Poder Judiciário no momento de justificar a decisão.

Uma alternativa é circundar a decisão destinante do valor reparatório de alguns supostos do paradigma do estado democrático de direito. Transformá-la em mais um momento explicitador da democracia. Essa será a hipótese laborada nesta pesquisa.

Este trabalho objetivará: (i) apresentar contornos gerais do dano moral coletivo à luz da ordem jurídica nacional; (ii)teorizar alguns pontos do acesso à justiça no paradigma do estado democrático de direito; (iii) analisar supostos justificantes da decisão judicial de destinar os recursos arrecadados a título de dano moral coletivo.

O marco teórico do estudo é o paradigma do estado democrático de direito, reconhecido expressamente pela Constituição da República Federativa do Brasil (CF/1988) (art. 1º) e por autores como Jürgen Habermas, fincado na epistemologia da filosofia da linguagem e na teoria discursiva do direito. Essas lentes iluminarão todos os encaminhamentos.

O primeiro capítulo apresentará o dano moral coletivo e seu horizonte hermenêutico. O segundo teorizará alguns pontos do acesso à justiça no paradigma do estado democrático de direito. O terceiro, por fim, responderá ao problema desta pesquisa e analisará os supostos a serem observados pelo Poder Judiciário na destinação dos recursos arrecadados a título de dano moral coletivo.

1. Contornos gerais do dano moral coletivo no direito brasileiro

A definição de dano é única. Invariavelmente, corresponderá a uma lesão a bens juridicamente protegidos que poderá gerar diversidade de efeitos, isolados ou cumulativos. Conseguintemente, é possível a ocorrência de corolários (danos) patrimonial e extrapatrimonial.

O dano patrimonial (ou material) é subdividido em emergente e lucro cessante (inclusive a perda de uma chance). O dano extrapatrimonial, por seu turno, é repartido, entre outras, nas seguintes categorias: moral, estético, social, à imagem e existencial.

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A ordem jurídica e a vida associativa reconhecem o princípio da proibição de injusta lesão. A inobservância desse padrão, normalmente, oportuniza dever de indenizar. A CF/1988, nesse ponto, reconheceu como direito fundamental o ressarcimento por dano patrimonial e a reparação por dano extrapatrimonial (art. 5º, V e X).

A Constituição avançou e consignou aquela obrigação indenizatória em capítulo intitulado como Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Ao assim proceder, adicionou às classificações do dano (patrimonial e extrapatrimonial) as lesões individuais e metaindividuais.

Os efeitos do dano, na perspectiva da atual Constituição, além da patrimonialidade e da extrapatrimonialidade, abarcam, pois, as esferas individuais e coletivas. Logo, a leitura hermenêutica da CF/1988 autoriza concluir pela existência de danos patrimoniais e extrapatrimoniais, singulares e metaindividuais.

O dano moral coletivo tem, portanto, fundamento constitucional. Essa espécie de lesão encontrou horizonte hermenêutico favorável com a coletivização do direito (material e processual). O reconhecimento dos interesses metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos) rompe com a imprescindibilidade de deter-minação do sujeito detentor do direito, afasta a concepção individualista de direito subjetivo e materializa a terceira dimensão de direitos humanos e fundamentais.

O Brasil apresenta significativo microssistema de tutela metaindividual, fundido por pontos da class action americana, do sistema europeu e da criatividade normativa nacional, o que gerou sistema peculiar e de vanguarda. A interpretação conjunta da CF/1988, da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985 (LACP), e da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (CDC), entre outros diplomas normativos sobre proteção coletiva, fortaleceu a teorização acerca do dano moral coletivo.

Outro contributo à teorização do dano moral coletivo foi o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos humanos e fundamentais. Esses podem ser considerados em dupla perspectiva: (i) direitos subjetivos individuais e (ii) elementos objetivos fundamentais da comunidade. Esse último sentido é favorecedor da possibilidade de lesão à personalidade da coletividade.

A possibilidade de a pessoa jurídica sofrer dano moral, igualmente, propiciou a teorização acerca do dano moral coletivo, por admitir que a coletividade, formante de um ente coletivo, fosse passível de sofrer lesões à sua personalidade. Esse mote está presente naquela lesão metaindividual, que se desgarra da exigência de determinação do sujeito lesado. Assim, a lesão à personalidade deixa de ser monopolizada em relação à pessoa (individual).

O dano moral coletivo, de certo modo, aproxima-se da teorização do direito como integridade. A vida em sociedade impõe obrigações associativas ou comunitárias e o direito acaba por sufragar esses valores ao insistir que as proposições jurídicas são opiniões interpretativas, que combinam elementos volvidos tanto ao

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passado quanto ao futuro como uma política em processo de desenvolvimento, pois o modo de viver gregário exige fidelidade.

O dano moral coletivo, tradicionalmente, é definido como:

[...] a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerada, foi agredido de uma maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial.

Da definição de dano moral coletivo é possível extrair os seguintes...

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