Trezentas Mil Implicações': Possibilidades familiares em uma pesquisa sobre conjugalidade

AutorRafael Reis Luz
CargoMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Páginas152-175
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2017v14n1p152
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.14, n.1, p.152-175 Jan.-Abr. 2017
“TREZENTAS MIL IMPLICAÇÕES”: POSSIBILIDADES FAMILIARES EM UMA
PESQUISA SOBRE CONJUGALIDADE
Rafael Reis Luz
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Resumo:
Este artigo consiste em um desenvolvimento de pesquisa realizada em 2014, na
qual investiguei a experiência da conjugalidade homossexual a partir de entrevistas
com quatro casais, tendo como referenciais teóricos a Análise de Discurso francesa
e os estudos queer. No presente texto, parto de contribuições sobre parentesco de
Marilyn Strathern (2005;2015), especialmente suas discussões sobre parentalidade
e demais relações familiares, para apresentar as narrativas de um dos casais de
mulheres entrevistadas e pensar os (des)encontros entre certa ordem familiar
instituída e novos arranjos familiares. Dentre as muitas expectativas, planos e
dilemas, observamos que, no tocante à geração de filhos, são temidos os
questionamentos da família de origem quanto à identificação e inclusão do genitor
na rede familiar, à orientação sexual das mães etc. O discurso do casal aponta para
uma complexa trama que envolve variadas possibilidades de arranjos parentais e
familiares, sexualidades e afetos. Não obstante, o casal de mulheres entrevistadas
parece operar sob uma reiteração subversiva: as possibilidades são discutidas e
negociadas tendo a família de origem como referência legitimadora, como instituição
que se autoriza a indagar seus vínculos, afetos e desejos. Nesse sentido, o casal
analisado apropria-se de determinadas referências familiares porque estas dizem
respeito às histórias individuais, ao mesmo tempo em que as negociam, reformulam-
nas, submetem-nas às reavaliações que fazem em seu projeto de uma vida a dois
‘alternativa’.
Palavras-chave: Conjugalidade. Parentalidade. Reprodução Assistida. Família.
Homossexualidade.
1 INTRODUÇÃO
O presente texto é baseado em uma pesquisa já realizada, que teve como
objetivo investigar a experiência da conjugalidade homossexual2. Partindo da
postulação de Butler (1990/2012) a respeito da matriz de gênero, um arranjo social e
1 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Analista Judiciário na especialidade Psicólogo, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
RJ, Brasil. E-mail: reisdaluz@hotmail.com
2 Conjugalidade é um neologismo do termo francês conjugalité, usado no presente texto para referir-
se às relações afetivas e sexuais estáveis. Os termos conjugalidade homossexual e
homoconjugalidade usados para se referir às relações afetivo-sexuais estáveis entre pessoas do
mesmo sexo (DEFENDI, 2010; LOPES, 2010; SILVA, 2008; PAIVA, 2007) não são utilizados de
modo a desconsiderar a diversidade das relações conjugais homossexuais, cis e trans, menos ainda
a tipificá-las ou classificá-las como argumentam os autores anteriormente citados. As variadas
homoconjugalidades inserem-se em contextos diferenciados e configuram-se de acordo com as
histórias individuais de seus componentes, dotadas de suas particularidades e singulares. As
homoconjugalidades apresentadas em minha pesquisa e no presente artigo, desse modo, remetem
apenas a algumas possibilidades homoconjugais.
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cultural inteligível entre gênero, sexo e práticas sexuais, das performatividades de
gênero enquanto meios de reiteração e subversão dessa matriz (BUTLER,
1990/2012, 2009, 1993/2002; 1998) e da heteronormatividade (conceito elaborado
inicialmente por WARNER, 1991) enquanto uma entre as muitas possibilidades
desse arranjo, levantei, na referida pesquisa, a seguinte questão norteadora: quais
seriam as possibilidades de aceitação, manutenção e/ou rejeição desse arranjo
heteronormativo nas relações afetivo-sexuais, especificamente entre gays e
lésbicas?
Foi realizado inicialmente um levantamento da produção acadêmica sobre a
conjugalidade homossexual nos últimos anos, cuja análise, em paralelo com o
histórico das homossexualidades, apontou para uma aproximação entre discussões
sobre conjugalidade e casamento gay e lésbico, além de uma possível
‘heterossexualização’ das relações homossexuais (LUZ, 2015). A pesquisa de
campo, de caráter exploratório, consistiu na realização de entrevistas
semiestruturadas com dois casais de homens e dois de mulheres e a análise do
material adotou como referência a metodologia da Análise do Discurso de vertente
francesa (PÊCHEUX, 2012, 2009; FERNANDES, 2008). As conjugalidades
investigadas se constituíam por meio de uma temporalidade social, de uma
frequência de ações, atos e discursos que, se a princípio descontínuos, terminam
por sedimentar a passagem de uma vida do eu para uma vida do nós
3. Entendidas
como um espaço de construção de uma estética conjugal que elenca a liberdade
como um de seus aspectos centrais, estas relações conjugais produziam discursos
que abarcavam possibilidades de existência conjugal variadas (LUZ, 2015).
No presente texto, o empreendimento é outro: trata-se de destacar algumas
contribuições teóricas recentes para analisar, à luz do parentesco, as narrativas e
discussões sobre parentalidade4 de um dos casais de mulheres entrevistadas, e
pensar os (des)encontros entre certa ordem familiar instituída e novas
configurações. Nesse sentido, entendo que uma análise sobre parentesco seja
3 Ao longo do texto, assim como algumas citações bibliográficas e termos estrangeiros, as falas dos
sujeitos entrevistados também constam em itálico.
4 Parentalidade é um neologismo do termo francês parentalité, usado no presente texto para referir-se
ao exercício parental, práticas de maternidade/paternidade e filiação. Em relação aos termos
parentalidade homossexual e homoparentalidade usados para se referir à parentalidade exercida
por gays, lésbicas e trans (UZIEL, MELLO & GROSSI, 2006; ZAMBRANO, 2006) podemos fazer as
mesmas ponderações a respeito dos termos conjugalidade homossexual e hom oconjugalidade, na
primeira nota de rodapé.

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