Tratamento aos Médicos Cubanos pelo Direito Brasileiro e a Redução à Condição Análoga à de Escravos

AutorAlessandro S. V. Zenni - Camila Juliana da Silva
Páginas29-39

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Introdução

O Programa Mais Médicos para o Brasil foi criado por meio da Medida Provisória n. 621, de 8 de julho de 2013, regulamentada pela Lei n. 12.871/2013. O Programa recruta proissionais graduados no Brasil e fora do país, brasileiros e estrangeiros, para atuar nas áreas com maior necessidade, tendo em vista que a proporção de médicos por habitante no Brasil é signiicativamente inferior à necessidade da população e do Sistema Único de Saúde (SUS), aliado ao fato de o Brasil formar menos médicos do que a criação anual de empregos na área, nos setores público e privado, segundo dados do Ministério da Saúde.

Para tanto, explicar-se-á o contexto e as justiicativas do Ministério da Saúde para a implantação do Programa Mais Médicos, trazendo à baila caso concreto da médica cubana Ramona Rodriguez, tomado por parâmetro, que resolveu tornar pública a decisão de abandonar o programa, trazendo à baila as condições impostas aos participantes cubanos do programa.

Analisar-se-á ainda a relação entre as condições impostas aos participantes do Programa Mais Médicos e a sua caracterização como relação de trabalho à luz da doutrina e das Convenções Internacionais, tendo em vista que a lei que institui o programa é taxativa ao dispor que as atividades desempenhadas no programa não criam vínculo empregatício de qualquer natureza.

Após discorrer sobre o problema, o presente artigo proporá, como hipótese de pesquisa, a análise das condições impostas aos médicos cubanos comparadas ao crime de redução à condição análoga à de escravo, destacando que o compromisso com a dignidade humana do laborista cede às exigências sistêmicas de saúde mínima à população.

1. Do princípio da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa é o verdadeiro pressuposto ou o próprio fundamento dos direitos humanos, tornados fundamentais mediante positivação constitucional: os direitos do homem são uma maneira relativamente eicaz, por certo, porém cada vez mais amplamente compartilhada, que os humanos estabeleceram para concretizar determinadas exigências emergentes da ideia de sua própria dignidade.

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É a necessidade de respeito à dignidade da pessoa que está na raiz do paradigma ético básico a ser observado por todo e qualquer ordenamento jurídico. Este paradigma reduz terreno das discrepâncias entre as diferentes concepções de justiça do nosso tempo. A consagração, a garantia, a promoção e o respeito efetivos dos direitos fundamentais constituem o mínimo ético que deve ser acatado por toda sociedade e todo direito que desejem apresentar-se como uma sociedade e um direito justos.

O reconhecimento do valor absoluto da pessoa humana ocupa o vértice dos valores consagrados por qualquer ordenamento jurídico justo, aspiração hoje cada vez mais difundida, alcançando signiicação universal. Inicialmente proclamado como exigência de reconhecimento e proteção da personalidade, o valor verdadeiramente primário e básico da existência do homem em sociedade desloca-se para o reconhecimento da dignidade da pessoa humana.

Esta noção remonta ao cristianismo, tendo sido decantada na modernidade pela ideia kantiana segundo a qual o mais valioso para o ser humano é sua capacidade de se atribuir seus próprios ins como sujeito dotado de autonomia moral, o que impede usar o indivíduo como simples meio para obter ins a ele transcendentes ou pretender dar sentido à sua vida mediante modelos de virtude alheios à sua própria consciência ética (KANT, 1974. p. 229). Segundo Kant (1974. p. 229):

O homem e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como im em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como im (...) os seres racionais se chamam pessoas porque a natureza os distingue como ins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio.

(...) a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um im em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos ins. Portanto, a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas que têm dignidade (KANT, 1974. p. 229).

Como acima mencionado, no pensamento kantiano está a base da concepção atual do fundamento dos direitos humanos, encontra-se a indicação da dignidade, que envolve a capacidade do indivíduo autônomo para decidir sobre seu próprio projeto vital (inclusive seus ins). A dignidade da pessoa humana, em consequência, fundamenta os direitos humanos, nas seis famílias pelas quais eles se manifestam.

A dignidade da pessoa humana é - como disse Dominique Rousseau (1998 apud ROMITA. p. 70) - a pedra ilosofal dos direitos fundamentais. Não constitui um direito fundamental: é o valor que possui a maravilhosa propriedade de dar nascimento aos direitos fundamentais e de lhes atribuir um sentido. Possui também a chave da inteligibilidade do conjunto dos direitos fundamentais. Parece claro, assim, que a dignidade da pessoa humana é o valor do qual "decorrem" os direitos fundamentais. Estes adquirem vida e realidade nele e por ele, mas, em contrapartida, o valor dignidade só se concretiza e se torna efetivo por intermédio dos direitos fundamentais. A dignidade só existe como realidade jurídica concreta por meio de sua exteriorização em cada um dos direitos fundamentais.

Em relação ao Direito do Trabalho, assevera Alessandro Severino Valler Zenni acerca do princípio da dignidade da pessoa humana:

Corolário da dignidade da pessoa humana está na proteção aos direitos personalíssimos, especiicamente a vida, integridade física, honra, liberdades físicas e psíquicas, nome, imagem, intimidade e segredo, e toda sorte que novas categorias analisadas presentemente pelo Direito do Trabalho, como o meio ambiente de trabalho, combate ao assédio moral, sexual, trabalho escravo ou assemelhado à condição degradante, preservação da vida privada e outras facetas da personalidade no âmago dos pactos laborais (ZENNI, 2009. p. 59).

Os direitos fundamentais apresentam-se como im da própria atividade estatal, já que a dignidade da pessoa humana representa o "compromisso fundamental do Estado" (QUEIROZ, 2002. p. 221).

Neste sentindo, faz-se mister trazer à colação as palavras de Alessandro Severino Valler Zenni: "o forte teor axiológico da dignidade da pessoa humana a guindou a princípio de todas as leis constitucionais democráticas" (ZENNI, 2009. p. 56).

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Remonta à Antiguidade romana a proclamação da necessidade do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, pois nas palavras de Cícero já encontramos a expressão "dignidade da natureza humana" (CÍCERO, 2010. p. 58). É certo que a ideia antiga de dignidade guarda escassas relações de identidade com o signiicado atual e vale ressaltar, a propósito, a contribuição do cristianismo. Seria necessário, entretanto, que a humanidade aguardasse dois mil anos para que a consagração da ideia se impusesse como realidade.

Malgrado a dignidade da pessoa estar no fundamento da Constituição Federal, no art. 1º, III, em múltiplas situações tem-se vislumbrado um declínio da pessoa em nome de equilíbrio sistêmico. A teoria autopoiética tem sido profícua na manobra de preenchimento de conceitos ao sabor da equalização sistêmica, ora murchando, ora estendendo, em doses homeopáticas revestidas de toque hermenêutico os valores constitucionais para manter a ordem e a segurança, não raro à custa de dignidade das pessoas, inclusive de laboristas, como é o caso em testilha que se passa a aprofundar.

2. Do Programa Mais Médicos

O Programa Mais Médicos foi criado por meio da Medida Provisória n. 621, de 8 de julho de 2013, regulamentada pela Lei n. 12.871/2013 (BRASIL, 2013), depois de amplo e importante debate público caracterizado por progressiva e massiva aprovação popular e forte oposição de representações da categoria médica (BRASIL, 2015). A Medida Provisória, tendo que ser convertida em Lei, foi debatida na Câmara dos Deputados e, depois de muitas audiências públicas e debates com todos os setores, foi aprovada com diversos aperfeiçoamentos. Seguiu, então, para o Senado onde também foi debatida e aprovada.

O Programa recruta proissionais graduados no Brasil e fora do País, brasileiros e estrangeiros, para atuar nas áreas com maior necessidade, para garantir a essas populações o direito concreto e cotidiano ao acesso universal - e com qualidade - aos serviços de saúde. Esses proissionais participam de uma série de atividades de educação e de integração ensino-serviço para que desenvolvam atenção à saúde de qualidade.

Portanto, o toque de pedra e cerne do programa social está vinculado à distribuição da saúde à coletividade, algo assaz perturbador à ordem sistêmica, requestando-se, como se vislumbrará, captação de proissionais em situações de labuta precária, para justiicar o bem coletivo que concerne a valor social de segunda dimensão, qual seja, saúde de qualidade.

Conforme se depreende da publicação do Ministério da Saúde acerca dos 2 anos do Programa Mais Médicos, em 2013, ano de criação do Programa, o Brasil tinha uma proporção de médicos por habitante signiicativamente inferior à necessidade da população e do SUS. Esses médicos estavam mal distribuídos no território, de modo que as áreas e as populações mais pobres e vulneráveis eram as que contavam - proporcionalmente - com menos médicos. Muitas cidades não tinham médico residindo no território do município e grandes contingentes populacionais não contavam com acesso garantido a uma consulta médica (BRASIL, 2015).

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