A natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos sua harmonização e aplicabilidade no ordenamento brasileiro

AutorCarol Proner - Daniel Avelar
CargoJuiz de Direito, Mestrando do Programa Direitos Fundamentais e Democracia da Uni-Brasil - Doutora em Direito, Coordenadora do Mestrado em Direito da UniBrasil
Páginas38-87

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"(...) par leur nature, les droits de l'homme abolis-sent Ia distinction traditionnelle entre l'ordre interne et l'ordre international. lis sont créateurs d'une perméabilité juridique nouvelle. II s'agit donc de ne lês considérer, ni sous l'angle de Ia souveraineté absolue, ni sous celui de l'ingérence politique.

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Mais, au contraire, il faut comprendre que les droits de l'homme impliquent Ia collaboration et Ia coordi-nation del États et des organisations internationa-les". (ONU, Communiqué de Presse n. DH/VIE/4, de 14.06.1993. p. 10)1.

1. Dos direitos humanos e o “estado cooperativo”

O poder (dever) punitivo do Estado é exercido para a satisfação do bem comum (teoria finalista) - sendo esta a ratio essendi de sua própria existência -, garantindo através de sua autoridade e legitimidade a justiça nas relações sociais. Porém, o referido poder não pode ser exercido de modo aleatório ou indiscriminado, vez que apenas se torna legítimo quando moldado nos estritos limites da ordem constitucional2.

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Os direitos humanos podem e devem ser admitidos como limites da autoridade persecutória e punitiva do Estado, e encontram suas origens remotas na Antiguidade, nos conceitos de isonomia e equidade tratados por Eurípides e Aristóteles. Posteriormente, foram sedimentados nas obras dos chamados pais do direito internacional, entre eles de Francisco de Victória, Francisco de Suárez (1612) e sobretudo na obra "De Jure Belli ac Pacis" (1625) de Hugo Grotius (GABRIEL, 2005, p. 255). Ainda que o direito internacional e os princípios que o fundamentam, pelo caminho do juspositivismo, tenha origem nos períodos da antiguidade e idade média, com releitura juspositivista na idade moderna, somente no pós Segunda Guerra é que se pode falar em direito internacional contemporâneo, direito que nasce a partir da nova sociedade internacional advinda do Conserto das Nações e das atas de capitulação que puseram fim mais desastroso conflito internacional já existente.

A partir de então, o poder-dever de punir do Estado passa a ser formatado segundo um novo modelo consentâneo com o primado do respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana (núcleo material mínimo das Constituições havidas a partir da Declaração Universal de 1948), os quais restaram consagrados em diversas Cartas Constitucionais, Tratados e Convenções Internacionais3, entre eles: Cartas das Nações Unidas (1945)4; Declaração Universal dos Direitos Hu-

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manos (10/12/1948)5; o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais6; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966)7; e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em San José, na Costa Rica (22/11/1969)8.

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A ideia de que o Estado é uma ilha isolada do ordenamento internacional é postura ultrapassada e não condizente com o desenvolvimento dos direitos humanos, conforme bem leciona Cançado Trindade (TRINDADE, 1991, p. 3-4):

O desenvolvimento histórico da proteção internacional dos direitos humanos gradualmente superou barreiras do passado: compreendeu-se, pouco a pouco, que a proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se esgota, como não poderia esgotar-se, na atuação do Estado, na pretensa e in-demonstrável 'competência nacional exclusiva'. Esta última (equiparável ao chamado 'domínio reservado do Estado') afigura-se como um reflexo, manifestação ou particularização da própria noção de soberania, inteiramente inadequada ao plano das relações internacionais, porquanto originalmente concebida tendo em mente o Estado in abstracto (e não em suas relações com outros Estados) e como expressão de um poder interno, de uma supremacia própria de um ordenamento de subordinação, claramente distinto do ordenamento internacional, de coordenação e cooperação, em que todos os Estados são, ademais de independentes, juridicamente iguais.

Há autores, como Peter H berle, que sustentam que os Estados modernos incrementam cada vez mais suas relações internacionais e supranacionais, fomentando o surgimento de um novo modelo de Estado, o chamado "E t do Con titucion I Cooper tivo"9, fundamentado na cooperação nos planos econômico, social e humanitário.

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Segundo Hãberle, o "Estado constitucional cooperativo se coloca no lugar do Estado constitucional nacional. Ele é resposta jurídico-constitucional à mudança do Direito Internacional de direito de coexistência para o direito de cooperação na comunidade (não mais sociedade) de Estados, cada vez mais imbricada e constituída, e desenvolve com ela e nela o 'direito comum de cooperação'. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição torna-se internacional!" (HÀBERLE, 2007, p. 71). Para o autor, o Estado Constitucional Cooperativo não é apenas uma possível forma (futura) de desenvolvimento do tipo 'Estado Constitucional'; segundo o autor, ele já assumiu conformação clara na realidade e é uma forma de estabilidade legítima do amanhã (H BERLE, 2007, p. 05).

No âmbito do Estado Cooperativo, os direitos humanos passam a exercer significativa importância, vez que foram um dos principiais objetivos de proteção pelas Nações Unidas no mundo pós-guerra, e hoje podem ser visualizados sob um duplo aspecto: a universalidade e a indivisibilidade10.

Diz-se univer I "porque a condição de pessoa há de ser o requisito único para a titularidade de direitos, afastada qualquer outra condição" (PIOVESAN, 1999, p. 92); e indivi ível "porque os direitos civis e políticos hão de ser somados aos direitos sociais, econômicos e

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culturais, já que não há verdadeira liberdade sem igualdade e nem tampouco há verdadeira igualdade sem liberdade" (PIOVESAN, 1999, p. 92).

No direito internacional, à semelhança da dogmática constitucional emancipatória em contraposição à dogmática das razões de Estado que negligencia o espaço societário extraestatal (CLÈVE, 2003, p. 17-31), defendemos uma dogmática convencional emancipatória em contraposição à dogmática das razões da soberania do Estado, um Estado que negligencia o espaço societário internacional, que resistência em reconhecer as possibilidades que advém da principiologia e da suprana-cionalidade em matéria de direitos humanos.

Nessa perspectiva, não há dúvida de que o ser humano é sujeito de direitos na esfera internacional e sua finalidade última. Trata-se da irretocável lição do Professor Celso D. de Albuquerque Mello (976, v. 1, p. 416), verbis:

O direito, seja ele qual for, dirige-se sempre aos homens. O homem é a finalidade última do Direito. Este somente existe para regulamentar a vida entre os homens. Ele é produto do homem. Ora, não poderia o DI negar ao indivíduo a subjetividade internacional. Negá-la seria desumanizar o DI e transformá-lo em um conjunto de normas ocas sem qualquer aspecto social. Seria fugir ao fenômeno de socialização que se manifesta em todos os ramos do Direito.

Não é por outra razão que o eminente Min. Celso de Mello averbou que se delineia, hoje, uma nova perspectiva no plano do direito internacional. É que, ao contrário dos padrões ortodoxos consagrados pelo direito internacional clássico, os tratados e convenções, presentemente, não mais consideram a pessoa

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humana como um sujeito estranho ao domínio de atuação dos Estados no plano externo. O eixo de atuação do direito internacional público contemporâneo passou a concentrar-se, também, na dimensão subjetiva da pessoa humana, cuja essencial dignidade veio a ser reconhecida em sucessivas declarações e pactos internacionais como valor fundante do ordenamento jurídico sobre o qual repousa o edifício institucional dos Estados nacionais. (HC n. 87585-TO, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 03/12/2008)

O presente texto tem por função discutir a natureza jurídica e como são recepcionados pelo direito pátrio os tratados e convenções sobre direitos humanos, buscando formular um entendimento a respeito de sua força normativa, especialmente após a promulgação da EC n. 45.

2. Da hierarquia interna dos tratados de direitos humanos

No tocante à hierarquia das normas internacionais de direitos humanos no ordenamento interno, surgiram quatro posicionamentos: (i) a tese da hierarquia supraconstitucional dos tratados em matéria de direitos humanos11; (ii) atese da hierarquia constitucional12; (iii) atese da hierarquia supralegal, mas infraconstitucional13; e (iv) a tese da igualdade entre tratado e a lei14.

O primeiro entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal afirmava que os tratados eram recepcionados pelo ordenamento

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interno com força de lei ordinária15. Aduzia-se que, caso os tratados tivessem força de norma constitucional, eles acabariam por modificar a própria Constituição.

Nesse sentido, o então Ministro do STF, José Carlos Moreira Alves (1998), chegou a afirmar que a norma prevista no 2o do art. 5o, da Constituição Federal, somente teria aplicabilidade para os tratados firmados antes de 198816 e que eles seriam recepcionados com força de lei ordinária.

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Com absoluto respeito que se possa externar ao pronunciamento da mais alta Corte do país, verifica-se que aceitar-se o referido posicionamento é criar-se a figura de "direitos e garantias de segunda classe". Pois, se "a própria Constituição estabelece que os direitos e garantias nela elencados podem ser complementados por outros provenientes de tratados, não se poderia pretender que esses outros direitos e garantias tivessem um grau hierárquico diferente do das normas constitucionais em vigor" (MAZZUOLI, 2005, p. 236).

Por outro lado, se é certo que os tratados não...

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