Transporte coletivo urbano e luta de classes: um panorama da questão

AutorManoel Nascimento
CargoManoel Nascimento é assessor da Equipe Urbana do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), membro da Equipe Editorial dos Cadernos do CEAS e militante do Movimento Passe Livre (MPL). [manoelnascimento@gmail.com]
Páginas43-63
TRANSPORTE COLETIVO URBANO E LUTA DE CLASSES:
UM PANORAMA DA QUESTÃO
MANOEL NASCIMENTO *
1. INTRODUÇÃO
Quando uma equipe de reportagem do jornal A Tarde perguntou a Ivonilda
Queiroz, em 26 de agosto de 2003, o que ela achava da Estação Pirajá, uma
das maiores estações de transbordo de Salvador (BA), a resposta veio certeira
como o disparo de um Dragunov: “O inferno começa às seis horas”. Mas quem
diabos é essa tal de Ivonilda para dizer isso? Ela por acaso entende alguma
coisa de transportes? Sabe o que é um IPK, um equipamento rodante ou, ao
menos, como se compõe o cálculo tarifário? Entende a dinâmica do sistema de
gratuidades, o “enorme e irreversível avanço tecnológico” da bilhetagem
eletrônica e os “enormes esforços” das prefeituras para melhorar a qualidade
do transporte coletivo urbano? Ivonilda Queiroz é mais uma dentre as 110 mil
pessoas que transitam diariamente na Estação Pirajá para se locomover em
Salvador; é difícil conjecturar, mas muito provavelmente nunca passou pelos
bancos de uma universidade, trabalha oito ou mais horas por dia e ainda cuida
da casa, e com certeza estava com pressa quando a reportagem interrompeu
seu ritmo cotidiano. Estas pessoas entendem muito mais dos problemas
cotidianos de transporte que qualquer técnico municipal, embora não lhes seja
garantida hoje, dentro da atual configuração política e institucional, a menor
possibilidade de agir para resolver o problema da mobilidade urbana e do
transporte coletivo.
Na verdade, os principais problemas dos sistemas de transporte são mais
simples do que parecem, desde que troquemos em miúdos todo o vocabulário
técnico especializado com que se mascaram as questões políticas envolvidas
e que se tenha a devida atenção aos aspectos mais difíceis de entender. É o
que pretendo fazer com este artigo, o primeiro de uma série: apresentar um
rápido panorama do transporte público no Brasil para embasar a discussão
sobre o tema – que já acontece nas ruas com a implantação da segunda fase
da bilhetagem eletrônica em Salvador, e com o polêmico aumento de tarifas de
20 de janeiro de 2007, que as majorou em 17,6% e fixou a tarifa básica em R$
2,00. Para isto, no item 2, apresentarei o lugar dos transportes na problemática
urbana e algumas linhas de análise dos sistemas de transportes; no item 3,
identificarei dentro do sistema assim construído em suas linhas gerais os
atores políticos, seus interesses de classe e a luta resultante da disputa por
estes interesses, que desemboca nos conceitos de crise de financiamento e
crise de mobilidade; no item 4, apresentarei algumas alternativas colocadas
pelos atores políticos para resolver as duas crises e, por fim, farei um balanço
das hipóteses abertas pelas descrições da presente análise.
Tratarei aqui apenas do Sistema de Transporte Coletivo por Ônibus (STCO),
principalmente por questão de espaço, mas também porque, apesar de
existirem diversos meios de transporte de massa criados para tipos específicos
de deslocamento e de vias utilizadas (trem, metrô, bondes, trólebus, barcas,
teleféricos, elevadores etc.), os ônibus hoje são o principal dentre eles: em
nível mundial são mais de três milhões de ônibus que transportam anualmente
6,5 trilhões de passageiros por quilômetro (BM, 2002); no Brasil, uma frota de
95 mil ônibus atende a 59 milhões de passageiros por dia, e é responsável por
92% da demanda por transporte coletivo (NTU, 2006). Não haverá espaço
suficiente neste texto para o “laboratório” de nossas hipóteses, que é o sistema
de transporte coletivo por ônibus de Salvador; o que ficará para uma análise
posterior, tendo em vista desde já as seguintes informações:
a) os ônibus são francamente dominantes como meio de transporte em
Salvador: transportaram 95,3% dos passageiros do setor coletivo público em
2004, contra 2,7% dos ascensores, 1% do trem suburbano e 1% do ferry boat
no mesmo ano (SALVADOR, 2005);
b) A média mensal de passageiros transportados caiu 15,07% entre 1995 (ano
de pico em número de passageiros transportados) e 2006 (SALVADOR, 2005).
Uso intercalada e descompromissadamente o nome técnico apropriado do
objeto deste artigo – sistema de transporte coletivo por ônibus – e outros
nomes correntes sistema/setor de transporte público, sistema/setor de
transporte coletivo, sistema/setor de transporte. Faço o mesmo com outras
terminologias um tanto quanto estanques da teoria social vigente. Assim,
busco evitar o hermetismo das discussões atuais sobre transporte público,
pois, mesmo “trocando em miúdos” os termos técnicos do setor, o
funcionamento do transporte coletivo urbano de passageiros, como quase tudo
que envolve a temática urbana, é bastante complexo, e exige muita atenção e
concentração por parte de quem lê para que se possa entendê-lo, mesmo de
forma simplificada.
2. EQUACIONAR A QUESTÃO: CIDADE E TRANSPORTE
As cidades tendem a se tornar o principal habitat da humanidade. A
Organização das Nações Unidas (ONU) encontrou em 2000 um número de 2,9
bilhões de habitantes nas cidades (47% da população mundial total), e projeta
que este número crescerá para 5 bilhões em 2030 (60% da população mundial
total projetada); além disso, antecipa que, entre 2000 e 2030, quase todo
crescimento populacional mundial se dará nas áreas urbanas de países em
desenvolvimento (UNPD, 2004). No Brasil, mais especificamente, a população
urbana saltou de 18,8 milhões (26,3% do total) em 1940 para 138 milhões
(81,2% do total) em 2000, um aumento de 135 milhões na carga de habitantes
urbanos em sessenta anos; apenas na última década do século XX a
população urbana brasileira cresceu 22.718.968 habitantes, mais da metade
da população do Canadá ou um terço da população de França (Maricato,
2000).
Esta concentração do crescimento populacional global nas cidades de países
periféricos e semiperiféricos – na verdade uma imensa favelização do mundo
guarda relação próxima com as políticas de desregulamentação agrícola e de
disciplina financeira impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo
Banco Mundial (BM), que levaram à depauperação da agricultura camponesa e

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