Trânsito em julgado progressivo: o entendimento das cortes supremas e a questão no CPC/15

AutorClayton Maranhão/Rogério Rudiniki Neto
Páginas183-202

Page 183

Ver Nota12

1. Considerações introdutórias

Este trabalho busca abordar à luz do ordenamento jurídico vigente o tema do marco inicial da contagem do prazo decadencial para o ajuizamento de ações rescisórias contra sentenças que possuem capítulos autônomos (prazo de dois anos segundo o art. 975 do CPC/15; cento e vinte dias conforme o art. 22, I, j, do Código Eleitoral3e oito anos na situação do art. 8º-C da Lei 6.739/794), diferenciando-se da hipótese em que há capítulos dependentes.

Neste expediente serão evitadas grandes construções teóricas, muitas vezes desprovidas de qualquer aplicabilidade prática. Em

Page 184

verdade, este estudo almeja apresentar soluções para problemas práticos vivenciados no dia a dia do operador do direito. Nossa aná-lise centra-se na investigação da (in)compatibilidade entre a Súmula 401 do Superior tribunal de Justiça (“O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial”) com o entendimento do Supremo tribunal Federal a respeito da questão e os dispositivos pertinentes do CPC/15.

De início, passamos a dissertar sobre a “teoria dos capítulos da sentença”.

2. Teoria dos “capítulos da sentença”

Na célebre lição de Cândido Rangel Dinamarco, cada capítulo corresponde a uma unidade autônoma do decisório da sentença, ou seja, cada capítulo veicula uma deliberação específica, diferente das demais constantes naquela sentença5.

A teoria dos capítulos foi expressamente adotada pelo CPC/15. Basta ver a redação dos arts. 966, § 3º; 1.009, § 3º; 1.013, §§ 1º e 5º, e 1.034, parágrafo único.

Primeiramente, é possível diferenciar os capítulos processuais (que veiculam questões preliminares) dos capítulos de mérito. Estes são bipartidos em: (i) capítulos de mérito propriamente ditos e (ii) capítulos relativos às questões prejudiciais à apreciação do mérito propriamente dito, que abarcam essencialmente a prescrição e a decadência.

Fala-se, outrossim, nos capítulos relativos às verbas de sucumbência. São capítulos de natureza absolutamente acessória. Por exemplo, a subsistência do capítulo relativo aos honorários advocatícios depende da manutenção do capítulo relativo à condenação (mérito)6.

Quanto aos capítulos de mérito, a investigação da autonomia ou dependência destes deve ser feita com base em considerações acerca das modalidades de cumulação de pedidos7. Em relação à questão

Page 185

do termo inicial do prazo decadencial para o manejo da rescisória, interessam especialmente as cumulações simples e sucessiva de pedidos.

A cumulação simples tem como fundamento o art. 327 do CPC/15. tal espécie de cumulação, observadas as limitações legais, permite que o autor mova em face do réu dois ou mais pedidos que poderiam ter sido veiculados em demandas autônomas. Como exemplo de cumulação simples de pedidos, Araken de Assis menciona a cobrança, em um mesmo processo, de dívidas decorrentes de contratos de mútuo diversos8. Esses pedidos são absolutamente autônomos e independentes, a sorte de um não condiciona a do outro.

Logo, neste caso, se a parte manejar recurso contra apenas um dos capítulos da decisão relativos aos pedidos cumulados de forma simples, isso jamais repercutirá na parte da sentença atinente ao capítulo não questionado.

Já na cumulação sucessiva, a apreciação do pedido dependente está condicionada à eventual procedência do pedido principal. Como exemplo de cumulação sucessiva de pedidos, cita-se a ação de reintegração de posse cumulada com ação demolitória9. Aqui, caso o pedido prejudicial seja julgado improcedente, estará automaticamente obstada a análise pelo juiz do capítulo prejudicado. Caso ambos os pedidos sejam julgados procedentes, eventual recurso movido apenas contra o capítulo dependente não têm o condão de influir na situação do capítulo relativo ao pedido principal. todavia, na hipótese inversa, em que o recurso é intentado tão somente contra o capítulo principal, o eventual sucesso desse meio de impugnação, com a reforma do capítulo hostilizado, por consequência lógica, implicará a desconstituição do capítulo relativo ao pedido subordinado.

Page 186

Superado esse assunto, cumpre afastar um equívoco de certa forma comum na prática, qual seja, a associação da Súmula 514 do Supremo tribunal Federal com a temática do momento do trânsito em julgado da sentença que possui capítulos autônomos.

3. A Súmula 514 do STF

A Súmula 514 do Supremo tribunal Federal está vazada nos seguintes termos: “Admite-se ação rescisória contra sentença transitada em julgado, ainda que contra ela não se tenha esgotado todos os recursos”. Em uma análise mais açodada, haveria incompatibilidade entre tal enunciado e a Súmula 401 do Superior tribunal de Justiça (“O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial”). todavia, uma investigação mais detida afasta tal conclusão errônea.

Ora, para que seja obtida uma “interpretação autêntica” da Súmula 514 do StF é preciso perscrutar acerca das questões debatidas nos precedentes que a originaram.

A Súmula 514 foi aprovada na sessão plenária de 03 de dezembro de 1969. Seus precedentes são os seguintes: AR 17210(DJ de 25/10/1968) e RE 63611(DJ 29/12/1949).

Em tais precedentes o StF – que, à época, também era o guardião da intepretação da legislação infraconstitucional – interpretou dispositivos do CPC/39. Na oportunidade, não foram feitas considerações de ordem constitucional, nem mesmo à luz da constituição vigente à época.

Em primeiro lugar, da leitura dos acórdãos (AR 172 e RE 6.364) nota-se que o StF em momento algum adentrou na discussão acerca da possibilidade de trânsito em julgado parcial (mediante a aplicação da “teoria dos capítulos da sentença”). A discussão era outra: questionava-se se, para que a parte pudesse ajuizar ação rescisória, haveria – ou não – o requisito da utilização de todos os recursos cabíveis no processo de conhecimento. Por exemplo, advogava-se

Page 187

a tese de que, caso a parte não tivesse interposto recurso extraordinário do acórdão do tribunal de justiça, não seria cabível a ação rescisória (que teria como requisito o “esgotamento dos recursos no processo originário”). É algo parecido com o que ocorre hoje em relação aos recursos extraordinário e especial.

Conforme consta do dispositivo do RE 6364, “o julgamento da ação rescisória independe da consideração da ausência do uso de todos os recursos, contra a decisão rescindenda na justiça local”.

Segundo este trecho do voto do ministro Hahnemann Guimarães, “sentença passada em julgado não é a impugnada por todos os recursos possíveis, mas a sentença que não admite mais impugnação, a sentença irreformável, irrevogável, a que proveritate habetur”. Ou seja, como sintetizam Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha a respeito da Súmula 514 do StF, para que a ação rescisória possa ser manejada, pouco importa se antes da ocorrência do trânsito em julgado a parte interessada manejou, ou não, todos os recursos cabíveis12.

Ato contínuo, passamos a estudar a Súmula 401 do StJ.

4. As duas faces da Súmula 401 do STJ (um mesmo texto pode gerar duas ou mais normas)

Diante de sua central importância neste estudo, transcrevemos novamente a redação da Súmula 401 do StJ: “O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial.”

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que os precedentes que motivaram a edição dessa súmula tratavam de duas questões diver-sas, o que faz com que esse enunciado tenha dupla aplicabilidade. Como destaca Flávio Chiem Jorge, aquela corte buscou tratar dos seguintes temas: (i) a natureza do juízo de (in)admissibilidade recursal; (ii) o marco inicial do prazo decadencial para manejo da ação rescisória contra sentença que possui capítulos autônomos13.

Page 188

Destaque-se ser plenamente possível que um mesmo “texto” (no caso, a súmula) possibilite a criação de duas ou mais “normas” (texto interpretado)14.

Quanto à primeira situação, outrora defendia-se a tese de que recursos não admitidos não teriam o condão de exarar efeitos, isto é, não seriam capazes de influir (atrasar) o início do prazo para o ajuizamento de ações rescisórias. Por exemplo, interposto um recurso inadmissível, caso o tribunal competente demorasse três anos para realizar o juízo de admissibilidade negativo, já teria transcorrido o prazo de dois anos para o manejo da rescisória. A vulneração à segurança jurídica era ululante15.

Diante dessa indesejável situação, o

StJ procurou com a Súmula 401 fixar a tese de que o recurso, mesmo que não ultrapasse o juízo de admissibilidade, é idôneo a adiar o termo a quo do ajuizamento da demanda rescisória. Este entendimento foi recentemente reafirmado por aquela corte no bojo no AgRg no REsp 1.526.235/ SE16, em que consta a seguinte tese: “o prazo decadencial para o ajuizamento da ação rescisória se inicia apenas quando não for mais cabível recurso do último pronunciamento judicial, ainda que esse negue seguimento a ele por ausência de algum de seus requisitos formais. Incidência da Súmula 401 do StJ.”

Frise-se que o entendimento supracitado é relativizado apenas em hipóteses excepcionais, como nos casos de recursos intempestivos ou manifestamente protelatórios. Conforme se observa do AgRg na AR 4.270/DF17, “a interposição de recurso intempestivo não impede a ocorrência do trânsito em julgado, que se sucede...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT