Transitional Justice and Political Uses of the Judiciary in Brazil in 2016: an Institutional Coup?/Justica de Transicao e Usos Politicos do Poder Judiciario no Brasil em 2016: um Golpe de Estado Institucional?

AutorFilho, Jose Carlos Moreira da Silva
CargoTexto en portugues - Ensayo

Em relacao aos demais paises da America Latina que amargaram ditaduras civismilitares de seguranca nacional na segunda metade do seculo XX, o Brasil apresentou uma peculiaridade que acabou por influenciar sobremaneira as caracteristicas do regime democratico que se seguiu a partir de 1988: a redemocratizacao guiou-se sob o signo de uma anistia ambigua, que representou tanto as lutas da sociedade civil pela abertura do regime, como o empenho dos agentes da ditadura em garantir uma transicao que nao os responsabilizasse pelos crimes que praticaram. Este ultimo aspecto encontrou solo fertil para prosperar, visto que ao longo de todo o periodo ditatorial houve um amplo e intenso processo de judicializacao da repressao politica, o que certamente cultivou no poder judiciario brasileiro uma grande resistencia em revisar os termos dessa anistia, mesmo em periodo democratico. Argumenta-se nesse artigo que o ambiente criado a partir do carater ambiguo da anistia, em especial considerando a atuacao do poder judiciario, contribuiu para a ruptura da democracia ocorrida no Brasil em 2016.

  1. A Ambiguidade da Anistia no Brasil

    No dia 28 de agosto de 1979, em plena ditadura, foi promulgada a lei de anistia no Brasil, a Lei No 6.683. Esta lei reflete uma acentuada ambiguidade, e que se transmite ao proprio sentido da palavra "anistia" no contexto politico brasileiro.

    De um lado, a lei foi o resultado de uma ampla mobilizacao social em torno da pauta da anistia aos que estavam presos, no exilio ou na clandestinidade, acusados de terem praticado crimes politicos. A demanda pela anistia representou a demanda pela redemocratizacao do pais (1). O largo contingente de setores da sociedade que conseguiu mobilizar (trabalhadores, artistas, intelectuais, politicos, imprensa, igreja, presos politicos, entre outros) constituiu a base sobre a qual mais tarde viriam as mobilizacoes pelas Diretas Ja em 1984 e a participacao no processo Constituinte em 1987 e 1988.

    Por outro lado, a lei representou uma vitoria para o projeto de transicao controlada idealizado pela cupula do regime ditatorial (2), ja que conseguiu o feito de anistiar os agentes da ditadura, impedindo qualquer investigacao sobre os seus crimes, sem sequer afirmar que tais agentes teriam praticado assassinato, tortura, desaparecimento forcado e outras graves violacoes de direitos humanos (3). Do mesmo modo, excluiu a anistia para os presos politicos que estavam condenados por terem tomado parte na resistencia armada. E, por fim, a promulgacao da lei foi apresentada como uma benesse ofertada pelo governo militar sem que se promovesse o reconhecimento da ampla participacao popular neste processo.

    A redemocratizacao do pais foi balizada pelo que a lei de anistia representou. O aspecto emancipatorio e popular da luta pela anistia desaguou na ampla participacao da sociedade civil no processo constituinte nos anos de 1987 e 1988 e na caracteristica avancada da lei em termos de principios e reconhecimento de direitos fundamentais (4). Ja o aspecto autoritario e reacionario da anistia refletiu-se no esquecimento institucional dos crimes contra a humanidade praticados e sua necessaria responsabilizacao. Tal bloqueio, devidamente afirmado pelo Poder Judiciario em todas as tentativas que foram feitas de investigar e responsabilizar esses crimes (5), tambem favoreceu a ausencia de reformas institucionais que buscassem esclarecer a participacao dos poderes constituidos no regime ditatorial, bem como de processos de responsabilizacao administrativa e judicial sobre os agentes e funcionarios publicos que facilitaram ou praticaram diretamente tais crimes. Em outras palavras, militares, policiais, juizes, promotores, politicos e demais funcionarios publicos que participaram ativamente do processo de perseguicao politica aos opositores do regime ditatorial continuaram nos seus postos de trabalho como se nada houvesse acontecido.

    A Constituinte foi instalada em 1987 a partir de uma emenda constitucional produzida na ordem juridica autoritaria, uma emenda a Constituicao outorgada de 1967, a Emenda Constitucional No 26/1985. Nesta mesma emenda a lei de anistia de 1979 foi reafirmada (6), como que para sugerir que a nova Constituicao a ser criada nao pudesse rever os seus termos.

    A despeito dessa peculiaridade, o texto da nova Constituicao nao reproduz mais a anistia aos crimes conexos. Alem disso, em seu Art. 8[degrees] do Ato das Disposicoes Constitucionais Transitorias o constituinte firmou, com clareza inequivoca, que a anistia era devida aos que "foram atingidos, em decorrencia de motivacao exclusivamente politica, por atos de excecao, institucionais ou complementares". Assim, a anistia aos agentes da ditadura nao foi recebida pelo texto constitucional de 1988. Por outro lado, tambem nao foi expressamente repudiada. De todo modo, ao nao mencionar o tema e ao assinalar o forte repudio a tortura, considerada crime inafiancavel e insuscetivel de graca ou anistia (7), a partir dos seus principios e direitos fundamentais, a Constituicao revela-se um local muito pouco confortavel para abrigar a anistia aos crimes conexos entendida como a anistia aos crimes dos agentes da ditadura. Ha uma evidente contradicao principiologica e valorativa no argumento de que a Constituicao brasileira de 1988 endossa a anistia a tais crimes.

    Alem de excluir da sua apreciacao a anistia aos crimes da ditadura, o Artigo 8[degrees] do Ato das Disposicoes Constitucionais Transitorias lancou as bases de uma verdadeira politica de reparacao aos ex-perseguidos politicos. O termo "anistia", mesmo na legislacao produzida pela ditadura sempre trouxe alusao igualmente a algum sentido de reparacao e de restituicao do status anterior a perseguicao politica. Porem, como era de se esperar naquele ambiente ainda mutilado politicamente, contaminado pelo esquecimento forcado e seguido de perto pelo autoritarismo, a lei regulamentadora dessa politica de reparacao sinalizada pelo texto constitucional so viria a luz cerca de 13 anos depois, mais precisamente em 2001, via Medida Provisoria depois convertida na Lei No 10.559/2002.

    A nova lei de anistia, alem de prever direitos como a declaracao de anistiado politico, a reparacao economica, a contagem do tempo e a continuacao de curso superior interrompido ou reconhecimento de diploma obtido no exterior (8), institui a Comissao de Anistia, vinculada ao Ministerio da Justica, e que fica responsavel pela apreciacao e julgamento dos requerimentos de anistia (9). A Comissao de Anistia e, na verdade, uma comissao de reparacao, mas que carrega consigo a propria ambiguidade do termo "anistia", forjada no processo de redemocratizacao do pais.

    Observando a atuacao da Comissao de Anistia, desde a sua criacao, e, especialmente, durante o segundo mandato do Presidente Lula, iniciado em 2007, quando o Ministerio da Justica foi conduzido por Tarso Genro e a presidencia da Comissao de Anistia por Paulo Abrao, percebe-se uma radical mudanca na concepcao da anistia como politica de esquecimento. Em primeiro lugar, ao exigir a verificacao e comprovacao da perseguicao politica sofrida (10), a lei de anistia acaba suscitando a apresentacao de documentos e narrativas que trazem de volta do esquecimento os fatos que haviam sido desprezados pela anistia de 1979. Passa a ser condicao para a anistia a comprovacao e detalhamento das violencias sofridas pelos perseguidos politicos, circunstancia que por si so associa anistia a memoria.

    Nas sessoes de julgamento da Comissao de Anistia, os requerentes que estao presentes sao convidados a se manifestarem, proporcionando em muitos casos importantes testemunhos, que sao devidamente registrados. Os autos dos processos contem uma narrativa muito diferente daquela que esta registrada nos arquivos oficiais. Os processos da Comissao de Anistia fornecem a versao daqueles que foram perseguidos politicos pela ditadura civil-militar, contrastando com a visao, normalmente pejorativa que sobre eles recai a partir dos documentos produzidos pelos orgaos de informacao do periodo.

    Para alem da reparacao economica, a Comissao de Anistia tambem e conhecida internacionalmente por ter empreendido de maneira inovadora e sensivel politicas publicas de memoria e projetos vanguardistas como as Caravanas da Anistia (11), as Clinicas do Testemunho (12), o Projeto Marcas da Memoria (13), e por ter iniciado a construcao do Memorial da Anistia (14), realizado eventos e intercambios academicos e culturais, alem de inumeras publicacoes que aprofundam o sentido da Justica de Transicao no Brasil e na America Latina (15). Estes programas e projetos compunham ate 2016 o Programa Brasileiro de Reparacao Integral, reconhecido e celebrado internacionalmente, e faziam parte do rol dos direitos de todos aqueles que foram atingidos por atos de excecao durante a ditadura civil-militar e aos seus familiares.

    Ao longo desses anos de existencia e atuacao da Comissao de Anistia e possivel identificar outros orgaos e comissoes de Estado que reforcaram e seguiram o mesmo sentido de resgate da memoria politica da ditadura a partir da visao das vitimas, dentre os quais destacam-se em especial a Comissao Especial de Mortos e Desaparecidos Politicos, criada em 1995 ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, e a Comissao Nacional da Verdade, criada em 2011 e instalada em 2012, em meio ao primeiro mandato da Presidenta Dilma Roussef.

  2. Judiciario Brasileiro entre o autoritarismo e o ativismo

    Em seu livro "Ditadura e Repressao", no qual promove um estudo comparado sobre a judicializacao da repressao na Argentina, no Chile e no Brasil, Anthony Pereira identifica um curioso paradoxo no caso brasileiro (16). De todos os tres paises, o Brasil foi aquele que mais se aprofundou na judicializacao da repressao ditatorial e que construiu uma legalidade autoritaria mais ampla, arraigada e vinculada a ordem juridica anterior. Tal se deve, entre outros fatores, ao alto grau de coesao entre as elites judiciais e as forcas...

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