Transformação da economia direcionada ao crescimento e ao alcance do progresso social, sob a égide da Constituição Federal de 1988

AutorDinaura Godinho Pimentel Gomes
Páginas169-192

Dinaura Godinho Pimentel Gomes. Doutora em Direito do Trabalho e Sindical pela Universidade Degli Studi di Roma La Sapienza, com revalidação pela Universidade de São Paulo – USP. Pós-doutora em Direito junto à Pontifícia Universidade Católica - PUC-SP. Juíza do Trabalho Titular da 1º Vara de Londrina - Paraná. Professora Universitária. Email: sergiodinaura@ sercomtel.com.br

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Introdução

Em face da recente crise financeira provocada pelos Estados Unidos com sérias repercussões na Europa, China, Japão e nos países da América Latina, dentre os quais o Brasil, já se admite, sem qualquer perplexidade, ser indispensável a ação intervencionista governamental, no âmbito da política econômica, inclusive por aqueles seguidores da ideologia neoliberal, do "laissezfaire", a qual se mostrava forte e dominante há mais de três décadas.

Assim, a realidade hodierna aponta a manifesta incapacidade do livre mercado de resolver sua própria crise financeira e, mais ainda, os problemas sociais. Com isso, exige-se a atuação positiva, séria e transparente do Estado, voltada à promoção, incentivo, planejamento e à implantação de sérias políticas públicas, destinadas a conduzir a ordem econômica em busca do equilíbrio financeiro e do progresso social.

Nessa senda, torna-se indispensável ressaltar a supremacia da Constituição Federal, no ordenamento jurídico brasileiro, de forma a realizar seus valores e real sentido em prol de uma sociedade mais humana e mais justa, a partir da valorização do trabalho humano.

Com efeito, sem trabalho humano – e sem emprego – não há possibilidade de se almejar o crescimento de uma sociedade capitalista por ser o principal meio de se assegurar à maioria dos cidadãos ativos o direito à vida com dignidade.

É imperioso, portanto, seguir sempre em busca de uma interação expansionista dos valores da liberdade e da igualdade, centrados no postulado da dignidade humana, no campo econômico e social, em prol da efetiva realização do valor "justiça", como fundamentos do Estado Democrático de Direito. É o que a Lei Maior estabelece. O que falta, muitas vezes, é a vontade de Constituição (HESSE, 1991, p. 19).

1 Um perfil jurídico-filosófico do valor dignidade

A dignidade humana traduz uma especificação material e independente de qualquer tempo e espaço. Consiste em considerar que cada pessoa possui umPage 171 espírito impessoal, o que a torna capaz de tomar suas próprias decisões a respeito de si mesma e de tudo que gira ao seu redor. Detém o peculiar poder de se autodeterminar, orientando sua liberdade pela razão à semelhança de Deus. Por tudo isso, é preciso considerar que "a dignidade humana consiste na eminência ou excelência do ser humano, mediante uma intensa participação no mais alto grau do ser, que o constitui um ser dotado de debitude e exigibilidade em relação a si mesmo e em relação aos demais homens. Em outras palavras, tratase de um ente cuja ordem do ser compreende a ordem do dever ser" (JAVIER HERVADA, 2008, p. 311). Assim, a dignidade reside na natureza racional ou espiritual do homem, como imagem do Deus Criador.

No contexto da evolução histórico-filosófica da ciência jurídica, o pensamento de KANT apresenta-se como o mais expressivo, no que concerne à conceituação da dignidade da pessoa humana como fim e não como meio. Serve para robustecer a linha do pensamento voltada contra qualquer tendência à coisificação ou instrumentalização do ser humano (SARLET, 2001, p. 35), jungida à exigência por ele enunciada como segunda fórmula do imperativo categórico.

Vale dizer, indiscutivelmente, a assertiva de Kant (1980, p. 135, grifo nosso) de que "o homem, e duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade"1, é mais do que oportuna para os dias de hoje, principalmente no mundo do trabalho, para chamar à reflexão para o valor da pessoa humana como ser social, como valor-fonte de todos os valores, na hodierna e feliz expressão do jusfilósofo brasileiro Miguel Reale (1988, p. 159). Resulta daí que o outro deve ser compreendido não como mero objeto, porém reconhecido como sujeito, tratado como fim em si mesmo, de onde se vislumbra não somente a dimensão individual da pessoa humana, mas também sua dimensão comunitária e social.

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É nesse sentido que foram desenvolvidas as linhas do pensamento filosófico contemporâneo, no sentido de enfrentar o positivismo jurídico e o ceticismo moral, ao final materializadas em textos constitucionais, que incorporaram esses princípios éticos com os quais as regras jurídicas e as decisões judiciais devem ser compatíveis. No entanto, tal reconhecimento institucional é muito recente, surgindo após a era Hitler marcada pelos horrores do Nazismo, quando houve o envio aos campos de concentração de 18 milhões de pessoas, causando a morte de 11 milhões, das quais 6 milhões de judeus. Todas essas pessoas foram desconsideradas, pelo próprio Estado, em sua essência e dignidade, apenas por não pertencerem à escolhida raça ariana ou pelo fato de não serem enquadradas nos padrões de sociedade rigidamente preestabelecidos, como os ciganos e os homossexuais.

A partir desse extermínio brutal, lembrado e abominado constantemente até os dias de hoje, buscou-se a imediata e efetiva reconstrução dos direitos humanos, espelhada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (adotada e proclamada pela Resolução n. 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, assinada pelo Brasil na mesma data. Para tanto, com essa Declaração, foi introduzida a revisão da noção tradicional da soberania absoluta do Estado-nação, ao se reconhecer, no âmbito global, a "dignidade inerente a todos os membros da família humana".

Dito de modo diferente, desde então, toda pessoa humana passou a ser vista como sujeito de direito internacional, cuja tutela não se restringe mais à competência nacional ou à jurisdição doméstica exclusiva. A respeito, eis o que reza o art. 22, da citada Declaração:

Toda pessoa como membro da sociedade tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de personalidade (grifo nosso).

Exsurge então o primeiro passo de reconstrução universal da sociedade e do Estado em prol do bem de todas as pessoas, sem qualquer distinção, tendo como núcleo central o respeito à dignidade da pessoa humana, a exemplo do que dispôs a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 23 de maio de 1949, que, por primeiro, erigiu a dignidade da pessoa humana em direito fundamental, ao proclamar, no seu art. 1º, o seguinte:

(1) A dignidade da pessoa humana é inviolável. Todas as autoridades públicas têm o dever de a respeitar e a proteger.

(2) O Povo Alemão reconhece, por isso, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de qualquer comunidade humana, da paz ePage 173 da justiça no mundo [...]. (A LEI..., 1996, p. 124).

Um pouco antes, a Constituição da República Italiana, de 27 de dezembro de 1947, em seu art. 3º, passou a declarar expressamente que todos os cidadãos têm igual dignidade social, sem qualquer distinção, e estabelece o seguinte:

ART. 3. Tutti i cittadini hanno pari dignità sociale e sono eguali davanti alla legge, senza distinzione di sesso, di razza, di lingua, di religione, di opinioni politiche, di condizioni personali e sociali.

È compito della Repubblica rimuovere gli ostacoli di ordine economico e sociale, che, limitando di fatto la libertà e l'eguaglianza dei cittadini, impedisconoil pie—no sviluppo della persona umana e l'effettiva partecipa—zione di tutti i lavoratori all' organizzazione politica, economica e sociale del Paese.2

Cumpre destacar, também, que essa Constituição, em seu art. 1º, proclama que "a Itália é uma República democrática fundada no trabalho"3.

Bem posteriormente, a Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de abril de 1976, em seu art. 1º, assim veio a proclamar de forma incisiva:

"Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária".

É o que se deu também com a Constituição Espanhola, de 29 de dezembro de 1978, ao estatuir, em seu art. 10, que a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais que lhe são inerentes, dentre outros valores voltados ao livre desenvolvimento da personalidade, são fundamentos da ordem política e da paz social, nos termos seguintes:

Art. 10

  1. La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrolo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social [...].

Espelhada mais especificamente nas Constituições portuguesa e espanhola, a vigente Constituição Federal brasileira, promulgada em 05 de outubro de 1988, também se inspirou nos cânones democráticos do século XX, ao se voltar enfaticamente para a plena realização da cidadania, elegendo o valor da dignidade humana como um dos fundamentos do regime político democrático que instaurou e institucionalizou (art. 1º, inc. III). Para tanto, proclama aPage 174 prevalência dos direitos humanos (art. 4º, inc. II) e a exeqüibilidade plena dos direitos fundamentais (em seu preâmbulo), alargando sua dimensão para alcançar os direitos fundamentais sociais (arts. 6º, 7º e 8º). Assim, estabelece...

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