Transbordamentos punitivos: Auxílio-Reclusão, seletividade e segregação

AutorLuiz Antônio Bogo Chies - Filipe Blank Uarthe - Rodrigo Gonçalves da Silva
Páginas122-145
P A N Ó P T I C A
CHIES, Luiz Antônio Bogo; UARTHE, Filip Blank; SILVA, Rodrigo Gonçalves da . Transbordamentos
punitivos: Auxílio-Reclusão, seletividade e segregação. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./d ez.), pp. 122-145.
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Transbordamentos punitivos: Auxílio-Reclusão, seletividade e
segregação
Luiz Antônio Bogo Chies1, Filipe Blank Uarthe2 e Rodrigo Gonçalves da Silva3
Recebido em 31.10.2015
Aprovado em 15.12.2015
1. Introdução
A Criminologia latino-americana e a Economia Política da Punição/Penalidade nos
legaram tanto a necessidade de conectar a compreensão dos fenômenos criminalidade,
criminalização e punição institucionalizada com os aspectos econômico-estruturais das
sociedades nas quais se desenvolvem, como a de desvelar os transbordamentos do controle
social punitivo para além do âmbito de atuação direta do Direito Penal e do Sistema de Justiça
Criminal.Assim, redimensionaram o olhar criminológico e político criminal do crime e do
criminoso para o controle social penal-repressivo e para a criminalização, enfoques dentre os
quais se destacam os dassegregações e seletividades, eixos deste estudo.
Os efeitos do que se compreende por seletividade do Sistema de Justiça Criminal, a
qual implica a percepção de que este se dirige quase sempre contra certas pessoas mais que
contra certas ações (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, p.70), ou mesmo do que Edmundo
Campos Coelho descreveu como a dinâmica da criminalização da marginalidade e a
marginalização da criminalidade mecanismos e procedimentos pelos quais se tornam altas
as probabilidades empíricas de que os marginalizados cometam crimes (no sentido legal) e
sejam penalizados como conseqüência (ou, inversamente, reduzem-se as probabilidades de
que os grupos de status socioeconômico mais alto cometam crimes ou que sejam penalizados
por suas ações ilegais) (2005, p.285-6) são bastante evidentes quando se analisam os perfis
das populações encarceradas (em maioria jovens; pobres; com baixa escolaridade; oriundos
1 Contato: labchies@uol.com.br.
2 Contato: fuarthe@gmail.com.
3 Contato: roguigui1@hotmail.com.
P A N Ó P T I C A
CHIES, Luiz Antônio Bogo; UARTHE, Filip Blank; SILVA, Rodrigo Gonçalves da . Transbordamentos
punitivos: Auxílio-Reclusão, seletividade e segregação. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./d ez.), pp. 122-145.
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das zonas urbanas e rurais precarizadas; de parâmetros étnicos e de classe segregados,
marginalizados; enfim: subcidadãos).
Não obstante isso a contundente evidência empírica , muitos insistem em refutar a
conexão entre encarceramento e estrutura econômico-social de degradantes desigualdades. A
existência de um amplo contingente de subcidadãos pauperizadosmas trabalhadores
(trabalhadores precarizados e via de regra submetidos ao trabalho indigno) a Ralé, nos
impactantes termos de Jessé Souza (2009; 2012) , serve de argumento-álibi aos defensores
da regulação (do caos à disciplina), inimigos da emancipação: do colonialismo à
solidariedade. (SANTOS, 1991).
Sob tais inspirações críticas e contra os argumentos-álibi este texto aborda, com
suporte em dados coletados em duas pesquisas (uma dirigida às representações sociais e
outras às argumentações judiciais), o instituto previdenciário do Auxílio-Reclusão seguro-
social que originalmente se propõe viabilizarsuporte financeiro para os dependentes do
segurado preso , entendido como um potente elemento: tanto capaz de contribuir com o
desvelar de traços de uma cultura segregatória, como de dimensões dos transbordamentos
punitivos, as quais implicam em novas demonstrações empíricas da seletividade do Sistema
de Justiça Criminal.
Nossa premissa é a de que proteção e segregação social são as duas faces de uma
mesma moeda; andam de mãos dadas através de intersecções dialógicas, complementares, e
por vezes substitutivas, das políticas sociais com as políticas penais/criminais. Já registravam
Georg Rusche e Otto Kirchheimeir, na década de 1930, que A história da política pública
para mendigos e pobres somente pode ser compreendida se relacionarmos a caridade com o
direito penal (1999, p.52); ao que se deduz ser o inverso também verdadeiro.
Não é demais lembrar que as PoorLaws4inglesas origens dos mais remotos e
cambiantes arranjos de política social no contexto da relação entre o Estado e o pobre
(PEREIRA, 2009, p. 61) , com ênfase na de 1601, são igualmente o marco desencadeador
4 As Poor Law s inglesas, ou Leis dos Pobres, constituem um sistema legal de assistência que se desenvolveu na
Inglaterra já a partir de período s medievais (a Ordenança dos Trabalhadores, decreto emitido por Eduardo III em
1349, é mencionado como seu marco inic ial), passando por importantes legislações no período da dinastia T udor
(1485-1603). O sistema, com suas sucessivas reformas, existiu até o s urgimento do Estado de Bem-Estar Social,
no pós-Segunda Guerra Mundial.

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