Trans rights in comparative perspective: Discussing the concept of Harm to self in Brazil and Germany/ Direitos de pessoas trans em perspectiva comparada: O papel do conceito de dano no Brasil e na Alemanha.

AutorCampos, Ligia Fabris
CargoTexto en portugu

Introducao *

O presente artigo tem por objeto os direitos de transexuais no Brasil e na Alemanha. Trata-se de dois paises onde essa questao atingiu grau elevado de complexidade e controversia, gerando importantes reflexos na sociedade civil, no poder legislativo e judiciario. Os dois paises sao, a meu ver, duas faces de uma mesma moeda: meu argumento e de que o conceito de 'dano', a luz da perspectiva critica dos estudos de genero, pode ser a chave para entender as contradicoes, retrocessos e avancos, assim como para questionar, criticar e oferecer alternativas quanto a direitos e leis sobre transexuais.

O artigo esta dividido em tres partes: primeiramente, eu apresentarei os conceitos principais de estudos de genero que servirao de base para a posterior analise. Em segundo lugar, a partir da reinterpretacao do conceito de 'dano' com base no conceito de heteronormatividade, eu analisarei a legislacao e a jurisprudencia em relacao aos direitos de transexuais no Brasil e na Alemanha. Finalmente, eu apontarei uma serie de tensoes em relacao aos processos de reconhecimento de direitos de transexuais nos dois paises. A identificacao dessas tensoes me levara a concluir que a redefinicao do sentido de 'dano' foi essencial para compreender os avancos e retrocessos ocorridos nessa esfera.

  1. Estudos de genero como marco teorico

    A pergunta geral que orienta minha investigacao e: por que razao o Estado, por meio do direito, se arroga na posicao de determinar quem e ou pode ser homem ou mulher (e somente uma das duas opcoes), em quais circunstancias, sob que requisitos? Dessa forma, meu objetivo e mostrar criticamente os efeitos disciplinadores e excludentes dos direitos e da jurisprudencia sobre transexuais. Isso significa que esta pesquisa esta situada no campo que questiona o que os homens e as mulheres sao e deveriam ser, como a feminilidade e a masculinidade sao definidos, quem tem o poder de determinar isso, quais sao as suas consequencias e como as constelacoes de genero mudam no espaco e tempo. Tal como definido por Susanne Baer, os Estudos de Genero dizem respeito a processos de inclusao e exclusao e a assimetrias relacionadas ao sexo construido. Explicitar essas hierarquias e importante para que se possa muda-las. (2)

    Concretamente, pretende-se analisar como o conceito de cis (3) heteronormatividade se faz presente e pode determinar os direitos de pessoas trans e suas interpretacoes. Tal conceito descreve a crenca socialmente construida de que ha apenas dois generos, dos quais decorrem caracteristicas de feminilidade e masculinidade que, por sua vez, desempenham papeis especificos, distintos e complementares, em que cada qual deve corresponder a certas caracteristicas, aparencia e comportamento para ser considerado 'normal', como, por exemplo, a orientacao sexual para (o dito) 'sexo oposto' e a expectativa de que o genero psiquico deve corresponder ao fisico. (4) Esta claro, assim, seu carater disciplinador.

    Transexuais, intersexuais e homossexuais, por exemplo, desafiam a ordem compulsoria sexo/genero/desejo. Transexuais, o foco da presente analise, sao comumente definidos como pessoas que tem um sexo biologico claro--no sentido heteronormativo--, e sentem que sua identidade de genero (ou, como chamado na medicina, 'sexo psiquico') nao corresponde ao fisico. De forma mais ampla, pode-se dizer que pessoas trans* (transexuais, travestis, e transgeneros em geral) transitam entre os generos ou reivindicam a passagem de um genero para o outro, formal e juridicamente. (5) Como ja demonstrou Berenice Bento (6), no entanto, ao contrario do que frequentemente se pensa, pessoas trans nao necessariamente rejeitam a aparencia de seu corpo ou sua genitalia. (7)

    Alem disso, quanto a orientacao sexual, pessoas trans* apresentam tantas variacoes quanto as pessoas heterossexuais--podem, por exemplo, ser gays, lesbicas, bissexuais etc. Identidade de genero e orientacao sexual sao conceitos distintos. O primeiro diz respeito a identificacao da propria pessoa: como se sente, com que genero se identifica (e, nesse sentido, pode ser tambem nao-binario, isto e, nao se identificar como homem, nem como mulher). O segundo conceito diz respeito a atracao afetivo-sexual. Se uma mulher trans se sente atraida por homens, ela e heterossexual; se por mulheres, ela e homossexual, uma vez que homossexuais sao pessoas que "se atraem afetivo-sexualmente por pessoas do genero igual aquele com o qual se identifica". (8)

    Intersexuais, por sua vez, nao se confundem com transexuais: sao pessoas que nascem com caracteristicas fisicas tanto do sexo feminino e quanto do masculino, como uma genitalia ambigua ou uma que nao corresponde aos cromossomos. (9)

    Esclarecidos os conceitos-chave, passarei a analise do caso brasileiro.

  2. A regulacao dos direitos dos transexuais no Brasil

    No Brasil, ate 1997, transexuais nao tinham quaisquer direitos especificos reconhecidos. A realizacao de cirurgia de transgenitalizacao era considerada nao apenas ilicito civil, mas tambem crime. A epoca, afirmava-se que amputar parte saudavel do corpo era um ato ilegal, e o consentimento do paciente nao tinha qualquer valor juridico. Ha, inclusive, o precedente da prisao preventiva de um medico, Roberto Farina, que efetuou a cirurgia em um paciente em SP. O judiciario brasileiro considerou, de inicio, que o medico praticou o crime de lesao corporal gravissima, previsto no art. 129, [section] 22, III do Codigo Penal brasileiro. Ao final do processo judicial, no entanto, o medico foi absolvido, pois entendeu-se que nao havia previsao criminal para sua conduta. Porem, a polemica permaneceu. A lei brasileira, em seu silencio, era eloquentemente cis-heteronormativa: uma pessoa so poderia ser um homem ou uma mulher, e essa distincao, considerada imutavel, era dada e constatada no nascimento.

    Atualmente, embora nao tenha havido qualquer modificacao na legislacao penal, a cirurgia e permitida e realizada gratuitamente em hospitais publicos. Em 1997, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolucao n. 1.482 (10), que, alem de autorizar, a titulo experimental, a cirurgia de transgenitalizacao, afirmava que o procedimento nao constitui crime de lesao corporal gravissima do Codigo Penal. A justificativa se baseava no carater terapeutico da operacao, que 'adequa' o sexo fisico ao sexo psiquico pela medicina dos denominados "portadores de desvio psicologico permanente de identidade sexual". (11) Depois desta Resolucao outras duas foram editadas, em 2002 e 2010, que confirmaram e especificaram este tipo de operacao. (12)

    Dessa forma, a cirurgia de transgenitalizacao so se tornou juridicamente possivel no Brasil gracas ao consenso medico. (13) A legislacao, no entanto, permaneceu a mesma. Pode-se inferir, assim, que ela foi apenas reinterpretada: o que poderia ser visto como um dano se tornou, dada a Resolucao do Conselho Federal de Medicina, um beneficio terapeutico. A heteronormatividade, no entanto, permanece intacta: entende-se que pessoas nascem com um sexo e o total de sexos existentes e dois. Quem 'desvia' dessa norma e excluido e sofre efeitos disciplinadores: (1) quem quiser mudar o 'sexo biologico' e caracterizado como portador de um disturbio psiquiatrico, e (2) o tratamento e uma cirurgia que realiza a amputacao, a esterilizacao e inumeras reconstrucoes plasticas. E isso nao e tudo: essa logica foi reforcada no Codigo Civil, de 2002.

    2a. O Codigo Civil Brasileiro

    O Codigo Civil brasileiro, vigente desde 2002, abriu, junto com o Conselho Federal de Medicina, um caminho juridico seguro para a cirurgia de transgenitalizacao. O Art. 13 do respectivo Codigo, copiando o art. 5 do Codigo Civil italiano de 1942 (14), estabelece: "Salvo por exigencia medica, e defeso o ato de disposicao do proprio corpo, quando importar diminuicao permanente da integridade fisica, ou contrariar os bons costumes". Como a transexualidade e considerada uma doenca na resolucao do Conselho Federal de Medicina, consolidou-se a possibilidade da realizacao da cirurgia, pois esta e o tratamento medico prescrito. O requisito da 'exigencia medica' esta, entao, preenchido.

    Se, por um lado, isso representou um avanco, na medida em que tornou juridicamente possivel a realizacao da cirurgia; de outro, no entanto, representa ainda um grande retrocesso, porque a operacao e considerada um tratamento para uma doenca. Isso configura estigma ao inves de reconhecimento e direito ao livre desenvolvimento da personalidade. (15) A 'alternativa' medica fixa a identidade de transexuais como 'transtorno psiquiatrico'. Assim, para manter a ordem bipolar heteronormativa, a legislacao brasileira atribui a essa identidade uma conotacao negativa e depreciativa (um desvio, uma chaga), e expoe as pessoas trans a mais discriminacao. Tal 'alternativa' esta, portanto, muito longe de ser satisfatoria.

    2b. As questoes a serem enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal (16)

    Recentemente, em 2009, 2012 e em 2014, foram propostas tres acoes judiciais no Supremo Tribunal...

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