"Traficante nao e vagabundo": trabalho e trafico de drogas na perspectiva de adolescentes internados/"A drug dealer is not a tramp": work and drug trafficking in the perspective of confined adolescents.

AutorCosta, Ana Paula Motta

Introducao

"Isso e uma empresa, dizia Lulu, voce tem de pagar os fornecedores, os empregados, a familia de quem morre, a familia de quem vai preso, festas e comemoracoes (...) e, claro, propina para a policia" (GLENNY, 2016: 213). E desse modo que o jornalista Misha Glenny resume a forma como um conhecido traficante da favela da Rocinha no Rio de Janeiro compreendia o funcionamento do trafico de drogas do qual era lider. A ideia de que aquele que participa do trafico de drogas e um "empregado" do crime nao e exclusiva do sujeito em questao e ja foi tangenciada por outros autores que abordaram a tematica do trafico de drogas (1), principalmente apos a decada de noventa quando o fenomeno ganhou intensidade na realidade urbana do pais. Assim, a partir da ideia de que o mercado de drogas no contexto brasileiro, em certo momento historico (2), passou a funcionar em uma logica organizativa, o recorte da presente pesquisa procura questionar a possibilidade de afirmar a existencia de relacoes de trabalho dentro da logica da venda de drogas no Brasil, buscando desmistificar como operam tais relacoes.

E dado que as particularidades do trafico de drogas brasileiro apontam para um fenomeno social de extrema complexidade de analise, possivel de ser explorado a partir de distintos atores sociais. O objetivo principal desta pesquisa, contudo, pretende restringir o grande campo de estudo do trafico de drogas no Brasil para ater-se ao questionamento da possibilidade de vincular a venda de drogas a uma atividade laboral. Participar das redes de producao e venda de drogas, no Brasil, afinal, pode ser considerado um trabalho? Na visao dos adolescentes imbricados em tais atividades, "ser" do trafico significa trabalhar no mercado de drogas? Quais sao os possiveis desdobramentos que a analise da relacao trafico-trabalho possibilita para a compreensao mais ampla do fenomeno do trafico de drogas? Sao essas as indagacoes chaves que guiam a presente pesquisa.

Para qualificar a analise da atividade ilicita de drogas como um trabalho, percebeu-se necessario utilizar certo referencial comparativo que tambem possuisse um sentido de trabalho na realidade dos sujeitos da pesquisa, possibilitando assim a delimitacao do objeto de analise da presente investigacao nos seguintes niveis: a) o trafico de drogas e estudado nos limites da sua compreensao como trabalho; b) o estudo do trafico de drogas como trabalho e compreendido nos limites da comparacao com outras atividades laborais.

Optou-se pela realizacao de pesquisa que buscasse emergir vozes regularmente nao consideradas no processo de compreensao de um fenomeno social. Essa escolha deu-se em razao de que, apesar da vinculacao entre violencia e juventude nao ser propriamente uma novidade no campo das ciencias sociais, as perspectivas tendem a trazer o jovem ora como um "problema social", ora como um fator de "risco" (PIMENTA, 2014: 706). Conforme bem observa Pimenta, essa dicotomia acaba contribuindo para que esses sujeitos nao sejam percebidos como "sujeitos ativos", responsaveis pelas escolhas que orientam suas trajetorias de vida (2014: 706), o que acaba produzindo uma percepcao de que o trafico e um ente em si, e nao um fenomeno social formado por sujeitos com desejos e limitacoes proprias.

A analise foi produzida no encontro entre as perspectivas teoricas escolhidas e a conhecimento construido nos debates entre as pesquisadoras e dez adolescentes internados em uma Unidade de Atendimento parte da Fundacao de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE-RS), o que so foi possivel apos a aprovacao no Comite de Etica vinculado a Universidade que se filiam as autoras da pesquisa (3). Trata-se, portanto, de uma pesquisa que busca ouvir a narrativa de adolescentes criminalizados por um sistema de justica juvenil que deve, idealmente, trilhar os principios do Estatuto da Crianca e do Adolescente o qual prescreve a garantia da livre manifestacao dos sujeitos (COSTA, 2012: 164). Embora seja evidente que esse principio fundador nem sempre e observado, a pesquisa buscou reafirma-lo e, assim, ouvir o que tem a dizer esses jovens.

A abordagem metodologica utilizada foi aquela do grupo focal. Assim, os questionamentos realizados na mediacao do grupo visavam estabelecer possiveis comparacoes e diferenciacoes entre o chamado "polo de trabalho legal", constituido pelas experiencias de trabalho licito, e o "polo de trabalho ilegal", representado pelo trafico de drogas. Em seguida, sobretudo a partir do dialogo entre duas correntes teoricas (LUKACS, 2013; SOUZA, 2003), construiu-se uma certa categoria trabalho a qual foi utilizada por esta pesquisa como alicerce na comparacao operada entre as atividades de trabalho licito e de trafico de drogas na perspectiva dos adolescentes participantes dos grupos focais.

A categoria trabalho

"Uma vida cheia de sentido fora do trabalho supoe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho" (ANTUNES, 2005: 65). Tal afirmacao representa a ideia bastante difundida na sociedade contemporanea de que o trabalho possui um papel importante na producao do sentido da vida do individuo, o que foi uma ideia propria da teoria de Lukacs, ainda na segunda metade do seculo XX. Na obra "Para uma ontologia do ser social", o autor, sobretudo a partir do aprofundamento de nocoes introduzidas por Marx, desenvolveu sua concepcao do trabalho como o fator primeiro e essencial da construcao do ser social (LUKACS, 2013: 44). Para o autor, a essencialidade do trabalho humano residiria primordialmente no fato de que esse nasceu em meio a luta pela existencia, sendo preferivel, portanto, constitui-lo como ponto de partida para a analise de niveis mais avancados de sociabilidade do ser humano (LUKACS, 2013: 44).

A partir dessa ideia, o autor explica que todas as demais categorias da sociabilidade do ser humano so podem ocorrer em um ser social ja previamente constituido, enquanto "somente o trabalho tem, como sua essencia ontologica, um claro carater de transicao" (2013: 44), por ser essencialmente, na sua forma primitiva, uma inter-relacao entre homem e natureza. E, portanto, somente a partir do trabalho que ao homem e permitido transitar do ser biologico ao ser social, sendo essa a razao que justifica a importancia de constitui-lo como objeto primeiro de estudo antes de transitar a compreensao de toda e qualquer sociabilidade dele decorrente.

Outro ponto para a compreensao da categoria em Lukacs e a importancia do trabalho na projecao de finalidades, isso e, a capacidade desse construir, no ambito da consciencia, determinada forma posteriormente objetivada no concreto. Assim, Marx e Lukacs concordam que e somente a partir do intercambio entre homem e natureza (trabalho na sua genese) que se possibilita a materializacao de certa ideacao abstrata. Em suma, trabalho e gasto de energia fisica acompanhada de um projeto. A mesma consciencia que idealiza, portanto, e aquela que permite a concretizacao, sobretudo a partir da teologia, funcao atraves da qual "o homem projeta na sua consciencia as formas daquilo que, em breve sera seu trabalho objetivado" (FRANCA JUNIOR; LARA, 2015: 22).

Assim, para essa interpretacao, o trabalho nao se basta como transformacao da natureza, na medida em que sua funcao teleologica lhe confere um carater coletivo: e a partir das necessidades dos demais e do processo de aprendizado inerente ao trabalho que se afirma a sua finalidade social e seu carater coletivo (FRANCA JUNIOR; LARA, 2015: 22). Como se percebe, da teleologia do trabalho, ou da sua vinculacao essencial com a concretizacao de um objetivo, nasce uma dupla socializacao ao homem: de um lado, o trabalho como uma necessidade social e, de outro, como instrumento para satisfazer essa necessidade (LUKACS, 2013: 56).

Portanto, a descricao do trabalho nesses termos possibilita compreender que junto dele surge no ser social uma caracteristica que o difere substancialmente do homem existente ate entao. Tal caracteristica consiste na realizacao da funcao teleologica pelo ser social, isso e, a producao pela consciencia humana de um resultado "adequado, ideado e desejado" (LUKACS, 2013: 61). Com isso, a consciencia deixa de ser um simples epifenomeno, ultrapassando a simples adaptacao ao meio ambiente, e tornando-se produtora de transformacoes intentadas da natureza.

O interessante da perspectiva de Lukacs sobre a categoria trabalho e que, o autor, ao retomar a constituicao do ser humano em sua genese como ser social - centralizando sua analise, portanto, em um periodo pre-historico - concebe o trabalho como uma caracteristica constitutiva do ser humano que e conhecido hoje, mas por razoes explicativas nao restritas ao sistema capitalista. Tambem Marx realizou esse exercicio teorico, estabelecendo o trabalho como a premissa pre-logica de sua teoria, isto e, como sendo o elemento de distincao entre o homem e o animal (2001: 10). Para o autor, o primeiro fato historico e a propria producao da vida material do homem, o que ocorreria no ato de suprir primeiro as necessidades fisicas do ser e, apos, tambem aquelas nao fisicas (MARX, 2001: 21).

Entretanto, a partir do momento em que o homem estabelece relacoes com seus pares na direcao de materializar um certo trabalho ja idealizado em sua consciencia, tal posicao teleologica ultrapassa a caracteristica mais simples do trabalho como intercambio entre homem e natureza e se dirige ao trabalho como praxis social, "entendida como um campo de possibilidade de transformacao" (FRANCA JUNIOR; LARA, 2015: 24). Sobre a construcao da subjetividade do homem, Lukacs ressalta que a essencia ontologica do trabalho se dirige ao sujeito que trabalha e determina seu comportamento no trabalho, o qual, portanto, so podera ser bem sucedido quando realizado com base na objetividade. Assim, o chamado "autodominio do homem" aparece pela primeira vez no trabalho, mas se mantem regulado pela objetividade desse processo. Ao fim e ao cabo, trata-se da insercao de uma qualidade do ser...

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