Traditional black communities and the protection of the ILO Convention 169/ Comunidades tradicionais negras e a protecao da Convencao 169 da OIT.

AutorVeiga, Claudio Kieffer

A inversao da ordem de se pensar o direito a partir da situacao vivenciada pelos povos e comunidades tradicionais, leva a uma ruptura com os esquemas juridicos pre-concebidos.

Joaquim Shiraishi Neto.

Introducao

A diaspora africana envolvendo o Brasil, perdurada entre 1525 e 1850, representou oficialmente mais de cinco milhoes de africanos (1) prisioneiros e escravizados trazidos para o nosso pais (PRANDI, 2000, p. 52-65). Esse trafego de escravos serviu para fins de suprir a necessidade de mao de obra no Brasil Colonia. Junto a esse povo vieram inseridos em sua cultura o seu dialeto, costume, arte, moral e, sobretudo, sua religiosidade.

Internacionalmente, a Organizacao Internacional do Trabalho (OIT), atraves de sua Convencao 169 de 1989, preocupou-se em proteger os direitos dos povos indigenas e tribais, seguindo o ambiente de proliferacao no cenario mundial a epoca de tratados com conteudos sociais, economicos, culturais e coletivos em especial, sendo que a referida Convencao foi ratificada pelo Brasil em 2002, com seus efeitos irradiantes a partir de 2003.

No ambito nacional, a Constituicao Federal de 1988 (CF/1988) possui em varios artigos o imperativo da protecao ao pleno exercicio dos direitos culturais e sua diversidade etnica. No plano infraconstitucional pode-se citar o Decreto 6.040/2007, que instituiu a Politica Nacional de Desenvolvimento Sustentavel dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT).

Assim, urge a necessidade de saber se os antigos e denominados terreiros de religiao de matriz africana podem ser conceituados como "povos tribais", termo contido na Convencao 169 da OIT e, inclusive, se o proprio Decreto 6.040/2007 realiza a subsuncao daquela Convencao para, ao final, asseverar se essa legislacao infraconstitucional brasileira e o suficiente para que o Brasil esteja adequado as obrigacoes assumidas internacionalmente.

Percebe-se um deserto de producao literaria na ciencia do Direito no que se refira aos direitos coletivos dos terreiros de matriz africana, pois objeto de estudo normalmente afeito a questoes de debates religiosos, antropologicos e/ou sociais. Contudo, o presente artigo nao possui o enfoque religioso como perspectiva principal de estudo, apesar de sua relevancia para a preservacao de uma cultura milenar, sendo o importante diferencial em sua execucao.

Diante dessas primeiras consideracoes, o presente artigo divide-se em duas partes, a primeira com uma breve introducao historica e social, apresentando a chegada do africano no Brasil, sua interacao e agruras com a sociedade que aqui se formava. A segunda parte discutira as questoes dogmaticas, pontuando qual o grau de eficacia e/ou aplicabilidade da Convencao 169 da OIT no Brasil. Percorrera, atraves de outros instrumentos juridicos, inclusive de mesmo grau daquela Convencao, se o termo "povos tribais" contido nela nao se encontra defasado e, se nao e o caso de uma interpretacao lato sensu, principalmente na questao brasileira. Por derradeiro, sera apresentado o Decreto 6.040/2007, seus povos e comunidades tradicionais, propondo uma interpretacao desse dispositivo para ver se ele serve como um argumento complementar a Convencao 169 da OIT, tudo para trazer a reflexao se os atuais terreiros de matriz africana estao abarcados pelo termo "povos tribais".

  1. Da trajetoria negra no Brasil e sua resistencia

    Com o aumento da demanda por "trabalhadores" em minas e engenhos de cana-deacucar, e com a escassez de cativos indigenas para esses postos, inclusive pelas proprias restricoes a sua escravidao (2), abre-se a necessidade de importar africanos para o Novo Mundo. Compreende-se que por volta de 1525 iniciou-se a chegada dos primeiros africanos escravizados (PRANDI, 2000, p. 52).

    Os africanos que chegavam vivos, apos a travessia do Atlantico, seguiam para seu destino final nas devidas fazendas, sendo que alguns cuidados eram primordiais para evitar futuras rebelioes. Dentre as prevencoes (3) estava a de separar cuidadosamente, ou evitar a concentracao, de escravizados oriundos de uma mesma etnia nas mesmas propriedades (4), afastando "[...] nucleos solidarios que retivessem o patrimonio cultural africano". (RIBEIRO, 1995, pp. 113-120). Essa mesma politica de "dividir para reinar" foi criada pelo branco em relacao a certa oposicao racial entre negros e indios, tudo para evitar uma possivel alianca entre racas5 exploradas contra a raca ascendente (BASTIDE, 1974, p. 69).

    Importante que se tenha em mente que os navios que carregavam esses africanos nao somente traziam pessoas de carne e osso, mas tambem sua cultura, seus deuses, suas crencas, seus folclores (BASTIDE, 1974, p. 26), "[...] nao se tratava de um povo, mas de uma multiplicidade de etnias, nacoes, linguas, culturas". (PRANDI, 2000, p. 52). Compreende Bastide que podemos falar, na questao africana, em uma dupla diaspora, uma carregando os tracos culturais africanos e a outra dos homens de cor (BASTIDE, 1974, p. 15).

    Inconteste que o castigo, em sua grande parte, ligado a violencia fisica ministrada pelo "senhor de escravo", era o principal mecanismo de controle social para assegurar a continuidade da relacao de producao e, sobretudo, do sistema escravocrata de dominacao na exploracao dos escravizados (LARA, 1988, pp. 44-56, 72, 342 e 354-355). No entanto, nao era o unico.

    Outros mecanismos de controle social fizeram com que os negros crioulos (6) nao perdessem grande parte da cultura africana, como sua religiao, sua magia, seu folclore, sua linguagem, sua arte e ate em sua musica, sobrevivendo a vida servil lhe imposta (BASTIDE, 1974, pp. 84-98). Dentro desses mecanismos podemos pontuar quando os proprietarios de africanos escravizados passaram a deixar que nos domingos e dias santificados catolicos aquela massa exercesse sua institucionalidade em certas manifestacoes artisticas, como dancas e musicalidades africanas, o que reforcou a manutencao de seu folclore (BASTIDE, 1974, p. 83). Esse expediente promovia o encontro entre os africanos e seus descendentes, normalmente procurando suas etnias em comum (7), revivendo as diferencas com outras etnias que vieram embarcadas nos navios negreiros oriundos da Africa. Desse modo, era importante para a cultura dominante essa revisitacao da aversao natural entre as etnias desde o seu nascimento, isso impedia que a infelicidade do cativeiro viesse a unir essas diferentes etnias, o que poderia ser perigoso para o controle por parte dos escravocratas e mesmo do Governo (BASTIDE, 1974, p. 86).

    Consoante ja dito, tais encontros entre os negros nas domingueiras era uma valvula de escape e, ao mesmo tempo, acabavam formando "[...] 'Nacoes', em corpos constituidos, para manter as rivalidades tribais ou etnicas". (BASTIDE, 1974, p. 86). Esse conceito da separacao dos negros em "nacoes" foi utilizado inclusive no exercito, em que "[...] os soldados negros formavam quatro batalhoes: minas, ardras, angolas e crioulos". (PRANDI, 2000, p. 57).

    E assim, diversas outras sistematizacoes criadas para a dominacao dos escravizados, que corroborou para a manutencao de grande parte da cultura africana, seguiram-se no quadro social do Brasil Colonia, podendo citar ainda: as confrarias religiosas (8); a senhora branca que fazia dentre as escravizadas as suas cozinheiras, as quais introduziram seus preparos e condimentos para dentro da familia da cultura dominante; a entrega de hortas pelos senhorios aos escravizados para que estes melhorassem a sua propria alimentacao, preservando algumas tecnicas agricolas, etc (BASTIDE, 1974, pp. 85-88).

    Mas, todavia, o que mais chama a atencao e a sobrevivencia da religiao negra, que abarcando a protecao da cultura africana, guardada alguma adaptacao natural, remanesce ha quase quinhentos anos. Como se ve, a raca negra soube trilhar seu caminho de resistencia cultural (BASTIDE, 1971, p. 85).

    Imperioso afirmar que atualmente no Brasil a religiao africana (9) mais conservada aos moldes africanos e a religiao Ioruba (tambem grafada como Yoruba, ou Yoruba), conhecida como "Candomble Nago" na Bahia, "Xango" nos Estados de Pernambuco e Alagoas, e "Batuque" no Estado do Rio Grande do Sul (RS) (10). Sendo que nos Estados de Maranhao e do Para houve uma maior influencia da religiao jeje, onde ha o culto especifico denominado de "tambor-de-mina", no entanto, aqui ha uma maior sinergia, na medida em que agregou aos seus orixas divindades nao africanas (SILVA, 1994, pp. 83-84).

    Por volta de 1850, por pressoes diplomaticas internacionais, em especial pela Inglaterra (11), termina o ciclo do trafico africano (MOURA, 1989, p. 54; PRANDI, 2000, p. 57), mesmo que somente em 1888 tenha ocorrida legalmente a abolicao da escravidao.

    Importante pontuar a diferenca entre os quilombos e as antigas casas de religiao de matriz africana. Os primeiros eram uma evidente forma continua de resistencia social, alem de uma luta entre classes, dos escravizados e seus descendentes para "[...] protestarem contra o escravismo". (MOURA, 1993, p. 10).

    Os quilombos eram formados pelos cativos que conseguiam fugir de seus senhorios (12). Mas, nao somente por aqueles, na medida em que esses redutos tambem eram uma resposta hostil contra a violencia repressora do aparelho do Estado escravista, sistema esse de dominacao militar, ideologico e politico que os desumanizava, assim acabavam realizando aliancas com outros grupos sociais (13) para conseguirem montar um sistema de protecao permanente em suas instalacoes (MOURA, 1993, pp. 24-25). Por fim, apos a oficializacao da abolicao no ano 1888 (14), encerrou-se o evento quilombo, passando a existir as comunidades negras (FIABANI, 2005, p. 263). Ou, para outra ala de autores, ante a constituicao heterogenea de um quilombo, esse passou a fazer parte de micros sociedades camponesas, constituindo em um verdadeiro campesinato no Brasil (GOMES, 2007, pp. 163-164).

    Ante a tradicao oral arraigada dos povos da Africa, acredita-se que os primeiros terreiros de religiao de matriz africana foram fundados por...

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