Trabalho: valor ou mercadoria?

AutorPatrícia Santos de Sousa Carmo
Ocupação do AutorDoutoranda e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Advogada. Professora de Direito do Trabalho
Páginas148-157

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1. Introdução

"Todas as mercadorias, enquanto valores, são trabalho humano objetivado." (Karl Marx)

A Constituição Federal, ao discorrer sobre a Ordem Econômica e Financeira, Título VII, expressa opção pelo capitalismo.

Consoante ensinamento de Eros Grau, a ordem econômica sintetiza parcela da ordem jurídica, plano normativo, que define, institucionalmente, determinado modo de produção econômica.1

Nele joga papel primordial a livre-iniciativa - fundamento do Estado Democrático de Direito, na exata dicção do inciso IV do art. 1º da Constituição Federal -, que repercute no direito de investir o capital no ramo que considerar mais favorável, bem como na escolha da produção de bens que se demonstre mais conveniente à realização de lucros.2

Noutro quadrante, a ordem econômica fundase na valorização do trabalho humano, assegurando a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, segundo indica a exegese do art. 170 da mesma Constituição Federal.3

O valor social do trabalho diz respeito a princípio cardeal da ordem constitucional brasileira e dever universal, relevante para a afirmação do ser humano, quer no plano de sua própria individualidade, quer no plano de sua inserção familiar e social.4

Daí porque o valor social da livre-iniciativa e o valor social do trabalho estão inscritos no mesmo dispositivo legal, como fundamentos da República.5

Não se olvida, pois, que a livre-iniciativa ultra-passa a feição de liberdade econômica - pensada pelo liberalismo econômico -, porquanto deve ser interpretada em consonância com as regras e os princípios consagrados no ordenamento jurídico6, mormente a função social da empresa, nos termos do art. 5º XXIII e art.170, II e III, todos da Constituição Federal.

Inclusive, com fincas a dar consecução ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, a Constituição Federal enuncia as diretrizes, os programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade, expressos em seus arts. 1º, 3º e 170.7

Não obstante, na prática, tem-se o descompasso entre o plano normativo e o plano factual, com a baixa eficácia normativo-jurídico da Constituição.

Paralelamente, há a problemática da concretização das normas trabalhistas. Deveras, o Direito do Trabalho - especialmente nas últimas décadas - tem sofrido fortes impactos. Surgiu em razão das transformações ocorridas no século XVIII, como instrumento modernizante, progressista e civilizatório, a fim de regular a relação empregatícia e proporcio-

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nar a proteção dos trabalhadores e a melhoria das condições de trabalho na ordem socioeconômica.8

Nas últimas décadas, porém, já não é o mesmo. Não mais cumpre tão amplamente sua função precípua de salvaguardar os trabalhadores e de implementar melhorias nas condições de trabalho.9

Este ramo dinâmico do Direito, que se renova constantemente, por influência dos impulsos sociais aos quais é exposto, tem sido crescentemente precarizado.10

Atualmente, a análise global da relação custobenefício - cumprimento ou descumprimento da lei trabalhista - indica que, do ponto de vista econômico, é extremamente vantajoso para os empregadores o seu descumprimento, criando uma verdadeira cultura de inadimplemento - diferentemente do que acontece em alguns países, como Alemanha e Suíça, em que a regra habitual de conduta - cumprir a legislação trabalhista - é mais benéfico ou menos desvantajoso.11

Assim, ante a falência daquele plano de ação global normativo e a falta de efetividade da tutela jurisdicional trabalhista, verifica-se a consecução do valor da livre-iniciativa em detrimento do valor social do trabalho.

Conjuntura que se agrava frente às transformações da ordem econômica mundial - neoliberalismo - e às modificações nos modos de organização do trabalho e de produção - pós-fordismo -, instaurando um quadro de desemprego estrutural.

Ante o exposto, questiona-se: Como o trabalho se insere nesse contexto? Nesse contexto de descompasso entre o ser e o dever ser: é valor social ou mercadoria?

O presente estudo - que não pretende ser exaustivo - tem por escopo, em um constante diálogo com o Direito, o Trabalho e a Democracia, determinar o marco de origem deste paradigma, seu desenrolar ao longo dos tempos, suas incoerências, suas implicações para a sociedade, bem como averiguar a tutela jurídica dispensada ao tema.

O objetivo geral é duplo: fazer um diagnóstico da situação e propor alguma mudança em termos de medida profilática. Nesse sentido, terá naturalmente um aspecto teórico, mas se propõe a ter também uma aplicação prática. Há como compatibilizar a livre-iniciativa com o valor social do trabalho? Há como reduzir a distância entre o direito real e o direito ideal?

O segundo objetivo é talvez o mais importante, pois, ao estabelecermos paradigmas para uma possível reforma trabalhista - diminuindo a distância entre o direito real e o direito ideal, mais perto estaremos do implemento de um Direito do Trabalho articulado aos novos tempos e mais eficiente na proteção do trabalhador.

2. A morfologia do trabalho: o trabalho material

Mercantilismo é o nome dado a um conjunto de práticas adotadas na Revolução Comercial na Idade Moderna, entre o século XV e o final do século XVIII.12

É definido, em seu sentido mais amplo, como sistema de intervenção governamental para pro-mover a prosperidade nacional e aumentar o poder do estado.13

Em que pese, seja erroneamente considerado um programa de ordens exclusivamente econômicas, diga-se que seus objetivos eram em grande parte políticos, eis que, em verdade, a finalidade da intervenção nos assuntos econômicos não se resumia em expandir o volume da indústria e do conjunto do comércio, mas também, e principalmente, mais dinheiro para o tesouro do rei.14

Afinal, o Capitalismo, um sistema econômico em que os meios de produção e de distribuição são da propriedade privada, baseado na livre troca de mercadorias com o objetivo de obter lucro, "é antítese direta da economia semiestática das corporações medievais, em que a produção e o comércio eram orientados no sentido de beneficiar a sociedade, com uma remuneração apenas razoável dos serviços, ao invés de lucros ilimitados".15

Assim, no século XVI, na Inglaterra, ante a necessidade de força de trabalho e aumento dos lucros, a elite econômica provocou o fechamento das terras, a elevação dos arrendamentos, bem como editaram leis desmantelando as corporações de ofício. É que,

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segundo esse autor, "um homem só trabalha para o outro quando é obrigado"16.

Portanto, somente quando os trabalhadores são destituídos dos meios de produção - seja da terra, no caso dos camponeses, ou das ferramentas, no caso dos artífices -, por falta de opção, vendem sua capacidade de trabalho, a fim de angariar recursos para a sobrevivência:17

O processo que abre caminho para o sistema capitalista não pode ser senão o processo que o toma do trabalhador a posse de seus meios de produção; um processo que transformará, de um lado, os meios sociais de subsistência e produção no capital, e, de outro lado, os produtos imediatos em trabalhadores assalariados.18

Ciente daquela máxima, o capital criou uma classe trabalhadora livre e sem propriedade - o operariado - por meio da apropriação dos meios de produção dos camponeses e artesãos:

De fato, se fosse realmente livre para vender (ou não) a sua liberdade, o trabalhador a manteria - inviabilizando o sistema. Desse modo, para que o sistema se perpetue, é preciso não só que haja liberdade formal para contratar, mas que falte liberdade real para não contratar. Para que faltasse aquela liberdade real, foi preciso inviabilizar as antigas alternativas de subsistência do trabalhador. Em outras palavras, foi necessário impedi-lo de produzir a sua pequena economia doméstica, que lhe permitia plantar a sua comida, colher as uvas de seu vinho e costurar as suas roupas. E foi assim que - antes mesmo da difusão do contrato de trabalho - a lei roubou a terra do camponês, enquanto a máquina vencia o artesão. Sem outros meios para produzir, além das próprias mãos, ambos aceitaram então se submeter. As relações de poder tinham se tornado menos visíveis, mas nem por isso menos fortes.19

Donde se extrai que o trabalho é elemento constitutivo do Capitalismo, está inserido nas bases do Capitalismo, sistema econômico que se baseia na propriedade privada dos meios de produção e na transformação da força de trabalho livre assalariada - mão de obra - em matéria-prima e na acumulação do capital e na organização dos meios de produção.

Ante o exposto, pode se perguntar: como o trabalho está inserido nessa estrutura? Que papel cumpre no sistema econômico? Dúvidas essas que serão esclarecidas no próximo tópico.

3. A dialética de instrumentalização do trabalho e do direito do trabalho

Inconteste que a afirmação do valor-trabalho nas principais economias capitalistas ocidentais desenvolvidas despontou como um dos principais marcos de estruturação da democracia social no mundo contemporâneo.20

É que o trabalho se mostra como momento fundante de realização do ser social, sendo, neste sentido, ponto de partida para a humanização do ser social21: "é o trabalho, por isso, uma condição da existência do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana.22

Assim, com o exercício do trabalho, tem-se transformação recíproca: por um lado, o homem que trabalha é transformado pelo seu trabalho; por outro lado, os objetos e as forças da natureza são transformados em meios, objetos, em matérias-primas.23

Trata-se do valor social do trabalho, que traduz o trabalho como...

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