O Trabalho Infantil sob a Perspectiva Internacional

AutorLélio Bentes Corrêa
Páginas408-414

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1. Antecedentes históricos

A luta contra o trabalho infantil não é, em absoluto, nova. Data do final do século XVIII o movimento pela imposição de limites à exploração da mão de obra de crianças e adolescentes, impulsionado pelas atrocidades cometidas contra crianças e testemunhadas pela sociedade europeia, especialmente nas minas e fábricas de tecidos da primeira Revolução Industrial, onde muitas crianças pereceram por acidentes, por doenças ocasionadas pelas péssimas condições de higiene no ambiente de trabalho ou por pura exaustão. Daí resultou a adoção, em 1802, na Inglaterra, da primeira lei trabalhista de que se tem notícia na era moderna: a Factories Act1 estabelecia regras mínimas de higiene, além de limitar a oito horas a jornada de trabalho de crianças na faixa etária dos 9 aos 13 anos de idade, enquanto adolescentes entre 14 e 18 anos de idade não poderiam trabalhar mais de doze horas diárias. Crianças com menos de 9 anos de idade não seriam mais admitidas no trabalho, devendo ser matriculadas em escolas primárias que os donos das indústrias deveriam estabelecer.

A despeito da fraca implementação do comando legal, despido de mecanismos que assegurassem a sua efetividade, e dos protestos do então emergente patronato industrial - para quem tal iniciativa legislativa constituiria uma inaceitável intromissão do Estado na iniciativa privada, pondo em risco a própria sobrevivência da atividade econômica2 -, o movimento se expandiu para outros países europeus: a França proibiu, em 1813, o trabalho de menores de 10 anos em minas3 e, em 1841, fixou jornada máxima de oito horas para trabalhadores na faixa etária entre 8 e 12 anos de idade, e de doze horas para a faixa etária entre 12 e 16 anos de idade4,

enquanto a Alemanha limitou, em 1839, a jornada de trabalho a dez horas para trabalhadores na faixa etária dos 9 aos 16 anos de idade5. Em 1886, a Itália estabeleceu a idade mínima de 9 anos para admissão no trabalho, fixando em oito horas a jornada para trabalhadores com até 12 anos de idade6.

A Organização Internacional do Trabalho, no mesmo ano da sua criação, em 1919, adotou cinco Convenções: uma sobre a limitação de jornada na indústria (Convenção n. 1), outra sobre fomento ao emprego (Convenção n. 2), uma sobre proteção à maternidade (Convenção n. 3), uma sobre a proibição do trabalho noturno da mulher em minas, indústrias e construção (Convenção n. 4) e a Convenção n. 5, sobre a idade mínima para admissão na indústria7. Esta última fixava a idade de 14 anos para admissão no trabalho em minas, indústrias, construção e transportes, com exceções específicas asseguradas a Japão e Índia.

2. Legislações nacionais

Não obstante tais esforços e o tempo até aqui transcorrido, é surpreendente notar que poucas Constituições no mundo estabelecem uma idade mínima específica para admissão no

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trabalho. Consoante anotação da Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomendações da OIT8, tal provisão constitucional é mais frequentemente encontrada na América Latina, onde países como Brasil, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México e Panamá destacam-se por alçar à esfera constitucional a limitação da idade mínima para admissão no trabalho.

Interessante notar que não há, tampouco, uniformidade quanto às idades estabelecidas para tal fim: enquanto as Constituições do Brasil e do Congo fixam a idade mínima de 16 anos, as Constituições da Macedônia, da Sérvia, de Seicheles e da Zâmbia proíbem o trabalho a menores de 15 anos. Outras Constituições, a seu turno, contém provisões genéricas sobre o tema, ora consagrando a proibição do trabalho nocivo ao desenvolvimento físico e moral da criança (Bielorrússia), ou em conflitos armados (África do Sul), ora dispondo sobre sua proteção contra o tráfico de seres humanos (Guiné) ou contra sua exploração em condições de trabalho forçado (Afeganistão)9.

Por outro lado, um número significativo de Constituições dispõe sobre o direito de crianças e adolescentes à educação, erigindo em obrigação do Estado prover educação gratuita durante o período de escolaridade obrigatória10. Tal observação reveste-se de grande importância, na medida em que a educação ocupa um papel de destaque nos esforços para a erradicação do trabalho infantil. Com efeito, a garantia de acesso à educação gratuita e de qualidade previne o ingresso precoce de crianças e adolescentes no mercado de trabalho, além de favorecer o desenvolvimento pleno das suas potencialidades, aumentando as suas chances de tornarem-se adultos produtivos e socialmente integrados.

Tal raciocínio encontra-se no âmago da Convenção n. 138 da Organização Internacional do Trabalho11, adotada em 1973 com o escopo de estabelecer uma idade mínima para admissão no trabalho em todos os ramos de atividade.

3. A Convenção n 138 da Organização Internacional do Trabalho

A Convenção n. 138 substituiu todas as dez Convenções setoriais anteriormente editadas pela OIT com propósito semelhante e estabelece, em seu art. 1º, para os Estados que ratifiquem a Convenção, a obrigação de:

adotar uma política nacional que assegure a efetiva abolição do trabalho infantil e o aumento progressivo da idade mínima para admissão no emprego ou trabalho a um nível consistente com o pleno desenvolvimento físico e mental de crianças e adolescentes.

Para tal fim, deverá o Estado, ao ratificar a Convenção, especificar, em declaração anexa, uma idade mínima para admissão no emprego ou trabalho, válida em todo o território nacional (art. 2º). Tal idade não deverá ser inferior à de conclusão do período de escolaridade obrigatória, nem a 15 anos de idade - admitida, porém, a fixação de uma idade inicial de 14 anos na hipótese de as condições econômicas e educacionais do país não permitirem a adoção de limite de idade superior.

A Convenção prevê, ainda, a possibilidade de o Estado- -parte, devido a suas insuficientes condições econômicas, limitar, inicialmente, o alcance da Convenção, mediante declaração anexa ao ato de ratificação em que se especifiquem os ramos de atividade e tipos de empreendimento aos quais serão aplicáveis os seus dispositivos (arts. 4º e 5º). Uma das possibilidades de exclusão, expressamente referida na norma em comento, é o trabalho em empreendimentos familiares, de pequena escala, que produzam para o consumo local e não façam uso regular de empregados (art. 5º, § 3º).

Frise-se que tais exclusões deverão ser consignadas uma única vez e de forma expressa. Assim, uma vez especificada a idade mínima para admissão no trabalho e definidas as categorias excluídas do alcance da Convenção, só serão admitidas futuras declarações que elevem a idade mínima para admissão no trabalho (art. 2º, § 2º) ou estendam a sua cobertura (art. 5º, § 4º, b). Vigora, assim, em relação à Convenção n. 138, o princípio da vedação do retrocesso12.

Não obstante, a Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomendações da OIT tem observado, com preocupação, o fato de vários países, embora não tendo lançado mão da faculdade de exclusão anteriormente mencionada, limitarem o alcance da Convenção mediante leis nacionais, especialmente no tocante ao trabalho doméstico e ao trabalho no âmbito familiar13. Tal conduta, a par de caracterizar violação das obrigações assumidas por força da ratificação da Convenção, compromete seriamente a eficácia da norma internacional, na medida em que 67,5% do total do trabalho infantil encontrado no mundo, na faixa etária dos 5 aos 17 anos, situa-se no âmbito familiar, não remunerado (correspondendo a mais de 145 milhões de crianças e adolescentes), enquanto estima-se que outros 15,5 milhões estejam engajados no trabalho infantil doméstico14. Exatamente por isso, o

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Relatório Global produzido pela OIT em 201015 alerta para a necessidade de intensificarem-se os esforços dos Estados-membros, adotando-se medidas inovadoras visando à erradicação do trabalho infantil doméstico e no âmbito familiar. Em seu relatório, o Diretor-Geral da OIT chama a atenção para a necessidade de ampliar a visão internacional sobre o tema, passando-se a encarar o fenômeno do trabalho infantil sob a ótica da cadeia de consumo (e não apenas da cadeia produtiva), aí incluídos produção, transporte, distribuição e comercialização, bem como dar-lhe combate em todos os países envolvidos na produção de bens destinados ao consume internacional, em vez de concentrar as ações num único país.

De igual forma, a Comissão de Peritos tem chamado a atenção para a necessidade de assegurar a mais ampla e efetiva cobertura (por meio da legislação, do aparato de fiscalização estatal e de mecanismos sociais de monitoramento) aos preceitos da Convenção, a fim de alcançar inclusive crianças que trabalham por conta própria, no setor informal, ou sem remuneração16. A ausência de um patrão ou de uma relação formal de emprego não é suficiente para excluir a criança ou adolescente da proteção outorgada pela Convenção. Ao revés, essa circunstância recomenda cuidados redobrados, na medida em que amiúde oculta relações altamente espoliativas, impostas aos grupos mais vulneráveis.

A Convenção n. 138 admite o trabalho executado num contexto de educação vocacional ou técnica, a partir dos 14 anos de idade (ou 12 anos, no caso de países insuficientemente desenvolvidos, como já referido anteriormente), consoante previsão contida nos seus arts. 6º e 7º. Não se admite o trabalho de menores de 18 anos em condições que, "por sua natureza ou pelas circunstâncias em que executado, tendam a por em risco a saúde, a segurança ou a moral" de crianças e adolescentes (art. 3º).

A Convenção admite ainda, em seu art. 7º, que leis nacionais autorizem o trabalho leve de adolescentes a partir dos 13...

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