Trabalho como provador de cigarros e similares: abordagem à luz do conflito entre o direito fundamental à liberdade individual e o direito fundamental à proteção da saúde

AutorCláudio Luiz Sales Pache
CargoAnalista Judiciário lotado no Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região
Páginas204-236

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Introdução

Enfocando o conlito entre o Direito Fundamental à Liberade Individual e o Direito Fundamental à Proteção da Saúde, um dos casos concretos analisados no aludido ensaio, quando apresentado como trabalho acadêmico no bojo do Mestrado Cientíico em Ciências Jurídico-Políticas cursado na

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Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, dizia respeito tanto à contratação para integrar, em bancada de testes denominada pela Souza Cruz S.A. como painel sensorial, equipe de provadores de cigarros e similares, quanto ao julgamento efetuado, na mais alta Corte Trabalhista do país, nos autos da Ação Civil Pública protocolizada pelo Ministério Público do Trabalho visando combater tal modalidade de prestação de serviços.

A adequação do texto original aos limites disponibilizados para esta publicação redundaram na exclusão de outros exemplos do mesmo conlito de interesses então abordados e em pequenas alterações que, longe de causarem prejuízo de conteúdo ao excerto remanescente, a ele acrescenta-ram fundamentos que antes haviam sido explicitados nos tópicos excluídos.

A metodologia escolhida foi a da aplicação da doutrina voltada à máxima concretização dos Direitos Fundamentais e ao respeito às nuances dos casos concretos. Um sistema axiomático aberto, aplicado, tendo como unidade valorativa, núcleo axiológico, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, em que o Direito Positivado não é olvidado, mas submetido à égide das normas de natureza jurídica jusfundamental.

A im de subsidiar as conclusões alcançadas, após conceituar breve-mente Sistema e Sistema Jurídico, a dogmática utilizada foi delineada, o mesmo ocorrendo com linhas evolutivas dos conceitos de Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos Fundamentais à Liberdade Individual e à Proteção da Saúde, todavia, apenas quanto aos aspectos relacionados diretamente com o objetivo mencionado, o que explica a ausência de uma abordagem exauriente a esse respeito.

1. Sistemas e sistemas jurídicos

Para Kant, a deinição ilosóica de sistema gravita em torno de duas ideias básicas: unidade lógica e ordenação interna segundo princípios, ambas aplicadas a um conjunto de conhecimentos, conceitos que têm sido aplicados no campo jurídico ao longo dos últimos séculos como pressupostos para a aplicação e desenvolvimento do Direito.

Como corolário, relações estáveis, fenômenos repetitivos e decisões proferidas conforme regras previamente conhecidas tornaram-se pedras de toque para a obtenção da consistência ontológica dos Sistemas Jurídico1.

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Por essa via, a concretização dos Princípios da Segurança Jurídica e da Justiça2, formulação reputada insuiciente em face da pluralidade de fontes normativas e da crescente especialização de disciplinas jurídicas, que são marcantes no atual estágio de expansão das relações humanas e impedem a concretização almejada como mera decorrência dos aludidos fatores.

O contexto exige seja a Constituição, como ápice do Ordenamento Jurídico de cada país, considerado o instrumento indutor da tão proclamada unidade resultante de princípios próprios de interpretação, da aplicabilidade direta e da máxima efetividade dos Direitos Fundamentais nela consagrados, que assumiriam o epicentro de um rearranjo hierárquico de normatividades em cujo cerne está o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, um sistema aberto de regras e princípios vinculantes perante outras manifestações de Direito3.

Dentre as vias atuais é a que melhor atende aos anseios e às necessidades da hodierna sociedade, o que não a torna indene de críticas, sempre tendo presente que a formação dialética do conhecimento4 reclama perene aperfeiçoamento, desenvolvimento, suplantação ou mesmo retorno ao antes existente, se for o caso, com o acréscimo oriundo do processo vivenciado.

2. Direitos fundamentais Breves conceitos
2.1. Dimensões e estrutura de direitos fundamentais

O rol dos direitos fundamentais - os direitos ou as posições jurídicas subjetivas das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição5 - é transformado e acrescido pelas condições históricas, acrescentando parte da doutrina a sofrer inluência das necessidades e interesses das classes dominantes6. Alteram-se o al-cance, a abrangência e a titularidade, comportando atualmente classiicação segundo três dimensões, ou gerações, marcado o conjunto por unidade valorativa ou axiológica comum, fundada na dignidade da pessoa humana.

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A primeira dimensão germina do liberalismo e retrata o direito de defesa do indivíduo frente ao Estado, direito negativo de resistência, de não intervenção ou abstenção que resguarda a autonomia individual frente ao poder estatal, do qual são exemplos típicos os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei e à participação política.

A segunda dimensão dirige-se ainda aos indivíduos e aponta direi-tos positivos à obtenção de prestações entregues pelo Estado visando assegurar a igualdade material de todos ao acesso ao bem-estar social. Umbilicalmente ligando liberdade e igualdade, essa passa ser vista como meio de acesso às condições materiais necessárias para a obtenção de uma vida digna7. Engloba também as liberdades sociais e a densiicação do princípio da Justiça Social, sendo-lhe exemplos os direitos à assistência social, à saúde, à educação, ao trabalho, à sindicalização, à limitação da jornada de trabalho, às férias e aos repousos semanais remunerados, à greve e ao salário mínimo.

A terceira dimensão tem em mira grupos de pessoas determinadas, determináveis ou indetermináveis e é usualmente prevista em instrumentos internacionais. Possui como exemplos o direito à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à qualidade de vida, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação8.

A quarta dimensão não possui reconhecida de forma uníssona a sua existência e merecem registro as teses que sustentam deluir da globalização institucional dos direitos fundamentais à democracia direta, à informação e ao pluralismo, etc., naquela que seria a etapa inal de implementação do Estado Social9; ou objetivar defesas frente aos avanços da tecnologia da informação, da bioengenharia, da massiicação, da burocracia estatal e privada, das manipulações genéticas e das anônimas invasões de privaci-dade10 e o rico debate lusitano sobre poder, ou não, ser fundada em um direito dos povos11.

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Importa destacar também a complexidade estrutural que pode se mani-festar em cada direito fundamental: dimensões subjetiva e objetiva; deveres de proteção, irradiantes ou valorativos; vertentes negativa e positiva; e os aspectos substantivos e adjetivos, balizas demarcatórias de conteúdo ou âmbito de proteção12.

2.2. Normas, princípios e regras

Cindidas as normas jusfundamentais constitucionais em regras e prin-cípios, podendo apresentar características de ambas as espécies - o que não será abordado neste trabalho -, não são poucas as técnicas capazes de diferenciá-las13.

Robert Alexy, na célebre Teoria dos Direitos Fundamentais14, pontua como regras aquelas que, diante de um determinado quadro fático, exigem, proíbem ou permitem algo em termos deinitivos, a partida sem qualquer exceção, ao passo que princípios, além de vetores interpretativos de outras disposições do Ordenamento Jurídico, ixam uma abstenção ou conduta da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes15. De outro modo, princípios são mandamentos de otimização16 cuja satisfação varia de intensidade - o que os diferencia das regras - essas de cumprimento integral imperativo.

O conlito entre regras é solucionado em termos de tudo ou nada, ou a regra é válida e, neste caso, a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida e, neste caso, em nada contribui para a decisão17, com uma ressalva apenas, não aplicável aos sistemas jurídicos contrários à hipótese: a introdução de uma cláusula de exceção - decorrente de redução teleológica gerada por um princípio - afastando a incidência da regra considerada válida, que perderá o caráter deinitivo estrito para solucionar aquela controvérsia. Se isso ocorrer - por força do enunciado em um or-

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denamento jurídico, quanto maior peso se atribuir aos princípios formais, tanto mais forte será o caráter "prima facie" de suas regras - serão também afastados os princípios formais que asseveram inarredável a observância de regras regularmente estabelecidas e não ab-rogadas ou derrogadas18.

Nada disso se veriicando, o conlito será dirimido por invalidade obtida mediante critérios clássicos de comparação entre as regras em colisão: cronológico, hierárquico ou especial.

No caso dos princípios, conferindo a doutrina portuguesa a devida têmpera às teses de Alexy, averígua-se antes, sob dois vieses, se de fato os conlitos existem, de forma a evitar ponderações incabidas como, por exemplo, entre o peso relativo da liberdade de proissão e do direito da propriedade se também presente acusação de prática reiterada do crime de furto19.

Nessa senda, primeiro, veriica-se a fruição dos direitos fundamentais envolvidos, observando se não ocorre obstrução por autorruptura constitucional material, dever funcional ou suspensão.

Negativa a resposta, deve-se perquirir se o conlito não pode ser afas-tado pela demarcação do âmbito de proteção dos direitos fundamentais em...

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