O trabalho nas Constituições Sociais

AutorEdilton Meireles
Ocupação do AutorDesembargador do Trabalho (TRT/BA). Doutor em Direito (PUC/SP). Professor da UFBa e da UCSal
Páginas138-151

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11.1. Introdução

Verificamos pelo estudo das constituições sociais da Itália, Alemanha, França, Portugal, Espanha e do Brasil que, para o desenvolvimento do direito constitucional, é de suma importância a identificação do valor trabalho no contexto da lei fundamental (constitucional).

Assim, procurando contribuir para o estudo deste relevante “problema constitucional”, lançamos algumas ideias conclusivas que revelam a importância do direito do trabalho na construção do Estado Social a partir da relevância que lhe é dada pelas modernas Constituições.

11.2. Evolução

Tomando como exemplo o texto constitucional brasileiro, pode-se extrair a conclusão de que o constituinte erigiu o trabalho (a valorização social do trabalho), o emprego, os direitos dos trabalhadores, a participação dos trabalhadores na gestão da empresa etc., como elementos constitutivos “da própria ordem constitucional global e em instrumento privilegiado de realização do princípio da democracia econômica e social”422.

Tal realidade também é compartilhada com ênfase pelas Constituições italiana, alemã, espanhola e portuguesa surgidas no pós-Segunda Guerra Mundial, as quais o Brasil tomou como modelo. E tal ocorre haja vista que, “para além de o trabalho, enquanto actividade em si mesma portadora de valores, se encontrar, no pensamento ocidental, no centro dos conceitos fundamentais de pessoa e de comunidade, a própria tradição constitucional se forja, também, na ideia de que a dignidade do indivíduo assenta ao mesmo tempo no seu trabalho e no seu exercício da cidadania”423.

Daí porque “não espanta que a generalidade das Constituições — em especial, as mais recentes — contenham, com maior ou menor desenvolvimento, normas acerca do trabalho e, muito em particular, da forma paradigmática de actividade produtiva nas sociedades modernas: o trabalho subordinado”424.

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Em suma, a ‘fome de constitucionalismo’ que envolveu estes processos constitucionais determinou, ..., a colocação do trabalho e do trabalhador no centro da ordem constitucional a que se pretendia dar forma”425.

E mais, em face da constitucionalização do direito laboral, a Constituição acaba por gerar, num processo de retroalimentação, um reencontro do direito do trabalho “com as suas origens, enquanto ramo do Direito em que o ‘social’ se impõe como limite do econômico e em que o lugar central é o da pessoa humana, em todas as suas facetas, como indivíduo, cidadão e trabalhador”426.

Contudo, devemos advertir que “se o fenômeno de constitucionalização do Direito do Trabalho representa, em larga medida, o reconhecimento da centralidade das questões levantadas pelo trabalho subordinado nas sociedades modernas, quer do ponto de vista do trabalhador/pessoa que trabalha, quer do ponto de vista global da comunidade dos cidadãos, este movimento de constitucionalização não pode ser tomado como um momento de chegada — ou como uma espécie de ‘fim da história’. Deve, antes, ser encarado como um fenômeno que propicia o surgimento de novos problemas e que, por isso mesmo, exige o esforço de reflexão dos juristas”427. Daí por que a necessidade de se analisar, em cuidado e relevo, a denominada “Constituição Laboral”.

O trabalho é visto como “instrumento de dignificação social e de realização pessoal”, pois vista como “meio de subsistência” (pagamento de vantagens salariais) e como “modo de afirmação social e de realização individual”428 (princípio da valorização social).

A organização do trabalho, de forma a “facultar a realização pessoal, deve ser considerada uma das ‘manifestações salientes da salvaguarda da dignidade da pessoa humana, atendendo à inserção do prestador de trabalho‘ numa comunidade determinada, fora da qual, como diz o art. 29, n. 1 da Declaração Universal (dos Direitos do Homem), não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade”429.

O direito do trabalho, pois, acaba por colocar à prova a própria concepção do Estado430.

Podemos, assim, afirmar que a constituição do trabalho compreende as regras e princípios laborais que encontram abrigo na Constituição, assim como exprime

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“as regras relativas às fontes juslaborais e ao seu modo de concatenação; opera, nessa medida, como fonte indireta do tecido laboral, tornando-se, em qualquer caso, imprescindível para o seu entendimento”431.

A constituição laboral, assim, desempenha uma função reinterpretativa e integradora da legislação infraconstitucional do trabalho. Esta última, pois, passa a ser interpretada conforme a Constituição, não se podendo, por óbvio, querer fazer prevalecer a interpretação que se tinha do direito do trabalho antes do surgimento do texto constitucional, nem muito menos interpretar a Constituição conforme a lei ordinária.

É preciso dizer ainda que a “constituição laboral”, enquanto fruto de uma decisão política, é, antes de tudo, um projeto, cuja função ou objetivo é modificar e alterar, de forma perene, o status quo existente, seja por meio de sua implantação imediata, seja por sua natural progressividade (no sentido de ampliação dos direitos dos trabalhadores, ainda que seja por meio da legislação infraconstitucional). Pode-se, inclusive, afirmar que, no decorrer da história, ocorreu a constitucionalização do trabalho em sentido objetivo (o trabalho em sua dimensão abstrata) e, junto ou logo depois, até porque inseparável do ser humano, a constitucionalização em seu sentido subjetivo (proteção dos que vivem do trabalho; os trabalhadores)432.

Ela é fruto de um compromisso constitucional, isto é, de um “acordo” entre as partes constituintes no sentido de privilegiar, valorizar o trabalho, enquanto elemento essencial à realização da dignidade humana. Daí porque o respeito e a proteção dos trabalhadores “não podem deixar de prevalecer sobre outros bens, como a rentabilidade da empresa, a racionalidade econômica etc.”433. O econômico não pode suplementar o social, até porque o estatuto de proteção dos trabalhadores é parte integrante da moderna democracia social.

Não pode haver produção “sem promoção do mundo do trabalho, sem reconhecimento das suas aspirações e dos seus direitos. Porque não há liberdade de empresa sem a liberdade na empresa”434.

Pode-se afirmar, inclusive, que o direito do trabalho é “uma das obras mais importantes do moderno Estado de direito social”435. E ele não se esgota no contrato de trabalho436, como se possa pensar. Daí porque, como ensina Peter

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Häberle, “uma teoria constitucional cientificamente provada e politicamente crível não é possível hoje em dia sem a apontada integração do trabalho. Não existe já nenhum conceito de dignidade humana, nem teorias de direitos fundamentais, concebidos em conjunto, assim como tampouco, nenhuma doutrina de democracia, dos fins estatais e do bem comum, incluso nenhuma teoria da propriedade, sem o ‘trabalho como problema constitucional’. Tomar a sério, na teoria constitucional, o trabalhador como cocidadão e como coproprietário será tanto mais possível na medida em que o direito do trabalho (sobretudo graças à jurisprudência e à doutrina laboral), apesar da pouca aparência, mas já no fundo, tem elaborado o tema do trabalho como ‘direito constitucional por vir’, em forma adequada a um Estado social e cultural de direito. Deste modo, as Constituições do Estado constitucional asseguram um pedaço de seu próprio futuro, o que ocorrerá também graças a uma aliança entre a ciência laboralista e a ciência constitucionalista. E somente deste modo pode ser e continuar sendo a Constituição do pluralismo uma medida do ser humano: do ser humano como cidadão e trabalhador”437.

A constitucionalização do direito do trabalho corresponde, justamente, a uma das primeiras manifestações da intervenção constitucional no âmbito das relações privadas, passando a ser um “problema constitucional”438. Até porque o direito do trabalho regula os “fundamentos existenciais para a grande maioria dos que trabalham”439 e de um extenso campo da atividade humana440.

Num primeiro momento da constitucionalização do direito do trabalho se assistiu à consagração dos direitos fundamentais específicos dos trabalhadores, especialmente aqueles vinculados às liberdades públicas e ao direito coletivo (liberdade sindical, liberdade de profissão, direito de greve etc.). Ernst-Wolfgang Böckenförde, porém, lembra que o primeiro direito trabalhista reivindicado pelo movimento socialista foi o direito social à tutela, considerado em si como verdadeiro direito humano441. E, de fato, pode-se dizer que o primeiro e principal direito do trabalho é o da tutela estatal, ou seja, o da existência de um corpo de normas especiais que garantam à dignidade da pessoa do trabalhador por meio do acesso a bens vitais.

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Esse direito fundamental, por sua vez, extrai-se, por exemplo, de qualquer regra constitucional que defina a competência para legislar sobre direito do trabalho. Se a Constituição faz a distinção entre direito do trabalho e direito civil é porque quis que fossem estabelecidas regras distintas. E disciplinar o direito do trabalho é estabelecer regras de tutela do trabalhador, pois se for para não proteger não é preciso fazer essa distinção.

No evoluir, no entanto, as Constituições passaram a inserir em seus textos direitos especificamente trabalhistas, de ordem pessoal e de participação política442. E já nesta segunda fase, incluem-se no corpo constitucional tanto liberdades, direito de participação, como direitos a prestações do Estado e mesmo por parte diretamente dos particulares e, ainda, direitos emergentes diretamente da relação de empresa, como direitos de natureza coletiva.

Observa-se, ainda, que esses direitos assumem verdadeira natureza instrumental em relação “à ideia de uma plenitude de direitos da pessoa humana, em todas as suas facetas, designadamente dentro e fora da empresa”443, especialmente em...

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