O trabalho na era digital e os desafios da emancipaão

AutorRicardo Colturato Festi
Páginas111-128
O TRABALHO NA ERA DIGITAL E OS DESAFIOS DA EMANCIPAÇÃO
Ricardo Colturato Festi1
Resumo
Este artigo busca contribuir para a reflexão acerca dos desafios da esquerda frente à nova revolução tecnológica em curso,
a assim chamada Quarta Revolução I ndustrial ou Indústria 4.0. Para isso, fará uma rápida passagem por alguns autores
que se defrontaram com revoluções tecnológicas nas décadas passadas, em particular no mundo do trabalho, para mostrar
as várias possibilidades de interpretações positivas e negativas desses processos. Em seguida, pontuará algumas questões
acerca da revolução em curso, em particular as transformações no trabalho e nas relações sociais produzidas pelas
“plataformas digitais”. Por fim, sem nenhuma pretensão de esgotar o debate, delineará algumas questões que considera
desafios para as esquerdas e o pensamento crítico frente a essas mudanças.
Palavras-chave: Sociologia do trabalho. Plataforma digital. Trabalho em plataforma. Emancipação.
WORK IN THE DIGITAL AGE AND THE CHALLENGES OF EMANCIPATION
Abstract
This article seeks to contribute to the reflection about the challenges of the left in the face of the new technological revolution
in progress, the so-called Fourth Industrial Revolution or Industry 4.0. To this end, he will briefly visit some authors who have
faced technological revolutions in the past decades, particularly in the world of work, to show the various possibilities for
positive and negative interpretations of these processes. Then, it will point out some questions about the ongoing revolution,
in particular the transformations in work and social relations produced by “digital platforms”. Finally, without any intention of
exhausting the debate, it will outline some i ssues that it considers challenges for the left and criti cal thinking in t he face of
these changes.
Keywords: Sociology of work. Digital platforms. Work in platforms. Emancipation.
Artigo recebido em: 11/11/2019. Aprovado em: 29/01/2020
1 Doutor em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas, com estágio de pesquisa na École des Hautes Études en
Sciences Sociales, em Paris. Professor adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, Brasília,
Distrito Federal, Brasil. E-mail: ricardofesti@gmail.com.
Ricardo Colturato Festi
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1 INTRODUÇÃO
Há cinquenta anos, no dia 20 de julho de 1969, o estadunidense Neil Armstrong se tornou
o primeiro homem a pisar na superfície lunar. O mundo inteiro assistiu atônito, do Norte ao Sul, do
Leste à Oeste, com exceção, talvez, da URSS e da China, o grande feito histórico que foi aquele
pequeno passo para um homem, mas um “grande passo para a humanidade”. Isto ocorreu por
consequência de um grande esforço científico e financeiro e representou uma grande cartada política
dos EUA no jogo da Guerra Fria, isto é, na sua disputa com a URSS pela hegemonia global ideológica,
econômica e política.
Hoje, pode parecer estranho que uma soma tão significativa de recursos financeiros tenha
sido gasta apenas para enviar dois astronautas à Lua1. Ainda que possamos reconhecer que os
avanços tecnológicos e científicos do processo repercutem, ainda hoje, em nossas vidas cotidianas2, é
justo e compreensível que questionemos se ações como essas devem ser o objetivo da humanidade,
ainda mais quando nem resolvemos questões elementares como a fome e a desigualdade social.
Entretanto, na época, para uma parcela significativa da população dos EUA e dos países centrais, a
exploração espacial parecia mais uma evidência de que a sociedade capitalista seguia um curso
ascendente de crescimento econômico e de revoluções tecnológicas.
Este otimismo com o progresso técnico da humanidade se expressou em múltiplas esferas
da vida cotidiana. Na arquitetura, por exemplo, o modernismo se manifestava numa estética de casas
arrojadas e futuristas, equipadas com “modernos” artefatos eletrônicos e automáticos. No cinema, ao
longo das décadas de 1950 e 1960, o gênero de Ficção Científica ganhou enorme projeção e animou
as expectativas de um futuro altamente tecnológico e com viagens espaciais. No entanto, talvez em
nenhuma área, essas expectativas foram tão altas como no mundo da indústria e do trabalho. Aqui, a
automação industrial, em sua fase germinal, alimentava a “utopia futurista” de um mundo livre do
trabalho penoso, substituído por robôs e inteligência artificial, isto é, o nascer de um “admirável mundo
novo” onde o lazer e o ócio, finalmente, poderiam imperar.
Todos sabemos que, a partir da crise capitalista dos anos 1970, o mundo entrou numa
longa fase de destruição de suas forças produtivas, financeirização da economia, degradação
acelerada da força de trabalho e aumento da desigualdade social. A tão aguardada libertação
proporcionada pela tecnologia converteu-se em seu contrário. Ao invés das jornadas de trabalho
diminuírem, elas aumentaram proporcionalmente ao do grau de tecnologia aplicada no mundo laboral.
Com isso, a intensidade do trabalho ganhou proporções inimagináveis até então, levando os
trabalhadores e as trabalhadoras às novas doenças laborais vinculadas à fadiga mental. Finalmente, o
lazer e o ócio se industrializaram e se tornaram adendos da razão instrumental capitalista. Portanto, o

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