O trabalho na Constituição portuguesa

AutorEdilton Meireles
Páginas67-79
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VIII
O TRABALHO NA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA
8.1. Texto Constitucional
Já mais recentemente, a Constituição da República Portuguesa (CRP) de 2 de abril de 1976(432), numa
tendência de consagrar no texto constitucional mais especificamente os direitos dos trabalhadores, deu maior
importância ao direito do trabalho.
Vale ressaltar que, em seu preâmbulo, os constituintes portugueses estabeleceram que a Constituição
tem o objetivo de “defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de
estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e
de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a
construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”(433).
Neste desiderato é que ela, tal como as principais Constituições democráticas, cuida de assegurar a
liberdade de escolha da profissão (art. 47, n. 1) e, no Título que trata dos direitos, liberdades e garantias dos
trabalhadores (arts. 53 a 57), ela confere segurança no emprego (art. 53), proibindo os despedimentos sem
justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.
Assegura, ainda, em seu art. 54, o “direito de os trabalhadores criarem comissões de trabalhadores para
defesa dos seus interesses e intervenção democrática na vida da empresa”, garantindo aos membros das
referidas entidades a “proteção legal reconhecida aos delegados sindicais”.
Ressalte-se que a Constituição portuguesa garante a estas comissões os direitos de: “a) Receber todas
as informações necessárias ao exercício da sua actividade; b) Exercer o controlo de gestão nas empresas; c)
Participar nos processos de reestruturação da empresa, especialmente no tocante a acções de formação ou
quando ocorra alteração das condições de trabalho; d) Participar na elaboração da legislação do trabalho e
dos planos económico-sociais que contemplem o respectivo sector; e) Gerir ou participar na gestão das obras
sociais da empresa; e f) Promover a eleição de representantes dos trabalhadores para os órgãos sociais de
empresas pertencentes ao Estado ou a outras entidades públicas, nos termos da lei”.
A liberdade sindical, por sua vez, foi consagrada no art. 55 da forma mais ampla possível, inclusive
quanto ao direito de tendência, nas formas que os respectivos estatutos determinaram. Seus representantes,
por seu turno, “gozam do direito à informação e consulta, bem como à proteção legal adequada contra
quaisquer formas de condicionamento, constrangimento ou limitação do exercício legítimo das suas funções”.
Às associações sindicais foi assegurado, no que lhe concerne, o direito de “defender e promover a defesa dos
direitos e interesses dos trabalhadores que representem” (art. 56).
Ainda, no âmbito sindical, a Constituição portuguesa assegurou às entidades respectivas o direito de
“participar na elaboração da legislação do trabalho”; fazer parte na gestão das instituições de segurança social
e outras organizações que visem satisfazer os interesses dos trabalhadores; pronunciar-se sobre os planos
econômico-sociais e acompanhar a sua execução; fazer-se representar nos organismos de concertação social,
nos termos da lei; e participar nos processos de reestruturação da empresa, especialmente no tocante a ações
de formação ou quando ocorra alteração das condições de trabalho (art. 56, n. 2). Além disso, como não
poderia deixar de ser, assegurou às mesmas o direito de contratação coletiva.
(432) PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. 2 abr. 1976. Disponível em:
ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx>. Acesso em: 29 ago. 2017.
(433) PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. 02 abr. 1976. Disponível em:
Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx>. Acesso em: 29 ago. 2017.
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No art. 57, ficam garantidos o direito de greve e a vedação ao lockout. Quanto à greve, estabelece a CRP
que “compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a
lei limitar esse âmbito”.
Já no Título que trata dos direitos e deveres econômicos, sociais e culturais, assegura-se o direito ao
trabalho (art. 58). E, para tanto, incumbe ao Estado, “promover: a) A execução de políticas de pleno emprego;
b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou gênero de trabalho e condições para que não seja
vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais; c)
A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos trabalhadores”.
Especificamente, assegura, ainda, respeitado o princípio da igualdade, os seguintes direitos aos
trabalhadores (art. 59):
a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual
salário igual, de forma a garantir uma existência condigna;
b) A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a
conciliação da atividade profissional com a vida familiar;
c) A prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde;
d) Ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas;
e) À assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego;
f) A assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional.
Define, da mesma forma, que “incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e
repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente:
a) O estabelecimento e a atualização do salário mínimo nacional, tendo em conta, entre outros fatores, as necessidades dos
trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade
econômica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento;
b) A fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho;
c) A especial proteção do trabalho das mulheres durante a gravidez e após o parto, bem como do trabalho dos menores, dos
diminuídos e dos que desempenhem atividades particularmente violentas ou em condições insalubres, tóxicas ou perigosas;
d) O desenvolvimento sistemático de uma rede de centros de repouso e de férias, em cooperação com organizações sociais;
e) A proteção das condições de trabalho e a garantia dos benefícios sociais dos trabalhadores emigrantes;
f) A proteção das condições de trabalho dos trabalhadores estudantes.
A CRP também assegura a participação das associações sindicais e de outras organizações representativas
dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários na organização da seguridade
social (art. 63). Lembre-se, ainda, de que o “sistema de segurança social protege os cidadãos na doença,
velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou
diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”.
A saúde, por sua vez, é realizada, também, nos termos da Constituição portuguesa, pela “melhoria
sistemática das condições de vida e de trabalho...” (art. 64).
Em relação à família do trabalhador, incumbe ao Estado português “promover, através da concertação
das várias políticas setoriais, a conciliação da atividade profissional com a vida familiar” (art. 67, n. 2, letra “h”).
Às mulheres foi garantido o “direito à especial proteção durante a gravidez e após o parto, tendo as
mulheres trabalhadoras ainda direito à dispensa do trabalho por período adequado, sem perda da retribuição
ou de quaisquer regalias” (art. 68). Na proteção da maternidade e da paternidade, a CRP assegurou, nos termos
da lei, a dispensa de trabalho por período adequado, de acordo com os interesses da criança e as necessidades
do agregado familiar, além de proteger os menores, proibindo o labor em idade escolar (art. 69, n. 3).
Quanto à juventude, ficou estabelecido que ao Estado incumbe implantar uma política de acesso ao
primeiro emprego, no trabalho e na segurança social (art. 70). Além disso, a “política de juventude deverá ter
como objetivos prioritários o desenvolvimento da personalidade dos jovens, a criação de condições para a sua
efetiva integração na vida ativa...”.
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Já a organização econômico-social assenta, entre outros, no princípio “da participação das organizações
representativas dos trabalhadores e das organizações representativas das atividades econômicas na definição
das principais medidas econômicas e sociais” (art. 80).
A Constituição lusitana, ainda, assegura a participação dos trabalhadores na gestão pública (art. 89),
inclusive com sua representação junto ao Conselho Econômico e Social (art. 92, 2).
Estabelece, outrossim, que as políticas agrícola, comercial e industrial devem “promover a melhoria
da situação econômica, social e cultural dos trabalhadores rurais e dos agricultores, o desenvolvimento do
mundo rural, a racionalização das estruturas fundiárias, a modernização do tecido empresarial e o acesso à
propriedade ou à posse da terra e demais meios de produção diretamente utilizados na sua exploração por
parte daqueles que a trabalham”, devendo “criar as condições necessárias para atingir a igualdade efetiva dos
que trabalham na agricultura com os demais trabalhadores e evitar que o sector agrícola seja desfavorecido
nas relações de troca com os outros setores” (art. 93).
Já quando da eliminação dos latifúndios, “as terras expropriadas serão entregues a título de propriedade
ou de posse, nos termos da lei, a pequenos agricultores, de preferência integrados em unidades de exploração
familiar, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores ou a outras formas de exploração
por trabalhadores, sem prejuízo da estipulação de um período probatório da efetividade e da racionalidade
da respectiva exploração antes da outorga da propriedade plena” (art. 94). Claramente, ainda, assegura a
participação dos trabalhadores na definição da política agrícola (art. 98).
Define, ainda, como um dos objetivos da política industrial o “apoio às pequenas e médias empresas e,
em geral, às iniciativas e empresas geradoras de emprego e fomentadoras de exportação ou de substituição
de importações” (art. 100).
A Constituição portuguesa, por fim, trata da competência para legislar sobre as funções públicas (letra
“t” do n. 1 do art. 165) e regime respectivo (art. 269), vedando a revisão constitucional quanto aos direitos
dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais (letra “e” do art. 288).
8.2. Panorama histórico
Entender a Constituição portuguesa, especialmente no ponto que trata do direito dos trabalhadores,
exige um retorno aos acontecimentos políticos que culminaram, do ponto de vista jurídico, com a sua
promulgação em 1976.
A CRP de 1976 é, mais remotamente, fruto da denominada Revolução dos Cravos que, em outras
palavras, foi o golpe militar ocorrido em abril de 1974 que derrubou, sem derramamento de sangue e sem
resistência, o regime ditatorial iniciado por Oliveira Salazar em 1933. O levante, também conhecido como “25
de Abril”, foi conduzido por jovens oficiais integrantes das classes intermediárias da hierarquia militar, em sua
maior parte capitães que tinham participado na Guerra Colonial.
A partir desse golpe, Portugal enfrentou um período conturbado que durou cerca de dois anos. Este
período ficou conhecido como PREC, sigla do denominado “Processo Revolucionário Em Curso”. Foi um
período marcado por lutas e perseguições políticas entre as facções de esquerda e de direita.
Um ano em seguida ao golpe, foram realizadas as primeiras eleições democráticas, depois de mais
de quatro décadas, para formação da Assembleia Constituinte. E, como era de se esperar, essas eleições
foram vencidas pelo Partido Socialista. Importante, porém, relembrar e destacar que os trabalhos constituintes
se desenvolveram ao lado de fortes tensões decorrentes dos embates políticos. Foi, assim, pois, diante de
intensos conflitos políticos e movimentação popular que se desenrolaram os debates e trabalhos na Assembleia
Constituinte. Neste sentido, vale lembrar que o originário art. 51 da CRP (atual art. 58), que assegurava o
direito ao trabalho, foi aprovado em 16 de setembro de 1975, quando corriam negociações para a formação
do VI Governo Provisório, em plena crise política, que conduziria, semanas depois, ao sequestro de deputados
durante a realização de uma greve pelos trabalhadores da construção civil(434).
(434) LIMA, Manuel Pedroso de. Ob. cit., p. 48.
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É de se destacar, ainda, a intensa movimentação popular que ocorria durante os trabalhos da Assembleia,
bastando citar, para bem revelar a pressão exercida sobre os constituintes, que o originário art. 50 da CRP foi
aprovado sem qualquer voto contrário(435), ainda que este dispunha que “a apropriação coletiva dos principais
meios de produção, a planificação do desenvolvimento econômico e a democratização das instituições são
garantias e condições para a efetivação dos direitos e deveres econômicos, sociais e culturais”.
Ora, por óbvio, somente em um ambiente com forte pressão popular-revolucionária é que se asseguraria
que a classe conservadora, também representada no Parlamento Constituinte, votaria pela aprovação da
“apropriação coletiva dos principais meios de produção” sem qualquer voto divergente!
Tal regra, aliás, foi complementada pelo art. 80 da CRP, em sua versão originária, que dispunha que “a
organização econômico-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção
socialistas, mediante a apropriação coletiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos
naturais, e o exercício do poder democrático das classes trabalhadoras”.
Foi, pois, num ambiente político conturbado que a Constituição lusitana acabou por ser aprovada
em 2 de abril de 1976, refletindo, em seu texto, as opções políticas e ideológicas decorrentes do período
revolucionário iniciado em 1974 (que rompeu anterior regime autoritário)(436). A Constituição acabou,
em sua versão originária, por consagrar a transição para o socialismo, apoiado na nacionalização dos
principais meios de produção, mantendo as Forças Armadas no exercício do poder político, pelo Conselho
da Revolução(437).
A versão originária da Constituição portuguesa de 1976 tinha, como se constata facilmente de sua
leitura, forte pendor marxista. Pode-se dizer, inclusive, que ela nasceu como que uma resposta revolucionária
às mais de quatro décadas de corporativismo imposto pelo regime autoritário anterior.
Ela preconizava, em resumo, a formação de uma sociedade sem classes e com rumo ao socialismo (“Art.
2º: A República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia
dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democráticas, que
tem por objetivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício
democrático do poder pelas classes trabalhadoras”).
Contudo, essas normas (socializantes) acabaram por ser, em suas principais cargas ideológicas, modi-
ficadas com a Revisão Constitucional de 1982 que, diminuindo os ideais revolucionários, inseriu normas de
flexibilização do sistema econômico, redefiniu as estruturas do exercício do poder político e extinguiu o Con-
selho da Revolução, além de criar o Tribunal Constitucional(438).
A abertura econômica foi complementada com a 2ª Revisão Constitucional, em 1989(439), dando maior
liberdade ao sistema econômico. Desde então, seguiram-se mais cinco revisões constitucionais; e a última
em 2005(440). Elas, entretanto, não modificaram, na essência, as regras e os princípios que influenciaram a
(435) Ibidem, p. 49.
(436) Sobre os acontecimentos no período revolucionário, do ponto de vista jurídico, cf. TELES, Miguel Galvão. A Revolução Portuguesa
e a teoria das fontes do direito. In: COELHO, Mário Baptista (Coord.). Portugal. O sistema político e constitucional. 1974-1987. Lisboa:
Universidade de Lisboa, 1989. p. 561-606. Já sobre o processo constituinte e a revisão constitucional de 1982, cf. MIRANDA, Jorge. A
Constituição de 1976 no âmbito do constitucionalismo português. In: COELHO, Mário Baptista (Coord.). Portugal. O sistema político e
constitucional. 1974-1987. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1989, p. 609-646.
(437) Sobre as ideias socialistas predominantes em Portugal quando da promulgação da Constituição de 1976, cf. LIMA, Manuel
Pedroso de. Ob. cit., passim.
(438) Sobre um panorama evolutivo do texto constitucional português em relação ao direito do trabalho e os aspectos e acontecimentos
políticos envolvidos quando da Assembleia Constituinte, cf. XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. A Constituição Portuguesa como fonte
do direito do trabalho e os direitos fundamentais dos trabalhadores, p. 166-181. De um modo geral sobre o processo constituinte e
as revisões constitucionais, cf. CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. CRP — Constituição da República Portuguesa anotada, arts.
1º ao 107. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. v. I, p. 17-65.
(439) PORTUGAL. Lei Constitucional n. 1/89, de 8 de julho. Segunda Revisão da Constituição. Disponível em:
application/file/496589>. Acesso em: 7 nov. 2017.
(440) PORTUGAL. Assembleia da República. Revisões Constitucionais. Disponível em:
cionais/Paginas/default.aspx>. Acesso em: 7 nov. 2017.
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constituição laboral e econômica. Elas tiveram, em verdade, mais o objetivo de atualizar o texto constitucional
português à nova realidade europeia, à internacionalização do direito, bem como conferir maior autonomia
político-administrativa às regiões autônomas dos Açores e da Madeira, além de pontuais e específicas alterações
(que fogem ao objeto deste trabalho).
8.3. O trabalho na Constituição portuguesa
Comentar a absorção do valor-trabalho na Constituição portuguesa passa, antes de tudo, por uma
cuidadosa análise do seu texto originário e, em especial, às suas primeiras revisões(441). Outrossim, para se
interpretar a Constituição portuguesa, talvez mais do que outras, é preciso que se contemple a evolução
da sociedade portuguesa, não permanecendo “arraigada às concepções ideológicas do período histórico de
1976”(442).
De fato, não cabe se fazer uma interpretação da Constituição lusitana nos termos em que originariamente
ela foi disposta, quando se propagava a ideia de que Portugal estaria empenhado “na sua transformação
numa sociedade sem classes” (art. 1º da versão original da CRP de 1976) e que cabia ao Estado “assegurar
a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas
classes trabalhadoras” (parte final do art. 2º da versão original da CRP de 1976), quando atualmente se
estabelece que Portugal deve se empenhar “na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 1º),
com a “realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”
(art. 2º).
Portugal passou, conforme seu texto constitucional original e revisado, de uma sociedade “empenhada
na sua transformação numa sociedade sem classes” para uma sociedade “empenhada na construção de
uma sociedade livre, justa e solidária”. E se o objetivo era “assegurar a transição para o socialismo mediante
a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras”, passou a ser a
de realizar a “democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
Significativas mudanças, que, por óbvio, interferem na interpretação do texto constitucional.
É preciso, porém, lembrar que, apesar dessas mudanças, persiste sem alteração o preâmbulo da Constituição
portuguesa, que “afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os
direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado
do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do
povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”(443).
E sem dúvida que o constituinte, aproveitando-se do momento histórico da elaboração de uma nova
Constituição, relançou as bases da nova ordem laboral, reforçando “a tutela dos interesses laborais que julgou
prioritários”(444). E, neste desiderato, conferiu status constitucional aos principais direitos dos trabalhadores,
ainda que com uma relativa intangibilidade, própria dos direitos fundamentais(445).
É certo que a eliminação “das marcas e expressões ideológico-conjunturais vindas de 1975 e, em particular,
a supressão das referências ao socialismo em todos os artigos” leva ao questionamento “se o socialismo
tem ou conserva, doravante, qualquer sentido autônomo”(446). Contudo, não podemos confundir os ideais
socialistas com as ideias leninista-marxistas. Quando se fala em uma “sociedade socialista”, pode-se pensar
num Estado Social sustentado no princípio da solidariedade e voltado para satisfação dos interesses sociais,
(441) Sobre a evolução do direito do trabalho português a partir da Revolução de 1974, cf. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes.
Direito do trabalho. Coimbra: Almedina, 2008. p. 52-62. Cf. também, FERNANDES, António Monteiro. A recente evolução do direito
do trabalho em Portugal. Tendências e perspectivas. Revista Jurídica, Lisboa, n. 31, p. 11-20, 1984.
(442) LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. A conformidade da proposta de Lei 29/IX (Código do Trabalho) com a Constituição da
República Portuguesa. In: Temas laborais. Estudos e pareceres. Coimbra: Almedina, 2006. p. 133.
(443) Sobre a importância e eficácia do preâmbulo das constituições, cf. MARÇAL, Patrícia Fontes. Estudo comparado do preâmbulo
da Constituição Federal do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
(444) RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do Trabalho, Parte I, p. 146.
(445) Idem.
(446) MIRANDA, Jorge. A Constituição de 1976 no âmbito do constitucionalismo português, p. 641.
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em contraposição ao Estado Liberal, que busca valorizar o indivíduo em face do coletivo. A manutenção no
preâmbulo da Constituição portuguesa dá referência à construção de sua sociedade socialista; neste sentido,
tem sua razão de ainda existir.
E não é à toa que ainda persiste na Constituição de 1976 o princípio de organização econômico-social
em face do qual é assegurada a “participação das organizações representativas dos trabalhadores e das
organizações representativas das atividades econômicas na definição das principais medidas econômicas e
sociais” (letra “g” do art. 80 da CRP). “Além disso, a influência socializante manifesta-se ainda na objetivização
dos direitos fundamentais. O homem que constitui o ponto de partida e o titular de direitos é agora o homem
socialmente ‘situado’ e ‘inserido’, o membro da sociedade numa linguagem organicista, que vê os seus direitos
talhados a uma medida e num plano sociais”(447).
Assim, mesmo diante das mudanças ocorridas, não se pode perder de vista que o preâmbulo da CRP de
1976 traça o caminho para a hermenêutica do texto constitucional. Daí por que, depois de sucessivas revisões
constitucionais, com abandono das radicais ideias preponderantes durante a Assembleia Constituinte, J. J.
Gomes Canotilho continua a destacar que a Constituição portuguesa “erigiu o ‘trabalho’, o ‘emprego’, os
‘direitos dos trabalhadores’ e a ‘intervenção democrática dos trabalhadores’ em elemento constitutivo da
própria ordem econômica global e em instrumento privilegiado de realização do princípio da democracia
econômica e social”(448). O mestre português chega a afirmar que a Constituição portuguesa é “de longe a
mais avançada da Europa em termos de normativização constitucional dos Direitos Sociais”(449). E ela, sem
dúvida, tem “uma presença forte na área do trabalho, ligada intimamente aos tópicos constitucionais em
matéria econômico-social e de direitos fundamentais”(450).
Jorge Miranda também destaca “o número elevado e a densidade das normas sobre direitos dos
trabalhadores (arts. 53 a 57, 58, 59, 89, 98), uns reconduzíveis a direitos, liberdades e garantias e outros
a direitos sociais”(451) e que hoje seriam, verdadeiramente, garantias da “plena cidadania”(452). Tais normas,
assim, traduzem as “exigências de dignidade e de defesa diante do poder — tanto do poder político como do
poder econômico — que se alicerçam na razão de ser básica dos direitos, liberdades e garantias”(453).
Já António Menezes Cordeiro ensina que a Constituição portuguesa, no seu aspecto laboral, pode ser
analisada “por duas ordens de ideias”: “pelo pensamento ideológico que informava a maioria dos deputados à
Assembleia Constituinte...; e pela oportunidade de constitucionalizar aspectos juslaborais controversos...”(454).
No primeiro aspecto, em face da forte influência ideológica, a CRP acabou por refletir a tendência
política predominante à época, com fortes pinceladas socializantes e de predomínio dos interesses da classe
trabalhadora. “A linguagem mais radical”, no entanto, acabou por ser retirada da Constituição pela Revisão
de 1982.
Já no seu segundo aspecto, ele se mostra perene, pois as conquistas trabalhistas se integraram à Cons-
tituição de forma permanente, ainda que pudessem ter sido deixadas para a legislação infraconstitucional(455).
É certo dizer que a Constituição portuguesa, entre aquelas surgidas na Europa depois da Segunda Guerra
Mundial, foi, sem dúvida, até então, a que mais fez cumprir uma das funções do direito do trabalho, qual seja,
a de “compensar a debilidade contratual originária do trabalhador, no plano individual”(456). Neste sentido, a
CRP, ao contrário das demais Constituições europeias surgidas até então, ao abrigar em seu texto diversos
(447) ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina,
2001. p. 58.
(448) Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 345.
(449) MATOS, Antonio. Constituição e direitos sociais. Situação em Portugal e na Europa. In: MADEIRA, Custa et al. (Coords.). Temas
laborais luso-brasileiros. São Paulo: LTr, 2006. p. 21.
(450) XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito do trabalho. In: DIAS, Jorge de Figueiredo
et al. XXV de jurisprudência constitucional portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 210.
(451) MIRANDA, Jorge. A Constituição do Trabalho Portuguesa, p. 12.
(452) Ibidem, p. 13, citando XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. A Constituição Portuguesa como fonte do direito do trabalho e os
direitos fundamentais dos trabalhadores, p. 99.
(453) MIRANDA, Jorge. A Constituição do Trabalho Portuguesa, p. 15.
(454) CORDEIRO, António Menezes. Manual de direito do trabalho, p. 142.
(455) Ibidem, p. 142-143.
(456) Ibidem, p. 25.
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direitos coletivos e individuais do trabalhador, abriu caminho para que outras cartas constitucionais seguissem
seu exemplo, como se constata da simples leitura da Constituição espanhola promulgada posteriormente(457).
Mas não só isso. A CRP de 1976, como nenhuma outra das principais Constituições europeias até então
promulgadas, também tratou de inserir a classe trabalhadora na gestão da empresa e do Poder Público, além
de lhe assegurar participação no processo de elaboração de políticas públicas e da própria legislação laboral.
Em caráter irreversível, pois colocou os trabalhadores no centro do poder político.
Aliás, como ensinam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “a individualização de uma categoria de
direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, ao lado dos de caráter pessoal e dos de caráter político
(Caps. I e II do presente Título II da Parte I da CRP), reveste um particular significado constitucional, do ponto
em que ela traduz o abandono de uma concepção tradicional dos direitos, liberdades e garantias como
direitos do homem ou do cidadão, genéricos e abstratos, fazendo intervir também o trabalhador (exatamente:
o trabalhador subordinado) como titular de direitos de igual dignidade”(458). A CRP de 1976, assim, elevou o
trabalhador, com fortes tintas e de modo claro, a paradigma constitucional(459).
Mas a CRP de 1976 não apenas estabeleceu regras de autodefesa do trabalhador (greve, autonomia
coletiva etc.). Ela criou um arcabouço jurídico que dotou os trabalhadores com instrumentos que visam a
“realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa” (art.
2º), especialmente mediante a gestão da economia, da seguridade social, da participação na gestão pública,
na elaboração legislativa etc.
Todos esses direitos, em verdade, acabam por exprimir “uma proteção da liberdade e da autonomia dos
membros de certas camadas sociais, justamente daqueles que só agora, por meio da luta social, ascendem a
uma integral cidadania — os homens trabalhadores”(460).
A importância dada pela Constituição portuguesa ao direito do trabalho, por sua vez, pode ser aferida
pelos amplos domínios no qual ele se insere. Assim, por exemplo, já na parte introdutória da CRP de 1976,
quando cuida dos princípios fundamentais, não se pode perder de vista que, ainda que indiretamente, faz-se
alusão ao direito do trabalho quando se estabelece como tarefa fundamental do Estado lusitano a promoção
do “bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação
dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das
estruturas econômicas e sociais” (letra “d” do art. 9º)(461).
Contudo, podemos sistematizar, como o faz José Barros Moura, esses direitos constitucionais trabalhistas
em duas perspectivas: quanto à proteção do trabalhador subordinado e quanto à configuração dos direitos
dos trabalhadores e da intervenção democrática dos trabalhadores(462). Na primeira perspectiva, temos que
a CRP estabeleceu diversas normas de proteção do direito ao trabalho, dos direitos dos trabalhadores e das
entidades sindicais. Aqui se privilegiou o indivíduo trabalhador e não toda e qualquer pessoa(463).
Já na segunda perspectiva, superando a “concepção clássica do Direito do Trabalho, exclusivamente
como direito de proteção do contratante débil ou da parte mais fraca”(464), sufragaram-se diversos direitos
(457) É certo que, até o momento não podemos extrair a conclusão de que a CRP de 1976, do ponto de vista da proteção dos
trabalhadores, iniciou uma nova tendência constitucional na Europa, isto é, que teria inaugurada uma fase de predominante inclusão
de regras de proteção dos trabalhadores nas Constituições. Cabe lembrar, todavia, que, depois dela, além da Constituição espanhola,
a holandesa de 1983, em seu art. 19 (HOLANDA. The Constitution of the Kingdom of the Netherlands 1983. Disponível em:
seafarersrights.org/legal_database/netherlands-constitution-1983/>. Acesso em: 7 nov. 2017), em regra repetida na sua atual Carta
Magna de 2008 (HOLANDA. The Constitution of the Kingdom of the Netherlands 2008. Disponível em:
documents/regulations/2012/10/18/the-constitution-of-the-kingdom-of-the-netherlands-2008>. Acesso em: 7 nov. 2017) e a polonesa
de 1997, em seus arts. 65 e 66 (POLÔNIA. The Constitution of The Republic of Poland. As adopted by the National Assembly on
2nd April 1997. Disponível em: land/>.
Acesso em: 7 nov. 2017) fazem menção ao direito do trabalho, ainda que mais timidamente.
(458) CRP — Constituição da República Portuguesa anotada, p. 705.
(459) ABRANTES, José João. O direito do trabalho e a Constituição. In: Direito do trabalho — Ensaios. Lisboa: Cosmos, 1995. p. 42.
(460) ANDRADE, José Carlos Vieira de. Ob. cit., p. 58.
(461) Neste sentido, Cf. GOUVEIA, Jorge Bacelar. O Código do Trabalho e a Constituição Portuguesa, p. 28.
(462) A Constituição portuguesa e os trabalhadores — Da revolução à integração na CEE, p. 821.
(463) MOURA, José Barros. Ob. cit., p. 821.
(464) Ibidem, p. 822.
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de participação nas decisões econômicas e sociais em todos os níveis(465). Neste sentido, por exemplo,
assegurou-se o direito de antena às entidades sindicais (art. 40, n. 1)(466), o direito de controle da gestão
empresarial (arts. 54 e 56) e da administração pública (art. 89), o direito de opinar sobre as políticas
públicas econômico-sociais (art. 56, n. 2, letra “c”) e até participar da elaboração da legislação do trabalho
(art. 56, n. 2, letra “a”).
Todas essas disposições, pois, revelam que a CRP de 1976, ainda que sucessivamente revista, “não
recebeu a ideia do primado do econômico em relação ao social e tem como base antropológica o homem
como pessoa, como cidadão e como trabalhador”(467). Mas ela não só protegeu o trabalhador em face
da debilidade ante o empregador. Foi mais além, reconhecendo ser os trabalhadores atores principais do
“projeto constitucional para uma nova ordem social assente nos valores da dignidade humana e dos direitos
fundamentais”(468), chegando a estabelecer a “intervenção laboral coletiva em prol da realização dos direitos
do homem”(469).
E foi nesse desiderato que a CRP colocou os trabalhadores como protagonistas da implantação do Estado
Social, conforme seu art. 2º, que define a República Portuguesa como “um Estado de direito democrático,
baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito
e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de
poderes, visando à realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia
participativa”.
A CRP, neste caminho, acolhendo a tendência social, insere em seu texto um capítulo especificamente
dedicado aos “direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores”. E só a esse agrupamento ou classe de
pessoas dedica um capítulo próprio. E, nesta trilha, a elevação à categoria constitucional de alguns dos direitos
dos trabalhadores acaba por implantar “uma verdadeira limitação, ao mais alto nível, do poder empresarial e
do conceito tradicional de relação de trabalho”(470).
Tais direitos, que a Constituição reconhece somente aos trabalhadores, resultam em “uma nova concep-
ção de empresa, sendo de repudiar, em face dos preceitos constitucionais, a teoria institucional da mesma,
bem como a concepção fiduciária dos vínculos laborais, que procura ampliar as manifestações de dever de
lealdade do trabalhador, mesmo para além dos limites temporais e espaciais da prestação de trabalho”(471).
A empresa passa, assim, mais do que mera detentora dos meios de produção, em “um espaço de relações
humanas, entre pessoas portadoras dos seus direitos e interesses autônomos, tantas vezes contrapostos. O
seu titular deixou o poder de tudo e os trabalhadores deixaram de ser meros sujeitos passivos de uma or-
ganização alheia. A empresa deixou, em suma, de ser um domínio privado dos seus titulares, em que estes
poderiam dispor das relações e postos de trabalho, do acesso aos locais de trabalho e, sobretudo, da gestão
da empresa”(472).
E tudo isso decorre do fato de a CRP assegurar a garantia do emprego, proibir o lockout, consagrar a
liberdade sindical na empresa, o controle da gestão empresarial, além de outros direitos dos trabalhadores
que limitam à liberdade do empregador.
(465) Idem.
(466) Direito de antena ao atribuir ao sindicato a participação no serviço público de rádio e de televisão. Tal direito “está conexo com
uma nova concepção dos sindicatos e dos parceiros sindicais como elementos necessários à democracia participativa”. In: XAVIER,
Bernardo da Gama Lobo. A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito do trabalho, p. 225, nota de rodapé 45.
(467) ABRANTES, José João. Do direito civil ao direito do trabalho. Do liberalismo aos nossos dias. In: Direito do trabalho — Ensaios
Lisboa: Cosmos, 1995. p. 36.
(468) Idem.
(469) CANOTILHO, J. J. Gomes; LEITE, Jorge. A inconstitucionalidade da lei dos despedimentos. Separata do n. esp. do Boletim da
Faculdade de Direito de Coimbra. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Antonio de Arruda Ferrer Correia. Coimbra: [s.n], 1988.
p. 10.
(470) SILVA, Maria Manuela Maia da. Os direitos constitucionais dos trabalhadores e a sua articulação com o direito ordinário. III
Congresso Nacional de Direito do Trabalho. Memórias. Coimbra: Almedina, 2001. p. 109.
(471) ABRANTES, José João. Do direito civil ao direito do trabalho, p. 36-37.
(472) Idem.
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A CRP, no entanto, fez mais. Como já dito anteriormente, ela consagrou em texto constitucional os
interesses dos trabalhadores para além da mera proteção dos interesses profissionais. Estendeu seus interesses
a um conjunto de domínios na busca da concretização da democracia participativa e da implantação do Estado
Social, daí por que as regras relativas à participação na gestão da economia e na formulação de políticas
(seguridade social, gestão pública, na elaboração legislativa etc)(473). “Recolocou a pessoa humana no centro
do ordenamento jurídico e coloca indiscutivelmente como questão central do Direito do Trabalho o respeito
pelos direitos dos trabalhadores, repudiando, de forma inequívoca, a lógica de que as exigências econômicas
devam prevalecer sobre esses direitos”(474).
A Constituição não consagrou o primado do liberalismo econômico; ao contrário, ela colocou como
ponto essencial do direito do trabalho (e, por reflexo, da ordem econômica) o respeito pelos direitos dos
trabalhadores(475). Não por menos, tais direitos “implicam uma ruptura quanto à compreensão do conceito
tradicional da empresa (e das restantes organizações de trabalho) como domínio privado dos seus titulares,
dispondo soberanamente das relações e postos de trabalho, do acesso aos locais de trabalho e, sobretudo,
da gestão de empresa.
Em face da Constituição, os empregadores perderam a liberdade de despedir e de dispor dos empregos
(...), além de não poderem recorrer ao lockout como meio de combate contra os trabalhadores (art. 57); os
proprietários de empresas perderam o domínio absoluto do espaço e dos locais de trabalho, não podendo
impedir o exercício de atividades sindicais (art. 55-2/d); os empresários têm o seu poder de gestão comprimido
pela fiscalização e pelo controle dos trabalhadores (art. 54-5/b).
Deste modo, os direitos dos trabalhadores adquirem uma dimensão objetiva, que implica uma nova
concepção da empresa (e das organizações de trabalho em geral), em que o empresário-empregador encontra
importantes restrições no seu poder de direção na liberdade de empresa e na liberdade negocial e em que os
trabalhadores deixaram de ser meros sujeitos passivos de uma organização alheia. Em linguagem mais atual,
os direitos fundamentais dos trabalhadores consubstanciam a cidadania no trabalho, contrabalançando a
posição de dependência do trabalhador na relação de poder que é a relação de trabalho”(476).
No entanto, ressalte-se, a Carta Magna portuguesa não despreza a importância dos valores como o da
rentabilidade e o da racionalidade econômica. Contudo, acima deles, coloca o respeito pelos direitos, liberdades
e garantias dos trabalhadores, “os quais implica uma concepção de empresa como um espaço de relações
humanas, entre pessoas portadoras dos seus direitos e interesses autônomos, tantas vezes contrapostos, e em
que os trabalhadores não são meros sujeitos de uma organização alheia”(477).
A Constituição, pois, parte da premissa de que o trabalhador é um ser humano, cuja liberdade e direitos
fundamentais não podem, imotivadamente e sem ponderação de valores, ser sacrificados pelos interesses
empresariais. No embate, no entanto, dos seus interesses, há de se encontrar as soluções que tanto garantam
a liberdade de empresa como os direitos constitucionais dos trabalhadores(478). Daí por que “a Constituição
impõe ao Direito do Trabalho um reencontro com as suas origens, enquanto ramo do Direito em que o ‘social’
se impõe como limite do ‘econômico’ e em que o lugar central é o da pessoa humana, em todas as suas
facetas, como indivíduo, cidadão e trabalhador”(479).
Tudo isso com o objetivo maior de, em outras palavras, “emancipar” os trabalhadores “rumo a uma
cidadania plena, uma cidadania não apenas civil e política, mas também econômica, social e cultural — e,
também, na empresa”(480).
Pode-se, ainda, afirmar, em face da CRP de 1976, que o direito do trabalho, como toda a gama de direitos
constitucionalmente protegidos (segurança no emprego, liberdade sindical, direito de greve, participação
(473) ABRANTES, José João. O direito do trabalho e a Constituição. In: Estudos de direito do trabalho. Lisboa: AAFDL, 1991. p. 66.
(474) ABRANTES, José João. O Código do Trabalho e a Constituição. In: Questões Laborais, Coimbra, ano X, n. 22, p. 132, 2003.
(475) Idem.
(476) CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. CRP — Constituição da República Portuguesa anotada, v. I, p. 705-706.
(477) ABRANTES, José João. O Código do Trabalho e a Constituição. In: Questões Laborais, p. 133.
(478) Idem.
(479) Ibidem, p. 134.
(480) Idem.
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na elaboração de leis etc.), “é condição necessária de todas as outras liberdades e que, por outro lado,
encontrando-se a pessoa do trabalhador intrinsecamente envolvida na troca contratual e sendo o trabalho
um valor essencial para a dignidade do homem e para o livre desenvolvimento da sua personalidade, os
direitos fundamentais — tanto aqueles direitos fundamentais específicos dos trabalhadores como os direitos
fundamentais não especificamente laborais — devem ser encarados como componentes estruturais básicos do
contrato de trabalho”(481).
Neste sentido, a Constituição portuguesa rejeita o modelo liberal e, ao mesmo tempo, assume um
compromisso contra a direção autoritária da empresa ao garantir a segurança no emprego, o direito de
criar comissões de trabalhadores no seio da empresa e o poder de controlar a gestão da empresa, seja
pelas informações que são devidas, o direito de participar de sua reestruturação, o direito de participar da
elaboração da legislação trabalhista etc.(482). O constituinte português inspirou-se, pois, num “instrumento
cultural que, queiramos ou não, foi o da intervenção laboral coletiva em prol da realização dos direitos do
homem”(483).
No que se refere ao direito individual, a proteção do emprego ganha destaque, pois se constitui em
ponto basilar na qual se assenta o ordenamento jurídico português(484). Lógico, no entanto, que “entre a
segurança no emprego e a liberdade de iniciativa privada é necessário harmonizar interesses”(485). Porém, é
certo que a CRP de 1976 elevou à dignidade constitucional a proteção contra o despedimento injustificado,
o que bem revela a sua clara opção pelo social, e prevalência dos interesses dos trabalhadores, em face dos
interesses individuais do detentor dos meios de produção(486).
Questão cara ao direito do trabalho, as normas relacionadas ao direito de despedir lhe constituem
um problema fundamental. Isso porque de nada adianta se conceder uma enormidade de direitos aos
trabalhadores se a empresa tem a ampla liberdade de despedir sem justa causa ou por denúncia vazia. Não
sem razão, o legislador constituinte português quis claramente limitar os poderes empresariais, pois, a se
manter o direito de despedir imotivadamente, estar-se-ia assegurando à empresa uma “soberania” sobre os
trabalhadores. Disso resultou no reconhecimento, em caminho oposto, do “poder” do trabalhador em se
manter no emprego(487).
Evidente, no entanto, que esse direito constitucional não veda a possibilidade de existirem outras formas
de cessação do contrato (que não seja a despedida sem justa causa), até porque ele não pode ser tido como
um direito absoluto. Daí por que a legislação infraconstitucional pode estabelecer as hipóteses de rompimento
do contrato por outros motivos.
A Constituição, pois, “não vedou em absoluto ao legislador ordinário a consagração de certas causas de
rescisão unilateral do contrato de trabalho pela entidade patronal com base em motivos objetivos, desde que
as mesmas não derivem de culpa do empregador ou do trabalhador e que tornem praticamente impossível
a subsistência do vínculo laboral”(488). Contudo, ressalte-se que, mesmo no caso de despedimentos por causa
objetiva, impõe-se a instituição de garantias substantivas e de procedimento. E, entre elas, a de determinação
das causas (com suficiente concretização dos conceitos da lei), o controle das situações de impossibilidade
objetiva e a garantia ao trabalhador do pagamento de uma indenização quando da inviabilidade da manutenção
do emprego(489).
(481) Ibidem, p. 136.
(482) MATOS, Antonio. Ob. cit., p. 19-20.
(483) CANOTILHO, J. J. Gomes; LEITE, Jorge. A inconstitucionalidade da lei dos despedimentos, p. 10.
(484) MARTINEZ, Pedro Romano. A Constituição de 1976 e o Direito do Trabalho, p. 161.
(485) Ibidem, p. 184.
(486) A partir daqui, fazemos alusão a alguns direitos trabalhistas contidos na CRP sem a intenção de esgotar o tema, mas apenas
citando aqueles mais relevantes e que traçam o essencial quadro normativo da Constituição Laboral portuguesa.
(487) XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. A Constituição Portuguesa como fonte do direito do trabalho e os direitos fundamentais dos
trabalhadores, p. 182-183.
(488) PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Acórdão n. 581/95, de 31.10.1995. Disponível em:
tc/acordaos/19950581.html>. Acesso em: 7 nov. 2017.
(489) PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Acórdão n. 581/95, de 31.10.1995. Disponível em:
tc/acordaos/19950581.html>. Acesso em: 7 nov. 2017.
77
Ainda, neste mesmo caminho de limitação à “soberania” da empresa, a Constituição portuguesa
instituiu um conjunto “de direitos de exercício coletivo” que consagram a intervenção dos trabalhadores na
gestão da empresa, procurando, assim, por meio dessas normas, o reequilíbrio e a isonomia das situações
substancialmente desfavorecidas no plano individual(490).
Neste caminhar de limitação aos poderes empresariais, podemos, ainda, por óbvio, incluir a liberdade
sindical, o direito à negociação coletiva e o direito à greve. Em relação a este último, tal direito é assegurado
aos trabalhadores enquanto instrumento de tutela dos seus interesses (art. 57). Conforme a Constituição
portuguesa, é garantido o direito de greve, competindo “aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a
defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito” (n. 2 do art. 57).
Do texto constitucional português, pois, tem-se que a greve é direito fundamental dos trabalhadores, seja
subordinado ou não. Greve no sentido de “paralisação do trabalho ou noutra forma típica de incumprimento
da prestação de trabalho”(491). Sua única restrição pode advir da lei, que deve estabelecer as “condições de
prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações,
bem como de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis”
(n. 3 do art. 57), lembrando que esse condicionamento não era previsto na versão originária da Constituição
de 1976, haja vista ter sido inserido pela Revisão de 1997.
A greve, pois, apresenta-se como direito inicialmente, apenas limitado pela defesa de outros direitos
constitucionais. Ainda assim, em cada caso concreto, eles deverão ser ponderados. Daí se tem, então, que,
como aos trabalhadores compete definir o âmbito de interesses a defender por meio da greve, não podendo
a lei limitar esse campo de proteção, a parada poderá assumir feições político-econômicas, já que os interesses
dos trabalhadores se estendem para além das fronteiras intramuros da empresa-empregadora(492). Basta,
assim, que os interesses não sejam irrelevantes ou impertinentes para os trabalhadores e que, também, não
sejam constitucionalmente ilícitos ou vedados(493). A greve, desse modo, conforme a CRP, pode ter por objetivo
interesses “extralaborais”, ou seja, fora do domínio da relação de emprego(494).
É certo, ainda, que o direito de greve deve ser praticado coletivamente e decidido pelos próprios
trabalhadores interessados. Não é, pois, direito a ser exercido ou dirigido pela entidade sindical(495).
Outra norma central do direito do trabalho na CRP é aquela encontrada na letra “b” do n. 1 do art.
59, que assegura “a organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a
realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade profissional com a vida familiar”.
Tal regra se impõe de imediato, com plena eficácia, inclusive em face do Estado, a quem o trabalhador
pode exigir uma legislação evolutiva tendente a melhorar a sua condição social. Tal não impede que se exija,
também, da entidade patronal essa progressividade de direitos, de modo a facultar — como preceitua a CRP
— a realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade profissional com a vida familiar(496).
Cabe, ainda, lembrar a advertência de José João Abrantes, para quem, em face da Constituição, “o
Direito do trabalho não pode, entre outros importantes aspectos, ignorar que, encontrando-se a pessoa
do trabalhador intrinsecamente envolvida na troca contratual e sendo o trabalho um valor essencial para a
(490) XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. A Constituição Portuguesa como fonte do direito do trabalho e os direitos fundamentais dos
trabalhadores, p. 183-184.
(491) ABRANTES, José João. O direito do trabalho e a Constituição. In: Direito do trabalho, Ensaios, p. 51.
(492) Idem.
(493) Idem.
(494) Ibidem, p. 52.
(495) ABRANTES, José João. O direito do trabalho e a Constituição. In: Direito do trabalho — Ensaios, p. 52; CANOTILHO J. J. Gomes;
MOREIRA, Vital. CRP — Constituição da República Portuguesa anotada, v. I, p. 754.
(496) Entendendo que essa regra somente se volta contra o Estado, consultar CARVALHO, António Nunes de. Ob. cit., p. 50;
CAUPERS, João. Ob. cit., p. 144; MARTINEZ, Pedro Romano. A Constituição de 1976 e o Direito do Trabalho, p. 159-160; e CORDEIRO,
António Menezes. Manual de direito do trabalho, p. 146-147. Entendendo que também tem como destinatário os empregadores,
cf. CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. CRP — Constituição da República Portuguesa anotada, v. I, p. 773; e ABRANTES, José
João. O direito do trabalho e a Constituição. In: Direito do trabalho — Ensaios, p. 43. Sobre a eficácia das normas de direito social, cf.
MEIRELES, Ana Cristina Costa. Eficácia dos direitos sociais. Salvador: JusPodivm, 2008.
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dignidade do homem e o livre desenvolvimento da sua personalidade, os direitos fundamentais — tanto os
direitos específicos dos trabalhadores como os direitos não especificamente laborais — devem ser encarados
como componentes estruturais básicos do contrato de trabalho”(497).
Original, no entanto, é o direito constitucional assegurado aos trabalhadores, ainda que por comissões
e entidades sindicais, à participação na elaboração da legislação dos trabalhadores (arts. 54, n. 5, letra “d”,
e 56, n. 2, letra “a”). A violação a este dispositivo, inclusive, acarreta em concluir pela inconstitucionalidade
de qualquer norma de caráter laboral que não assegure, em seu processo legislativo, a participação dos
trabalhadores na elaboração da legislação dos trabalhadores. Participação essa que passa, inclusive, pela
inclusão de representantes dos trabalhadores no Conselho Econômico e Social (art. 92), constituindo-se este
em “órgão de consulta e concertação no domínio das políticas econômica e social”, tendo como atribuição
participar “na elaboração das propostas das grandes opções e dos planos de desenvolvimento econômico e
social”.
E, neste caso, “entende-se por legislação de trabalho a que vise regular as relações individuais e coletivas
de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações, designadamente: a)
Contrato individual de trabalho; b) Relações coletivas de trabalho; c) Comissões de trabalhadores, respectivas
comissões coordenadoras e seus direitos; d) Associações sindicais e direitos sindicais; e) Exercício do direito
à greve; f) Salário mínimo e máximo nacional e horário nacional de trabalho; g) Formação profissional; h)
Acidentes de trabalho e doenças profissionais”, bem como “o processo de aprovação para ratificação das
convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT)” (art. 2º da Lei n. 16/79 de 26 de maio)(498).
É, pois, por meio desse extenso acervo constitucional que se busca realizar, mais plenamente, na
sociedade lusitana, a democracia participativa a que se refere o art. 2º da Constituição da República Por-
tuguesa de 1976.
Pode-se, por fim, tentando resumir em poucas palavras, afirmar que, conforme ensina José Barros Moura,
a CRP se pauta, no domínio da Constituição Laboral, pelas seguintes características: igualdade de tratamento,
igualdade de armas (direito de greve x proibição do lockout; negociação coletiva) e irreversibilidade dos
direitos trabalhistas (princípio da proibição do retrocesso social)(499).
Além disso, ela teria como princípios basilares o de proteção dos trabalhadores(500), da liberdade
sindical(501), da autonomia coletiva(502), do direito ao conflito coletivo(503), da participação(504), inclusive nas
funções públicas(505), do controle da gestão(506) e o da ordem pública social(507), que seria, melhor dizendo,
decorrente da ideia de caráter mínimo imperativo das fontes do direito do trabalho e que apenas autorizariam
a concorrência de fontes “para o progresso social”(508). Em outras palavras, este último seria o princípio da
vedação ao retrocesso social(509).
Em resumo, por força da CRP de 1976, “o trabalho passou a estar inserido no corpo constitucional, no
plano político, no da cidadania e mesmo na expressão normativa da sua tutela... A Constituição assume a
radicalidade da questão de trabalho como “vida”, no dizer popular, como “modo de vida” ou “arte”, de cada
(497) ABRANTES, José João. Autonomia da vontade e direito do trabalho (breves considerações em relação às novas regras sobre
mobilidade dos trabalhadores introduzidas pelo Código do Trabalho). In: Boletim da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, IV
série, n. 3, p. 51, abr. 2004.
(498) Sobre este tema, cf. GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os direitos de participação dos representantes dos trabalhadores na elaboração da
legislação laboral. In: Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, v. I. Lisboa: Instituto de Direito do Trabalho/Faculdade de Direito/
Universidade de Lisboa, p. 109-152, e PIRES, Francisco Lucas. Estudos sobre a Constituição. Lisboa: Petrony, 1977. v. I. p. 376-379.
(499) MOURA, José Barros. A Constituição portuguesa e os trabalhadores — Da revolução à integração na CEE, p. 824-826.
(500) Ibidem, p. 826.
(501) Ibidem, p. 827.
(502) Ibidem, p. 829.
(503) Ibidem, p. 831.
(504) Ibidem, p. 832.
(505) Ibidem, p. 833.
(506) Idem.
(507) Ibidem, p. 834.
(508) Idem.
(509) Ibidem, p. 835-836.
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uma das pessoas”(510). A CRP, pois, inseriu os trabalhadores e os sindicatos no sistema político, seja por meio
de mecanismos de concertação legislativa e mesmo de administração do Estado, seja pelo reconhecimento da
autonomia coletiva (normativa) e do direito de greve(511).
E mais. Alterou significativamente as relações de poder na empresa ao assegurar, v. g., a segurança no
emprego, a atuação sindical e o controle exercido por meio das comissões de trabalhadores.
A tudo isso se somam os direitos sociais especificamente trabalhistas, que acabaram por estruturar
as relações de trabalho em Portugal sob um novo modelo, baseado no respeito à dignidade da pessoa do
trabalhador.
(510) XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. A Constituição Portuguesa como fonte do direito do trabalho e os direitos fundamentais dos
trabalhadores, p. 201.
(511) Ibidem, p. 201-202.

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