Trabalho infantil - trabalho que ceifa a infância, oportunidades e vidas

AutorMaria de Lourdes Leiria
Páginas57-67

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“A infância é medida pelos sons, aromas e cenas antes de surgir a hora sombria da razão”. John Betjeman

1. Contextualização

Quando falamos em trabalho decente nos referimos a trabalho como forma de crescimento, trabalho executado de forma livre e com observância dos direitos fundamentais do cidadão. Neste diapasão, estão excluídas quaisquer formas de trabalho que violem a dignidade da pessoa, tais como o trabalho escravo, o trabalho degradante e o trabalho infantil.

Esta reflexão é sobre o trabalho infantil, responsável por ceifar a infância e a oportunidade de crescimento de milhares de crianças e adolescentes.

Trabalho infantil é todo aquele prestado por crianças e adolescentes, em desrespeito ao limite legal mínimo para o trabalho ou suscetível de pôr em risco sua saúde e integridade. O trabalho é proibido antes dos 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos1.

Até completar 18 anos o adolescente tem tratamento especial pela legislação em função de seu desenvolvimento incompleto, não lhe sendo permitido desenvolver atividades que coloquem em risco sua saúde física, mental ou que lhe sejam prejudiciais a moral. Nesse viés, é proibido o trabalho noturno, insalubre, perigoso e penoso2, assim como em todas as atividades classificadas como piores formas3 de trabalho infantil4 normatizadas pela Convenção n. 1825 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, antes de o trabalhador completar 18 anos, visto que a Convenção normatiza no art. 2º que “o termo criança designa toda pessoa menor de 18 anos”.

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A criança6, o adolescente e o jovem7 têm o direito fundamental de não trabalhar e de ter respeitado o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária e de ser mantidos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, direitos garantidos no art. 227 da Constituição Federal e violados com o trabalho infantil.

O trabalho infantil decorre de questão cultural, não apenas por parte das famílias com baixo poder aquisitivo, que entendem que os filhos devem trabalhar para contribuir com o sustento, mas também da sociedade em geral, que aceita e defende que o trabalho é a alter-nativa para as crianças carentes, para que não fiquem desocupadas. Tal entendimento decorre de herança cultural da década de 80, quando vigia o Código de Menores, cujo foco era a situação irregular das pessoas menores de 18 anos. Trata-se de discriminação odiosa em relação às crianças e aos adolescent:es carentes, como se existisse duas categorias de crianças e apenas as integrantes da classe econômica alta tivessem direitos humanos a serem preservados.

O trabalho precoce é ainda aceito e incentivado por aqueles que trabalharam quando criança, muitos ao abrigo da legislação, que permitia o trabalho a partir dos 12 anos, resultado de retrocesso contemplado na Constituição Federal de 19678. Sustentam que o trabalho enobrece e forma o caráter, trata-se de um mito entre tantos outros: “melhor trabalhar do que ficar na rua”; “criança que trabalha fica esperta”; “criança que trabalha com os pais aprende um ofício”. Esses mitos, no entanto, apenas são defendidos em desfavor de crianças carentes. Crianças oriundas das classes econômicas altas, normalmente estudam até concluírem mestrado ou doutorado, qualificando-se para ingressar no mercado de trabalho.

A utilização de trabalho infantil não é tipificada como crime, fazendo letra morta a disposição contida no art. 5º da Lei n. 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, que prescreve a punição daqueles que violarem direitos fundamentais de crianças e adolescentes:

Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Expor criança e adolescente ao trabalho infantil pode configurar o crime tipificado no art. 132 do Código Penal9 – “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”, especialmente quando o trabalho for considerado pior forma de trabalho infantil, de que trata a Convenção n. 182 da Organização Internacional do Trabalho, e todas as atividades relacionadas na lista TIP, anexa ao Decreto n. 6.481/08, a exemplo do trabalho na agricultura, trabalho infantil doméstico e trabalho nas ruas.

Embora não seja tipificado como crime a exploração de trabalho infantil, o parágrafo único do artigo 132 do Código Penal é específico em relação ao transporte de trabalhadores em desrespeito a legislação, fato muito comum na área rural, onde crianças e adolescentes são transportados em carrocerias de veículos.

O trabalho infantil visível, aquele realizado em carvoarias, pedreiras, olarias e lixões é mais fácil de ser identificado e eliminado. A atuação de várias instituições nestas frentes resultou na retirada de milhares de crianças e adolescentes do trabalho.

Diversos organismos internacionais e nacionais atuam em prol da erradicação do trabalho precoce, com destaque para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), assim como várias instituições integrantes do Estado e não governamentais, o que culminou em significativa redução do número de trabalhadores infantis nas últimas décadas.

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Em 2006, o Brasil contava com mais de 5 milhões de crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos trabalhando. A despeito dos esforços realizados na última década para erradicar o trabalho infantil, o Brasil conta ainda com mais de 2,6 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando, dos quais 79 mil tem entre 5 e 9 anos10, idade em que é proibido qualquer trabalho. Justo nesta faixa etária as estatísticas demonstram um preocupante aumento de crianças trabalhando na ordem de 12% em relação ao ano anterior. A maioria, 85%, das crianças e adolescentes que trabalham têm mais de 14 anos, 32% se ocupam em atividades agrícolas, 79% estudam e recebem remuneração, 66% são meninos, à exceção do trabalho infantil doméstico que é praticado principalmente por meninas11.

A dificuldade em encontrar estas crianças e adolescentes reside no fato de que a maioria delas trabalha em núcleos de difícil acesso às instituições que atuam em prol da erradicação do trabalho precoce. Trabalham na agricultura familiar, em serviços domésticos e estão inseridas na cadeia produtiva, de forma que não são identificáveis sem um exame apurado na origem da produção. Este fato deve servir para reforçar a atuação das instituições que combatem esta chaga.

2. Trabalho infantil na agricultura familiar

A OIT estima que 70% das crianças que trabalham no mundo o fazem na agricultura, trabalho executado sem proteção, em longas jornadas, expostos às intempéries da natureza12. No Brasil 856 mil13 crianças e adolescentes se ocupam em atividades agrícolas, sendo a maioria do sexo masculino.

A maior parte das crianças e adolescentes que trabalham na área rural, o fazem acompanhando os pais na agricultura familiar. À luz da legislação, agricultor familiar ou empreendedor familiar rural é aquele que pratica atividades no meio rural utilizando predominantemente mão de obra14 da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento15.

Estão igualmente enquadrados como empreendedores familiares rurais:

I – silvicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo, cultivem florestas nativas ou exóticas e que promovam o manejo sustentável daqueles ambientes;

II – aquicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo e explorem reservatórios hídricos com superfície total de até 2ha (dois hectares) ou ocupem até 500m³ (quinhentos metros cúbicos) de água, quando a exploração se efetivar em tanques-rede;

III – extrativistas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput deste artigo e exerçam essa atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e faiscadores;

IV – pescadores que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo e exerçam a atividade pesqueira artesanalmente.

V – povos indígenas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput do art. 3º.

VI – integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais que atendam simultaneamente aos incisos II, III e IV do caput do art. 3º16.

O agricultor familiar equivocadamente sentiu-se estimulado a colocar os filhos para trabalhar na agricultura ao passo que o legislador estipulou como requisito para que possa usufruir dos benefícios previstos na lei, que a atividade seja desenvolvida predominantemente com trabalhadores integrantes da família.

Neste contexto, o trabalho da criança é computado na produção, contribuindo para a redução de custos

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com contratação de trabalhadores e na manutenção do requisito da prevalência de trabalhadores integrantes da família.

Por certo que o legislador, ao exigir a predominância de trabalhadores da célula familiar para que se caracterize agricultura familiar ou empreendimento rural familiar, não pretendeu contemplar o trabalho infantil rural, mas tão somente conceder benefício ao pequeno agricultor.

A proibição de trabalho na agricultura antes dos 18...

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