Trabalho escravo: tentativas de alteração e reflexos no mundo do trabalho
Autor | José Claudio Monteiro de Brito Filho |
Páginas | 186-191 |
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Claramente como reação à promulgação da Emenda Constitucional n. 81, que alterou o art. 243 da Constituição da República, bem como a um novo momento da jurisprudência nacional, que se dirige para uma uniformização da noção de trabalho escravo a partir de duas decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal, tem-se observado um caminhar mais célere de iniciativas legislativas que tentam alterar, no plano normativo, a compreensão desse fenômeno reprimido pelo Direito, que é submeter alguém à condição análoga à de escravo, além da propositura de ações judiciais que tentam neutralizar as ações que são empreendidas pelos órgãos e instituições estatais.
A proposta desse texto é discutir três dessas tentativas, principalmente, verificando até que ponto elas, tendo êxito, serão suficientes para impedir a continuidade da ação estatal e até de iniciativa dos jurisdicionados, além de alterar a noção do que é trabalho escravo para os fins da ação punitiva do Estado em matéria trabalhista.
Para isso, iniciar-se-á discutindo iniciativas que podem ser vistas como desencadeadoras da reação que busca reduzir a noção de trabalho escravo no Brasil. Depois, serão apresentadas uma ação judicial e duas proposições legislativas que devem ser compreendidas como parte importante desse esforço de reação, para, enfim, fazer-se uma reflexão a respeito do potencial de mudança que essas iniciativas terão, caso sejam aprovadas, no âmbito trabalhista.
Nos útimos 20 anos, desde que o Estado Brasileiro passou a combater de forma sistemática e organizada o trabalho em condições análogas à de escravo, diversas iniciativas foram sendo, paulatina e continuamente, implementadas1.
Faltava, todavia, completar o conjunto de medidas tendentes a desestimular a prática do trabalho escravo, assim como uma noção, no plano jurisprudencial, mais sólida a respeito de como caracterizar esse ilícito.
Essa noção veio primeiro, com duas decisões importantes do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito, ambas por maioria de votos, mas uma maioria consistente, que permite supor a permanência do entendimento.
A primeira é o Inquérito 2.131 do Distrito Federal, em que foi Relatora a Ministra Ellen Gracie e Redator do Acórdão o Ministro Luiz Fux, sendo autor o Ministério Público Federal, e investigado João Batista de Jesus Ribeiro.
Nessa decisão, de 23 de fevereiro de 2012, em que foi recebida denúncia contra o investigado pela prática do crime previsto no art. 149 do Código Penal Brasileiro, o Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou entendimento importante a respeito da possibilidade de o trabalho em condições degradantes configurar trabalho em condições análogas às de escravo, além de fixar as condições para a ocorrência desse modo de execução, ou espécie, do trabalho escravo2.
Na esteira dessa decisão, veio outra, no Inquérito n. 3.412 de Alagoas, em que era Relator o Ministro Marco Aurélio, que foi vencido, ficando como Redatora do Acórdão a Minis-tra Rosa Weber, que liderou a divergência. O autor também foi o Ministério Público Federal, sendo investigados João José Pereira de Lyra e Antônio José Pereira de Lyra.
A decisão, tomada em 29 de março de 2012, tem o grande mérito de deixar claro que a norma penal que criminaliza o trabalho em condições análogas às de escravo não tem como objetivo somente proteger a liberdade, mas, também - e principalmente, cabe ressaltar -, a dignidade da pessoa humana.
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Nesse aspecto, a ementa é elucidativa, embora o corpo do voto, pela riqueza dos argumentos, seja de recomendável leitura. A ementa é a seguinte:
PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA.
Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima "a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva" ou "a condições degradantes de trabalho", condutas alternativas previstas no tipo penal.
A "escravidão moderna" é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa "reduzir alguém a condição análoga à de escravo".
Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade.
Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais.3
Note-se que essas decisões, não obstante tomadas em matéria penal, têm uma importância que vai para além dessa específica esfera. É que representam a visão da mais alta Corte Brasileira a respeito do que é o trabalho em condições análogas às de escravo, primeiro aclarando a definição de condições degradantes de trabalho e, em seguida, mostrando os bens jurídicos protegidos pela norma penal, e isso, por óbvio, repercute também na esfera trabalhista, tanto no âmbito das ações individuais, como no das ações coletivas, pois é na relação entre trabalhador e tomador de serviços que se verifica a ilicitude que dá origem à repressão nas três esferas: administrativa, trabalhista e penal.
Fechando o cerco contra os tomadores de serviços que se utilizavam da prática do trabalho escravo, dois anos depois, em 2014, veio ao mundo jurídico a Emenda Constitucional n. 81/2014, que deu nova redação ao art. 243, da Constituição da República, que passou a ter o teor abaixo:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
A alteração do art. 243 da Constituição da República, esperada há mais de uma dezena de anos, todavia, nasceu sob o signo de uma impropriedade.
A impropriedade foi a inserção da expressão trabalho escravo na disposição constitucional, pois, em regime jurídico que não reconhece a escravidão, não há trabalho escravo, e sim trabalho em condições análogas às de escravo, conforme corretamente estabelece o art. 149 do Código Penal Brasileiro. E isso não é somente uma questão de semântica, pois, mesmo que comumente se utilize a expressão trabalho escravo, isso ocorre em uma linguagem mais informal, o que é incabível em norma jurídica, especialmente na Constituição da República.
Imagino, todavia, que, a partir de agora, o mesmo significado será dado às duas expressões, abstraindo-se a improprie-dade apontada, sob pena de se ter uma hipótese não realizável.
De qualquer sorte, o que cabe aqui salientar é que a possibilidade de expropriação e confisco fechou o cerco à prática do trabalho escravo, ampliando a repressão no plano...
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