Trabalho escravo contemporâneo e a terceirização

AutorLuciana Barcellos Slosbergas e Rafael Asquini
Páginas223-231

Page 223

Ver Nota12

1. Introdução

Em que pese a escravidão no mundo e no Brasil ter sido abolida por volta de 1830 e 1888, a exploração do homem por meio do seu trabalho ainda é algo que assombra a humanidade.

A despeito de todas as leis que se estabeleceram ao longo de mais de 120 anos, e que se preocuparam em extirpar esta prática maligna de exploração da mão de obra, a “escravidão” ainda se faz presente em muitos lugares no mundo.

Há não muito tempo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1949, previa que ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas, [...]. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho [...].

A Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho de 1930, Sobre o Trabalho Forçado, alerta que todos os membros da Organização Internacional do Trabalho que ratificaram a presente convenção se obrigam a suprimir o emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas no mais curto prazo possível.

Por sua vez, a Convenção n. 105 da Organização Inter-nacional do Trabalho, do ano de 1957, trata da questão da Abolição do Trabalho Forçado determinando que todo o País membro da OIT que ratificar esta Convenção compromete-se em abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório e dele não fazer uso: como medida de coerção ou de educação política ou como punição por ter ou expressar opiniões políticas ou pontos de vista ideologicamente opostos ao sistema político, social e econômico vigente; como método de mobilização e de utilização da mão de obra para fins de desenvolvimento econômico; como meio de disciplinar a mão de obra; como punição por participação em greves; como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.

O sistema jurídico brasileiro incorporou toda essa base normativa internacional, no art. 5º, § 2º da Constituição Federal.

Nosso texto constitucional também veda o trabalho forçado ao estatuir como fundamento da República Federativa do Brasil “a dignidade da pessoa humana” (art. 1.º, III) e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1º, IV); estabelecendo entre os direitos e deveres individuais e coletivos a garantia de que ninguém será submetido a torturas, tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), garantindo ainda liberdade para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendendo as qualificações profissionais estabelecidas em lei (art. 5º, XIII) e observando sempre o princípio da prevalência dos direitos humanos.

Apesar da forte adesão aos compromissos internacionais, dos dispositivos constitucionais e do avanço no combate ao trabalho forçado, a prática hedionda da utilização da “mão de obra escrava” ainda é algo recorrente em nosso país.

Vários fatores contribuem para tal prática ainda existir, sendo o primeiro deles a vulnerabilidade. O indivíduo vulnerável está mais exposto às diversas formas de alicia-mento que ocorrem em tais práticas, favorecendo o consentimento.

O segundo fator é a falta de punição para quem explora tais formas de trabalho, apesar de diversos esforços e mecanismos criados para o combate e a erradicação do trabalho forçado.

O que se verifica, portanto, é que escravidão contemporânea não é baseada em critério de raça, mas sim em uma questão de vulnerabilidade social, que é medida pela baixa renda e retribuição ao trabalho, pelo acesso restrito aos serviços públicos básicos, pela baixa escolaridade e pela condição de isolamento geográfico.

O Poder Público, por sua vez, assume que a escravidão contemporânea é marcada pelo autoritarismo, pela corrupção, pela segregação social, pelo racismo, pelo clientelismo e pelo desrespeito aos Direitos Humanos.3

Page 224

Na maioria dos casos os indivíduos voluntariam-se em virtude da necessidade e da sobrevivência, em outros nem tanto. Logrados por um discurso revestido de benesses, muitos se aventuram em busca de uma vida melhor e se deparam com o horror da degradação. Muitos preferem se sujeitar às situações degradantes a ver sua família passar por privações que temem ser ainda piores.

O medo da fome e da miséria é maior que o medo do castigo, do açoite, do desconforto e da humilhação. É nesse panorama que o aliciamento desenvolve-se nos dias de hoje, sendo algo absolutamente fácil arrumar mão de obra “escrava” voluntária.

A escravidão moderna é diferente da escravidão clássica. A figura jurídica do escravo não mais existe nos dias de hoje. Cenas como as de negros presos a grilhões ou amarrados em pelourinhos não são necessárias para que se configure o trabalho forçado.

A submissão física foi substituída pela servidão por dívida, em que muitas vezes o trabalhador vê-se obrigado a realizar compras para o seu sustento em locais de proprie-dade do empregador, pagando preços não condizentes com a realidade, tudo com o claro objetivo de manter o trabalhador “preso” ao local de trabalho por causa de sua dívida contraída.

A coerção psicológica por meio da ameaça não mais se caracteriza por frases ditas em tom de crueldade, mas na simples presença de capangas armados ostensivamente, a fim de assegurar a perfeita realização das tarefas.

Marcelo José Ferlin D’Ambrósio, Procurador do Trabalho no Estado de Santa Catarina, afirma: assim, se o primeiro tipo de escravidão considerava o escravo clássico como item patrimonial (coisa), recebendo cuidados como patrimônio – apesar da violência da sua sujeição, no segundo sistema de escravidão, o contemporâneo ou neocolonialista, os escravos, compostos de pessoas marginalizadas do processo produtivo (de pouca ou nenhuma instrução, formação ou qualificação profissional), não recebem cuidados, sendo pessoas no sentido formal, mas sem partilhar bens de consumo nem ter dignidade de atenção à sua saúde, ou seja, materialmente desconsideradas.4

Diante de tais circunstâncias a que muitos trabalhadores são submetidos é que se pode afirmar que ainda existe escravidão no Brasil, e precisam ser identificadas por mecanismos de fiscalização e combatidas para que não se tornem cada vez mais violações aos Direitos Humanos e uma afronta direta ao Estado Democrático de Direito.

2. Trabalho escravo contemporâneo
2.1. Conceito

Conceituar o trabalho escravo não é uma tarefa fácil até porque, pelos termos da lei que aboliu a escravidão no Brasil, tal prática não existe mais.

Entretanto, o trabalho escravo pode não existir mais da forma como se dava nos séculos XVI a XIX, em que pese a semelhança existente entre as definições clássica e contemporânea, eis que apresentam, na maioria das vezes, as mesmas características básicas.

Diversas são as denominações dadas ao fenômeno de exploração da mão de obra nesta modalidade, tais como “trabalho escravo”, “exploração do trabalho”, “semiescravidão”, “trabalho degradante” etc. Porém, há que se entender que todos esses termos tratam da mesma reali-dade jurídica.

Apesar dessas denominações, é importante que se diga que qualquer espécie de trabalho que não reúna as mínimas condições necessárias para a garantia dos direitos mínimos aos trabalhadores, que cerceie sua liberdade, que ofenda a sua dignidade e que o sujeite a condições degradantes, deverá ser considerado como trabalho em condição análoga à de escravo, ainda que haja consentimento do trabalhador. Contudo, não podemos confundir infrações às leis trabalhistas e ao contrato de trabalho com situações análogas à de escravo.

De acordo com o Ministério Público do Trabalho, o “trabalho em situações análogas à de escravo” é caracterizado pelo cerceamento da liberdade e pela coação (moral, econômica ou física) do trabalhador. Tipificado como crime pela nossa legislação penal, inclusive.

São verificadas nesse procedimento, normalmente, jornadas exaustivas de trabalho, em condições insalubres, como por exemplo, alojamento inadequado, falta de boa alimentação, em muitos casos ausência de água potável e falta de fornecimento de equipamentos de segurança5.

No art. 2º da Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho (1930), ratificada pelo Brasil em 1957 com vigência a partir de 1958, encontramos a expressão “trabalho forçado”, que assim dispõe: para fins desta Convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma

Page 225

pessoa sob ameaça de sanção e para a qual não se tenha oferecido espontaneamente.

Mormente, a expressão “espontaneamente” precisa ficar clara quanto ao seu significado, uma vez que pode levar ao entendimento equivocado de que o trabalhador que se oferece espontaneamente à prestação de serviço, e posteriormente vem a ser explorado, não estaria protegido pela Convenção n. 29 da OIT. Todavia, não é bem isso que o texto diz.

Sobre esse assunto, o Procurador Geral do Trabalho, Luiz Antônio Camargo de Melo, esclarece que: a Convenção n. 29 da OIT é o marco legal internacional para a proteção desse trabalhador, ou seja, se o trabalhador se oferece de livre e espontânea vontade, mas a oferta de trabalho, na verdade, é uma fraude, esse trabalhador está sendo enganado, e incide, como item de proteção, a Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho.6

Existem diversas correntes doutrinárias que divergem quanto à definição de trabalho escravo. A primeira delas...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT