O trabalho escravo contemporâneo rural no contexto da função social

AutorMarcello Ribeiro Silva
CargoProcurador do Trabalho lotado na PRT da 18ª Região
Páginas56-89

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Introdução

Apesar de a eliminação do trabalho escravo ser prioridade nacional desde 1995, quando o Governo brasileiro reconheceu inter-nacionalmente a sua existência no país1, essa terrível mazela sociojurídica ainda reluta em assolar os trabalhadores rurais brasileiros, pois como noticiado pela imprensa rotineiramente, milhares de trabalhadores são resgatados das fazendas do interior do país anualmente, onde são encontrados em condições análogas às de escravo, demonstrando que a escravidão rural ainda é uma triste realidade no Brasil.

Torna-se necessário, outrossim, o aprimoramento dos atuais mecanismos de combate ao trabalho escravo contemporâneo rural, bem como a busca de novos instrumentos que permitam a completa erradicação deste câncer socioeconômico, dentre os quais se aponta, por sua importância, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC)
n. 438/01, atualmente em trâmite no Congresso Nacional, que confere nova redação ao art. 243 da Constituição Federal, estabelecendo a pena de confisco, para fins de reforma agrária, de terras onde for constatada a exploração de trabalho escravo.

Embora reconhecendo que a medida mais efetiva seja o confisco das terras, o ensaio pretende analisar a possibilidade de utilizar a desapropriação agrária prevista no art. 184 da CF como instrumento de combate à escravidão contemporânea rural. Analisa-se, portanto, a possibilidade de desapropriar o imóvel rural, mesmo que produtivo, onde for encontrado o labor escravo.

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A dificuldade para se cumprir tal desiderato reside na aparente antinomia existente entre as normas estatuídas nos arts. 184 e 186 da CF com a prevista no art. 185, II, do mesmo Codex, que tem levado parte da literatura agrarista a entender que o ordenamento jurídico constitucional veda a desapropriação agrária do imóvel rural produtivo que não observa os demais elementos da função social, o que impede a desapropriação do imóvel produtivo que explore o trabalho análogo ao de escravo.

A importância do estudo reside na constatação de que, na prática, a função social da propriedade rural tem sido reduzida à mera aferição dos elementos que compõem a produtividade do imóvel — Grau de Utilização da Terra (GUT) e Grau de Eficiência da Exploração (GEE) —, que dizem respeito a apenas um dos elementos da função social — produtividade — CF, art. 186, I —, enquanto que os demais requisitos previstos no art. 186 da CF têm sido desprezados tanto pelo órgão administrativo responsável pela implementação da reforma agrária quanto pelo Poder Judiciário.

A erradicação do trabalho análogo ao de escravo não pode prescindir de um instrumento tão poderoso quanto a desapropriação por interesse social. O objetivo principal do ensaio, portanto, é analisar a possibilidade de aplicação da pena de desapropriação ao imóvel rural, inclusive o produtivo, que explore o trabalho escravo como fator de redução dos custos da produção, por descumprimento dos requisitos previstos nos incisos III e IV do art. 186 da CF, o que será realizado mediante o método dedutivo.

1. O trabalho escravo contemporâneo rural

A eliminação do trabalho escravo, medida ímpar para a consolidação do Estado Democrático de Direito e para garantia da dignidade humana e dos valores sociais do trabalho, pilares sobre os quais se assenta a República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III e IV), tornou-se prioridade nacional desde 1995, quando o Governo brasileiro reconheceu internacionalmente a sua existência no país.

Na oportunidade, foram instituídos o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) e o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Escravo (GERTRAF), incumbidos de realizar ações integradas de combate ao trabalho escravo, a fim de alcançar, além dos aspectos trabalhistas, as dimensões sociais, econômicas, ambientais e criminais do problema.

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Desde então, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel vem realizando operações com o fim de retirar as vítimas do trabalho escravo dos locais em que se encontram, assegurar-lhes o recebimento das verbas trabalhistas devidas e o retorno aos locais de origem, além de acionar o Poder Judiciário, por intermédio do Ministério Público, para as providências devidas no aspecto penal e trabalhista, alcançando, entre 1995 e 2007, a impressionante marca de 25.820 trabalhadores resgatados em condições análogas às de escravo2.

A Constituição de 1988, fundando nova ordem jurídica para a sociedade brasileira, estabeleceu como fundamentos da República Federativa do Brasil, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º, III e IV). Almejando a proteção destes fundamentos elencou, dentre os direitos e garantias fundamentais, os direitos sociais, entre os quais se destacam o direito ao trabalho, à saúde, à segurança e à previdência social na forma da Constituição. Especificamente em relação ao valor do trabalho, a Carta Magna, em seu art. 7º, garantiu um rol mínimo de direitos laborais, equiparando os trabalhadores rurais aos urbanos.

A exploração do trabalho escravo fere princípios e regras constitucionais, atentando contra a dignidade humana, os valores sociais do trabalho e o direito fundamental de liberdade, não podendo ser tolerada pela sociedade brasileira, que deve encontrar os meios necessários e suficientes para extirpar definitivamente de nosso meio esse terrível câncer social.

Assim, exposta a gravidade do problema do trabalho análogo ao de escravo no meio rural brasileiro, passa-se à análise da evolução histórica do direito de propriedade e da função social, com o fito de melhor compreender a extensão e os limites do instituto no seio do qual ocorre a exploração do trabalhador rural.

2. Evolução histórica do direito de propriedade
2.1. Era primitiva

A propriedade é uma instituição fundamental, que sempre acompanhou a história do homem. A palavra “propriedade” vem do latim

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proprietas, proprietatis, significando coisa possuída como própria, de proprius, próprio, particular3.

Embora ainda não tenha sido dada a palavra final sobre o assunto, acredita-se que nos primórdios da civilização, a propriedade possuía caráter coletivo, passando a ter contornos individuais no decorrer do tempo4.

A primeira forma de propriedade foi a relativa aos bens móveis, mormente a vestimenta e os utensílios de caça e pesca, pois neste período o homem não se vinculava à terra, já que levava uma vida essencialmente nômade. Nesta época, até mesmo os produtos resultantes da caça, pesca e colheita eram bens coletivos. Com a fixação do homem na atividade agrícola, no entanto, surge, a par da propriedade coletiva, pertencente ao grupo, tribo ou clã, a propriedade destinada a determinadas famílias, diferenciando, assim, as terras públicas das particulares5.

2.2. Grécia e Roma antigas

Aristóteles entendia que a propriedade deveria ter uma destinação social. Sobre o pensamento aristotélico, ensina Benedito Ferreira Marques que aos bens se devia emprestar uma destinação social, para o que, segundo a concepção do filósofo, seria necessária a apropriação pessoal6.

Para Aristóteles, portanto, o homem tinha o direito de possuir bens, não apenas para retirar deles o seu sustento, mas também para satisfazer aos outros, o que representa uma ideia extremamente avançada para a época.

De outra banda, o filósofo Platão, em sua obra A República, deu uma grande contribuição para a conceituação do direito de propriedade. Ele descreveu o Estado ideal, arrematando que a construção da Cidade-Estado, a polis, é a maneira mais apropriada para se ultimar a justiça. De acordo com a concepção da época, a cidade (ou Estado)

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ideal deveria conter três classes sociais, a saber, os artesãos, os guerreiros, e os guardiões7.

À classe governante é imposta uma renúncia natural à proprie-dade privada, pois os guerreiros e os guardiões devem dedicar-se à plena realização de seu trabalho, sem interferências do aspecto econômico. Diversamente, os artesãos, como responsáveis pelo sustento da polis, são livres para acumular propriedades8.

A concepção platônica de Estado, por conseguinte, já vislumbrava a noção de propriedade condicionada à produção, pois o fundamento da propriedade era a necessidade de sustentação do Estado.

No direito romano vigorou, originariamente, o regime da propriedade quiritaria, protegida pelo jus civile, aplicável somente aos bens mancipi adquiridos por mancipatio ou in iuri cessio, vale dizer, os bens imóveis situados em solo italiano, cujos titulares fossem cidadãos romanos9. A propriedade quiritaria, que era a única forma de propriedade reconhecida, requeria a coexistência de diversos requisitos, como capacidade pessoal, que apenas o cidadão romano possuía; idoneidade da coisa (res mancipi); e forma de aquisição em consonância com o direito civil10.

Com o passar do tempo, no entanto, a propriedade quiritária foi perdendo força, emergindo ao seu lado, a propriedade bonitária ou do jus gentium, que não gozava de todos os requisitos da propriedade quiritária. Não obstante, a propriedade bonitária começou a ser tutelada pelos pretores, de forma que Justiniano fundiu as duas modalidades de propriedade em uma só, acabando com as confusões até então existentes, consolidando o que o tempo já cuidara de consagrar11.

Assim, para os romanos, o direito de propriedade caracterizavase por sua plenitude, ou seja, a propriedade...

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