O trabalho escravo entre a arte e a realidade: a necessária superação da perspectiva hollywoodiana

AutorTiago Muniz Cavalcante
CargoProcurador do Trabalho. Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ? PUC/SP
Páginas49-66

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1. Esclarecimentos iniciais

O estudo que se inicia pretende fazer uma breve abordagem histórico--jurídica do trabalho escravo, com a inalidade de desmitiicar a concepção artística dessa forma de exploração do ser humano, ou pelo menos a ideia módica e às vezes falha que o público espectador absorve da arte, princi-palmente a cinematográica. Longe de esgotar o tema com a profundidade que se exige, analisaremos o abismo de verossimilhança entre a escravidão real e aquela retratada nas produções artísticas, com ênfase no cinema de largo alcance, apontando os efeitos negativos à erradicação do trabalho escravo causados por essa imprecisão artística.

Tendo em vista sua variação temporal e cultural, não entraremos na profunda e interminável discussão sobre o exato conceito de arte, entendendo-a, doravante, como uma atividade humana manifestada através das mais variadas linguagens1, inclusive a pintura e o cinema, com o objetivo de expressar emoções e ideias. Uma descrição das coisas de acordo com a percepção subjetiva do artista, conforme seus próprios sentimentos e da sociedade que o cerca.

Também nos afastaremos de uma abordagem psicológica ou sociológica da arte, descurando-se dos elementos cognoscitivos ou sociais que inluem na criação da obra e na sua recepção pelo público. Não obstante, o presente trabalho analisará, ainda que supericialmente, o alicerce socio-cultural do artista e do público, especiicamente as heranças ideológicas escravagistas da sociedade espectadora, um dos fatores que justiicam a visão acanhada da escravidão humana.

Devemos ressaltar ainda, neste breve introito, que não ignoramos a inluência do cinema na formação cultural da sociedade. Ao contrário, tanto reconhecemos sua relevância na difusão do conhecimento e no desenvolvimento do juízo crítico e político das pessoas, que o presente estudo centra-se exatamente no surgimento de um senso comum sob uma perspectiva artística.

Em verdade, a essência da apresentação restringe-se a uma tentativa de atacar, por meio de elementos argumentativos históricos e jurídicos, a concepção vulgar, habitual e geral de um trabalho escravo negro, cativo, violento e vetusto, chamando a atenção dos leitores para uma realidade inescusável: a escravidão é incolor, contemporânea e nem sempre violenta e cativa.

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2. A perspectiva artística

A arte não é ciência, não é um estudo. Nela, o artista despeja quantidades desmedidas das mais variadas emoções. Ainda que sua intenção seja a descrição exata de uma realidade, a obra acabada trará consigo uma forte carga de entusiasmo, imaginação e sentimentos. E não é diferente quando se trata do trabalho escravo.

Talvez mais do que ocorra em relação a outros fatos das mais diversas relações humanas, não é incomum que o artista reproduza uma imagem da escravidão carregada de preconceitos e estereótipos arraigados à herança cultural da classe dominante, pautada pela apropriação e pelo descaso com o oprimido.

O trabalho escravo retratado no cinema é invariavelmente negro, constantemente violento, sempre atado à restrição da liberdade e, mais grave, permanentemente lembrado como algo do passado, já superado. Não são raros os ilmes de grande produção e larga difusão capazes de proporcionar aos espectadores uma visão estreita desse modo de produção.

Dentre os mais recentes, ganha destaque o premiadíssimo 12 anos de escravidão, vencedor do Oscar 2014 de melhor ilme, um longa-metragem que conta a história de Solomon Northup, negro livre da Nova Iorque de meados do século XIX, sequestrado e vendido como escravo para fazendeiros da Louisiana, Sul dos Estados Unidos, onde passa doze anos privado de liberdade, longe da família e submetido aos mais diversos e cruéis maus-tratos.

Em uma das cenas mais fortes (talvez, o clímax emocional devastador do ilme), a jovem escrava negra Patsey é chicoteada por seu patrão, aman-te e capataz, o fazendeiro Edwin Epps. Aos olhos dos demais escravos e instigado por sua esposa, o temível patrão inicia o lagelo por motivos vis, lançando-lhe dezenas de golpes habilidosos numa crueldade bárbara e sem limite. Amarrada nua ao tronco, Patsey recebe sucessivas chicotadas que lhe arranham as costas, deixando-a em carne viva e com cicatrizes na pele.

Vários outros ilmes, sucessos de bilheteira, como Django Livre e Amistad, escritos e dirigidos por nomes consagrados do cinema, Quentin Tarantino e Steven Spielberg, igualmente, apresentam cenas densas, violentas, injuriosas. Corpos negros suados, rasgados, maltratados, castigados, acorrentados, vítimas de mercadores impiedosos.

A violência, aliás, é nota sempre presente nos ilmes que abordam o tema. Não são poucos os sucessos de bilheteria que retratam a escravidão como um circo trágico, sempre com a mesma perspectiva: patrões malvados,

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escravos negros, restrição da liberdade, violência física e castigos corporais. O inal feliz pode até não ser a regra, mas, na maioria das vezes, o público sai da sala do cinema aliviado, com a sensação de que aquilo já não mais existe, tratando-se de uma prática deplorável de um passado longínquo.

Muito embora, repita-se, não desconheçamos a importância do cinema na formação cultural da sociedade, contribuindo para a difusão do conhecimento e para o desenvolvimento do senso crítico e político das pessoas, por vezes e por motivos vários, é possível que os ilmes criem falsas premissas no público espectador.

Essa perspectiva hollywoodiana não advém, apenas, das películas cinematográicas. Outras linguagens artísticas também enaltecem sobre-maneira os elementos mais estereotipados da escravidão: a cor, a violência, o cárcere. A pintura é uma delas.

Jean Baptiste Debret, pintor francês radicado no Rio de Janeiro a partir de 1817 e que muito retratou a escravidão colonial, não foge à regra. Em um dos seus quadros mais famosos, Açoite Público, o artista retrata a cena imaginada pelo senso comum sempre que o assunto é escravidão: no pelourinho, um negro, amarrado e despido, sofrendo castigos de um insensível e inclemente capataz.

O próprio Debret encarregou-se de descrever, em detalhes, o sadismo2:

"O povo admira a habilidade do carrasco que, ao levantar para aplicar o golpe, arranha de leve a epiderme, deixando-a em carne viva depois da terceira chicotada. Conserva ele o braço levantado durante o intervalo de alguns segundos entre cada golpe, tanto para contá-los em voz alta como para economizar suas forças até o im da execução. Aliás, tem o cuidado de fabricar ele próprio seu instrumento, a im de facilitar essa tarefa. Trata-se com efeito de um cabo de chicote de um pé de comprimento com sete ou oito tiras de couro espessas e retorcidas. Esse instrumento contundente nunca deixa de produzir efeito, quando bem seco, mas ao se amolecer pelo sangue precisa o carrasco trocá-lo, mantendo para isso cinco ou seis ao seu lado, no chão.

O lado esquerdo da cena está ocupado por um grupo de condenados enileirados diante do pelourinho onde o carrasco acaba de distribuir 40 ou 50 chicotadas. É natural que entre os assistentes os mais atentos

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sejam os dois negros das extremidades do grupo, pois coube-lhes em geral a um ou outro substituir a vítima mandada para o pau da paciência, como se chama o pelourinho; por isso suas cabeças abaixam à medida que as chicotadas aumentam.

[...] Embora fortemente amarrado, como mostra o desenho, a dor dá-lhe energia suiciente para se erguer na ponta dos pés a cada chicotada recebida, movimento convulsivo tantas vezes repetidos que o suor da fricção do ventre e das coxas da vítima acaba polindo o pelourinho a certa altura. [...]."

Logo depois de desamarrado, é o negro castigado deitado no chão de cabeça para baixo a im de evitar-se a perda de sangue, e a chaga escondida sob a fralda da camisa escapa assim à picada dos enxames de moscas que logo se põem à procura desse horrível repasto.

A imagem reproduzida pelo artista corresponde a uma realidade, é inegável. A escravidão, de tão cruel e pungente, é capaz de proporcionar casos como os ielmente retratados por Debret e tantos outros artistas que se propuseram a fazê-lo.

No entanto, o que se questiona aqui, repita-se, são os efeitos desse trabalho escravo imagético que tomou as salas dos cinemas e as paredes dos museus. Pior, as nossas crianças aprendem uma história mal contada e veem nos livros didáticos apenas imagens semelhantes às mencionadas. Casa-grande, senzala, pelourinho, instrumentos de tortura e escravos negros.

Como passaremos a examinar aos pormenores, o trabalho escravo não possui apenas os atributos retratados nas artes. E não digo apenas em relação à escravidão contemporânea: o trabalho escravo colonial no Novo Mundo - tanto no Brasil como nos Estados Unidos, portanto - foi mais do que se retrata: foi vermelho, branco, preto e amarelo; católico, protestante e pagão3; violento e brando; cativo, servo e indigno.

3. A perspectiva real
3.1. O escravagista

A primeira característica sempre presente no que ousamos denominar de perspectiva hollywoodiana do trabalho escravo diz respeito à igura atroz e desumana do patrão. Trata-se de uma meia verdade.

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A grande maioria dos senhores de engenho e comerciantes de escravos eram personalidades respeitáveis, chefes de família, cidadãos "de bem". Muitos, inclusive, eram patriarcas generosos conhecidos por suas atitudes caridosas e humanitárias. No Sul dos Estados Unidos, por exemplo, John Cary, defensor do tráico e famoso por sua integridade, foi o fundador de uma sociedade conhecida como Associação dos Pobres4.

Eric Williams cita vários casos semelhantes5:

"Bryan Blundell de Liverpool, um dos...

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