O trabalho dos tradutores e tradutoras independentes na França e no Brasil: dimensões e ambivalências da autonomia

AutorCinara Lerrer Rosenfield, Olivier Giraud
CargoProfessora Titular do Departamento e da Pós-graduação de Sociologia da UFRGS/Pesquisador CNRS na UMR Lise - CNRS, Cnam, França
Páginas191-233
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n40p191/
191191 – 233
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O trabalho dos tradutores e
das tradutoras independentes na
França e no Brasil: dimensões e
ambivalências da autonomia
Cinara Lerrer Roseneld1
Olivier Giraud2
Resumo
O presente artigo apresenta os resultados da análise empírica da relação com a autonomia no tra-
balho de tradutores e tradutoras independentes em dois países: França e Brasil. O objetivo é reetir
se a autonomia e a independência dos tradutores e das tradutoras, para além de um real processo
de fragilização e precarização já apontado na literatura, poderia ser vista como uma mutação do
valor do trabalho nas sociedades capitalistas modernas. É feita uma discussão acerca do conceito
de autonomia, seguida da construção de uma grade de análise da autonomia no trabalho em torno
de três dimensões: 1) uma operacional; 2) outra identitária; 3) e, nalmente, uma dimensão social.
São apresentados os mercados de tradução e suas regulamentações prossionais nos dois países.
Em seguida, com base na grade desenvolvida, procede-se à análise de entrevistas em profundidade
realizadas no Brasil e na França junto aos prossionais da tradução. Os resultados são apresentados
ao nal do artigo e suscitam uma reexão sobre a autonomia nas condições contemporâneas de
exercício das atividades laborais em uma perspectiva inspirada no trabalho teórico de Axel Honneth.
Palavras-chave: Autonomia. Trabalho Independente. Trabalho de Tradução. Reconhecimento.
Justiça Social.
1 Professora Titular do Departamento e da Pós-graduação de Sociologia da UFRGS. Doutora pela Université
Paris Dauphine, estágio Pós-Doutoral Na Universidade Técnica de Lisboa - Laboratório SOCIUS. Pesquisadora
CNPq e coordenadora do grupo de pesquisa Trabalho e Justiça Social (JusT).
2 Pesquisador CNRS na UMR Lise - CNRS, Cnam, França. Doutor em Ciência Política pela IEP Grenoble, espe-
cialista de análise comparada da ação pública.
O trabalho dos tradutores e das tradutoras independentes na França e no Brasil: dimensões e ambivalências
da autonomia | Cinara Lerrer Roseneld; Olivier Giraud
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Introdução
O presente artigo tem sua origem nas discussões no âmbito do pro-
jeto ANR Zogris3, que se consagrou à investigação das zonas cinzentas do
trabalho e do emprego a partir da hipótese de um esfacelamento das normas
de emprego e a superação das categorias de análise herdadas para pensar
o trabalho e o emprego, notadamente as dicotomias rígidas que tão bem
cabiam à sociedade salarial: assalariado/independente, desempregado/tra-
balhador; trabalhador de concepção/execução. Emergiu, desse quadro, uma
pesquisa comparativa entre França e Brasil sobre o trabalho de tradução,
emblemático de um trabalho independente4 e, portanto, exemplar das evolu-
ções ambivalentes das relações sociais e institucionais do trabalho e emprego
que se reproduzem atualmente. Embora o trabalho de tradução tenha se
congurado historicamente como um trabalho mais independente que assa-
lariado, sua exemplaridade, nesse caso, tornou-se fecunda quando o autoem-
preendedorismo, a autogestão de si e da carreira se tornaram um modelo a
ser seguido e um valor compartilhado, passando a ser mesmo incentivado
através de políticas públicas, diante do quadro de desemprego, precariedade
e transitoriedade no universo do trabalho (GIRAUD et al. , 2014).
Propomos questionar as relações entre autonomia e trabalho a partir
de um setor particularmente distante do mundo industrial: o ofício da
tradução. Hoje, essa atividade altamente qualicada pertence ao universo
dos serviços. Herdeira da tradução literária, ela confrontou-se com proje-
tos diversos de racionalização desde que foi integrada ao funcionamento
capitalista nos mais diferentes setores de atividade. Do trabalho assalariado
clássico às novas formas de independência ou ao crowd-working5, das enco-
mendas de obras importantes com prazo estendido às atividades de tra-
dução on-line e em tempo real, das atividades abertas à concorrência
3 Pesquisa financiada pela Agence Nationale de Recherche (ANR), intitulada “Vers des zones grises de l’emploi?”
(2011-2015), sob a coordenação de Donna Kesselman (UPEC) e Christian Azaïs (LISE-CNAM).
4 Fizemos a escolha de denominar o trabalho autônomo, tal como é usualmente utilizado no Brasil, de trabalho
independente, seguindo assim a nomenclatura francesa, a fim de uniformizar a denominação nos dois países
e não confundir com o conceito teórico chave desse artigo, a saber, o conceito de autonomia.
5 O termo em inglês está relacionado à prestação de serviços entre pessoas que têm algum interesse em comum
ou podemcolaborarentre si. Na prática, significa integrar a economia de plataforma, na qual o cliente e o
fornecedor se encontram na internet.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 40 - Set./Dez. de 2018
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internacional aos mercados protegidos de tradutoras e tradutores juramen-
tados, é grande a amplitude de situações e regimes de trabalho nessa pros-
são. É precisamente essa diversidade que nos possibilita explorar congura-
ções contrastantes que permitem um melhor entendimento da autonomia
de trabalhadoras e trabalhadores. Também comparamos a situação dos e
das prossionais da tradução em dois países que se contrastam: a França e
o Brasil. Ambos apresentam uma relação com o trabalho assalariado, com
a regulação do trabalho em geral bastante discrepante, e mercados de tra-
dução igualmente contrastantes, o que torna a comparação entre esses dois
países particularmente produtiva (GIRAUD et al., 2014).
A variedade das situações de trabalho e das condições de emprego de
tradutoras e tradutores, bem como os contrastes institucionais, culturais ou
de mercado entre Brasil e França, permitem-nos associar os aspectos sócio-
-históricos, institucionais, e ligados às condições de mercado dos dois lados
do Atlântico, às condições concretas do exercício da atividade prossional.
Em termos teóricos, a noção de trabalho independente e seu corolá-
rio – a autonomia – nos remeteu a Axel Honneth, por seu êxito em alçar
o conceito de autonomia a uma dimensão social e intersubjetiva. O au-
tor logra superar uma concepção do trabalho como formador de sentido
individual (RENAULT, 2011), assim como suplantar as dimensões pes-
soal e identitária do trabalho tomadas isoladamente, para combiná-las em
uma teia de relações intersubjetivas cujo pano de fundo é a justiça social.
Honneth (2015) tem uma importante contribuição nesse sentido, pois:
1) historiciza a relação à autonomia, a qual nunca é única, rígida, mas
sempre construída em uma situação histórica especíca; 2) concebe a rela-
ção à autonomia como uma relação social, atrelada ao contexto social, às
aliações e aos pertencimentos, às solidariedades; 3) articula a autonomia
às questões de reconhecimento; 4) desenvolve uma concepção da relação
com o trabalho ligada à noção de justiça social.
A abordagem de Honneth em relação às questões de justiça expres-
sa a preocupação do autor com as possibilidades de os indivíduos serem
reconhecidos socialmente e disporem de liberdade social. Essa liberdade
vincular-se-ia de modo mais direto à meta da autonomia individual e
esta última seria o elemento essencial da justiça na modernidade. Há, no

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