Trabalho docente e dignidade: desafios da leitura constitucionalizada do direito do trabalho no contexto da dinâmica escolar pós-fordista

AutorAna Lúcia Francisco dos Santos Bottamedi
Páginas408-425

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À expressão mais genuína de imortalidade: Prof. Dr. Gabriela Neves Delgado.

"Ensinar é um exercício de imortalidade.

De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra.

O professor, assim, não morre jamais..."

(Rubem Alves)

1. Introdução

De acordo com pesquisa nacional realizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTE, em parceria com o instituto Data Popular1, mais da metade dos entrevistados considera "professor" a profissão mais importante para que o país tenha um bom futuro2, 98% concordam que essa atividade deveria ser mais valorizada3, porém, apenas 15% dos brasileiros gostariam de ser professores4.

Parte-se, portanto, de uma provocação de quem sai em busca de uma sombria realidade constatada de desvalorização da atividade docente, para a solução, que apesar de envolver políticas públicas, pode encontrar arranjos solidificados no Direito, fazendo adequações de um trabalhador numa regulamentação jurídica que possa lhe trazer dignidade.

Nesse viés, se insere a pesquisa histórica da escolarização de trabalhadores, seguindo-se para a formatação do conceito de professor e a conformação jurídica da categoria profissional diferenciada na qual se insere.

Em seguida, se traz o cenário da influência do modelo pós-fordista na gestão educacional, sobretudo sob o aspecto da intensificação e precarização do trabalho docente.

Por fim, apresenta-se o trabalho digno como diretriz da ordem justrabalhista constitucionalizada, fundado na dignidade da pessoa humana, que faz surgir a possibilidade de concretude dos direitos fundamentais na relação de trabalho. Trata-se, assim, a proposição de uma leitura constitucionalizada dos dispositivos celetistas, indicando o trabalhador como centro convergente dos direitos fundamentais.

2. Breve histórico da escolarização de trabalhadores

A trajetória dos trabalhadores do lar à fabrica, passando pela sala de aula, é relatada por Fernández Enguita, que afirma que desde as sociedades primitivas, sempre existiu algum processo preparatório para a integração nas relações sociais de produção, iniciando-se pelas tentativas educacionais dos gregos na antiguidade, transpassando um sistema de aprendizagem familiar própria, por intercâmbio ou por meio do internamento

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da infância marginal5 na Idade Média6, encontrando espaço na fala pouco sincera da burguesia em ascensão7 e nos interesses industriais, até chegar aos dias atuais8.

A partir do movimento de proliferação da indústria, passa-se a valorizar a educação escolar voltada para o doutrinamento e a disciplina9, "fazendo com que o ensino ou a instrução ficasse em um obscuro segundo plano, atrás da obsessão pela ordem, pela pontualidade e pela compostura". A escola passou a ser usada para treinar a população a viver os tempos da fábrica, arrancando a cultura dos imigrantes, aparecendo como a melhor solução para todas as resistências individuais e coletivas às novas condições de vida e trabalho e substituindo o chicote aos negros emancipados10.

De maneira concomitante ao movimento de criação de redes formais e informais de capacitação profissional e formação técnica e científica, também surgem as escolas de iniciativa popular, as sociedades operárias, os ateneus, as casas do povo e demais atividades educacionais advindas da classe trabalhadora, embora a historiografia clássica não apresente essa perspectiva com muita profundidade11.

Com o advento do taylorismo, a obstinação pela gestão do dinheiro e dos recursos humanos foi introduzida nas escolas, inclusive na organização do processo educacional12.

Não se nega, portanto, que a educação assume importância diferenciada a depender do momento histórico em que se encontra, mas de acordo com a sua trajetória não se constata que tenha considerado o homem como um fim em si mesmo.

Segundo o relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI - Relatório Delors, à educação compete a "nobre tarefa de suscitar em todos, segundo as tradições e as convicções de cada um, no pleno respeito do pluralismo, essa elevação do pensamento e do espírito até o universal e, inclusive, uma espécie de superação de si mesmo", porém, o imperativo da competição leva ao esquecimento de que a missão dos responsáveis é "fornecer a cada ser humano os meios para realizar todas as suas potencialidades"13.

Assim, o cumprimento de tal mister acaba ficando a cargo do professor, cujo termo teve origem no século XVI, significando "pessoa que professa a fé e a fidelidade dos princípios da instituição e se doa sacerdotalmente aos alunos", pois vinculado a um momento em que as escolas constituídas pela Igreja se abriram para ensinar ao povo a leitura das sagradas escrituras fazendo-se necessário convocar colaboradores leigos14.

3. Professor: o que é?

Rubem Alves, com seu jeito simples e poético de escrever afirmou em um dos seus livros que "o mestre nasce da exuberância da felicidade", por isso, "quando perguntados sobre sua profissão, os professores deveriam ter coragem para dar a absurda reposta: ‘Sou um pastor da alegria...’.15

No entanto, para o poeta o reconhecimento do exercício da mais nobre das profissões, só depende de uma condição: ensinar a alegria, para o Direito, não basta fazer sorrir, é necessário que se atenda a determinados requisitos para fazer jus ao enquadramento na categoria profissional dos professores.

Ocorre que ao passo que a Consolidação das Leis do Trabalho reserva seção própria para tratar do direito dos professores, não traz ao operador jurídico a definição do destinatário de tal regramento, buscando-se na doutrina que o conceito de professor que, conforme Alice Monteiro de Barros, é: o profissional habilitado ou autorizado, que através das atividades inerentes ao magistério, forma as gerações do país propiciando-lhes a educação básica e superior ou

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complementando-lhes a formação em curso de especialização, técnico, preparatório ou profissionalizante, realizados em estabelecimento de ensino público, particular, livre, ou ainda em outro estabelecimento que, embora não específico, propicie essa formação.16

João José Sady, em obra intitulada Direito do Trabalho do Professor, afirma que "professor é o trabalhador que exerce a atividade de transmitir conhecimentos. E todo aquele que exerce a atividade docente profissionalmente". O autor justifica esta última expressão afirmando que sob o enfoque da legislação trabalhista "o que interessa é o docente que exerce remuneradamente a função de ministrar conhecimentos, de forma não eventual e subordinada"17.

4. Categoria profissional diferenciada: regulamentação jurídica do trabalho docente

A regulamentação justrabalhista do professor, prevista nos arts. 317 a 324 da CLT, foi idealizada com a finalidade de proteger esse trabalhador sujeito a intenso esforço intelectual, físico e mental. Porém, não obstante a proteção dispensada pela lei, que inclui a limitação da jornada, abono ampliado de faltas por motivo de gala ou luto, garantia de remuneração no período de exames e recesso escolar, entre outras, pesquisas apontam que as condições de trabalho dos professores ainda são bastante precárias, seja pela baixa remuneração18, falta de incentivos à qualificação continuada ou até mesmo pelo alto índice de adoecimento19, motivo pelo qual a tutela desses trabalhadores assume ainda maior relevância20.

Além desses dispositivos, também se aplicam à classe docente, as normas coletivas e os demais dispositivos da CLT, desde que compatíveis com o regramento especial, ressalvados os professores concursados vinculados à administração direta21, os autônomos e os contratados pelo regime especial que vigorou até a Constituição Federal de 1988.

Gozar das prerrogativas da lei pode depender de algumas condições e, num primeiro momento, poder-se-ia até considerar a aplicação da norma constitucional de eficácia contida22 prevista no art. 5º, XIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que ao mesmo tempo que consolida a liberdade para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, como direito fundamental de primeira geração23, estabelece que a lei pode impor determinadas condições para a sua fruição, tal qual a qualificação profissional24.

No entanto, estaria a atividade docente enquadrada nessa previsão constitucional? O seu exercício dependeria de habilitação legal25 e registro no Ministério da Educação - MEC, a teor do disposto no art. 317 da CLT26?

A Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional - LDB, Lei n. 9.394/1995, estabelece que são considerados professores da educação escolar básica, qual seja, a composta pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio27, os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos...

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