Trabalho, consumo e educação: a formação de uma nova consciência no ambiente escolar

AutorLuciana Zacharias Gomes Ferreira Coelho
Páginas197-215

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Apresentação

O consumo consiste em importante mecanismo de satisfação das necessidades individuais e também como mola propulsora da economia, além de representar um reflexo cultural de valores e crenças adotados em determinados países a cada época. Inicialmente tomado como comportamento voltado para subsistência - mediante aquisição do necessário para manutenção da dignidade humana, fundamento essencial do ordenamento jurídico, como moradia, alimentação, vestuário, lazer etc. -, vem sofrendo uma transformação em termos de significado social. O estímulo ao consumo excessivo de bens e serviços muitas vezes supérfluos pode ter reflexos prejudiciais no que tange aos direitos fundamentais, na medida em que podem significar a degradação das condições de trabalho e do meio ambiente, bem como realçar questões mais profundas como a desigualdade social. Neste sentido, torna-se necessário trazer à baila a discussão sobre trabalho, consumo e degradação para o ambiente escolar, despertando nas crianças e adolescentes um novo olhar sobre o consumo responsável e o respeito aos direitos humanos desde os primeiros anos da educação fundamental. Demonstrar a possibilidade de coadunar o direito de acesso ao consumo a outros tantos como o direito ao trabalho digno, ao meio

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ambiente, à saúde e à justiça social pode contribuir para a construção de uma nação mais consciente e solidária.

1 Introdução

A educação encontra-se inserida dentre os mais básicos direitos da pessoa humana, sendo instrumento essencial para a formação e transformação do ser social. Seja ela informal, mediante aprendizagem de princípios e valores no seio familiar e na convivência com amigos e em sociedade, ou formal, ofertada no ambiente escolar institucionalizado, é premente educar para a cidadania. O preparo intelectual e emocional para o exercício da alteridade, o colocar-se no lugar do outro, bem como reconhecer a si próprio como agente questionador e modificador da realidade local e global consiste em importante mecanismo para a construção de uma nação mais justa e solidária, como preconiza nossa Carta Magna.

Para tanto, a Educação em Direitos Humanos (EDH) em todos os níveis de escolaridade propõe uma formação ética, política e crítica do indivíduo, devendo ser observadas três dimensões distintas: conhecimentos e habilidades para compreender os direitos humanos e os mecanismos existentes para a sua proteção; promoção de valores, atitudes e comportamentos voltados para o respeito aos direitos humanos; desencadeamento de ações práticas para a promoção, defesa e reparação de quaisquer violações aos direitos humanos1.

No entendimento de Estêvão2, a Educação em Direitos Humanos deve partir de referenciais inspirados em uma pedagogia crítica, capaz de oferecer maior visibilidade à problemática dos processos e práticas sociais distorcidos pela injustiça e por formas ocultas da racionalidade dominante. Assim, amplia-se o alcance da EDH, voltada para a investigação da relação entre a educação, a ideologia, a produção e o poder, gerando questionamentos sobre a forma como a reprodução social se produz na reprodução cultural. E acrescenta:

Do mesmo modo, a EDH, focada a partir de um posicionamento crítico, implica uma forma de aprendizagem que vai proporcionar aos estudantes poder e controle sobre a própria aprendizagem, favorecendo

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fórmulas e técnicas mais ativas e participativas de lidar com o conhecimento e, enfim, de apropriação do saber. [...]

Finalmente, a EDH, na medida em que contribui para a prevenção crítica contra as violações dos direitos humanos, deve ser igualmente, como já foi salientado, uma educação ética e política. Daí que os estudantes tenham a obrigação de fortalecer a habilidades e competências para que possam identificar, analisar e oferecer soluções a questões como violência, racismo, discriminação e intolerância; para que sejam capazes de denunciar as injustiças sociais, a opressão, a violência e a dominação, reconhecendo-as como campo de lutas intensas e incessantes das pessoas para que os seus direitos se tornem realidade3.

A fim de alcançar o mister de priorizar a formação de um senso de criticidade desde os primeiros anos escolares, os Parâmetros Curriculares Nacionais4(PCN) estabelecem diversos objetivos para o ensino fundamental no Brasil. Espera-se que os alunos sejam capazes de compreender a cidadania como participação social e política, adotando no cotidiano atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito; posicionar-se criticamente e de forma responsável perante diferentes situações sociais, valendo-se do diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas; conhecer características fundamentais do Brasil e suas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir a noção de identidade nacional e o sentimento de pertença ao país. Além disso, que possam perceber-se como integrantes e agentes transformadores do ambiente, questionando a realidade, formulando problemas e tratando de resolvê-los, valendo-se do pensamento lógico, da criatividade e da intuição.

A propositura de temas transversais nos PCNs, capazes de envolver pontos de vista diferenciados a partir das disciplinas ministradas em sala de aula, permite que o aluno desenvolva de forma global seu pensamento crítico, o que pode contribuir para a formação mais sólida de valores éticos e de cidadania. Os temas transversais compõem um conjunto de conteúdos educativos e eixos condutores da atividade escolar e, embora

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não estejam vinculados a nenhuma disciplina específica, são considerados comuns a todas elas, por expressarem conceitos e valores fundamentais à cidadania e possuírem grande relevância social. Saúde, meio ambiente, pluralidade cultural, trabalho e consumo são alguns destes temas a serem desenvolvidos junto ao corpo docente e discente.

Conhecer a origem e as contradições presentes nas relações de trabalho em vários momentos históricos; discutir a exploração e uso dos recursos naturais, a qualidade de vida e as condições de saúde dos trabalhadores e consumidores de produtos e serviços; compreender a influência da mídia no comportamento de consumo das pessoas; conscientizar-se sobre o acesso e utilização do crédito ofertado no mercado; todas estas questões podem ser levantadas e servir de ponto de partida para estudos aprofundados sobre diferentes aspectos atinentes à dignidade humana.

O consumo, além de mover a economia, também consiste em um reflexo de valores e crenças adotados em determinados países a cada época, e vem se transformando em termos de significado sociocultural. O estímulo ao consumo excessivo de bens e serviços desnecessários pode refletir negativamente sobre os direitos fundamentais, resultando em possível degradação das condições de trabalho e do meio ambiente, bem como aprofundamento da desigualdade social. A discussão sobre trabalho, consumo e degradação no ambiente escolar serve para despertar nas crianças e adolescentes um novo olhar sobre o consumo responsável e o respeito aos direitos humanos desde os primeiros anos da educação fundamental.

O presente artigo analisa a questão do trabalho, consumo e degradação do homem e da natureza no século XXI, procurando demonstrar a possibilidade de abordagem destas temáticas em diversas disciplinas do ensino fundamental. A interdisciplinaridade permite a integração dos conhecimentos obtidos em diferentes ramos de estudo, colaborando para que professores e alunos adotem conjuntamente novas estratégias de sensibilização quanto à importância do respeito aos direitos humanos e multiplicação destes conhecimentos junto ao meio social. A conjugação do direito de acesso ao consumo a outros tantos como o direito à dignidade no ambiente de trabalho, ao meio ambiente saudável, à ética e à justiça social pode consistir no diferencial que promoverá a efetiva construção de uma nação mais consciente e solidária, consoante preconizam nossos ditames constitucionais.

2 Trabalho, consumo e degradação no século XXI

As relações humanas e intersociais perpassam necessariamente pela análise das relações entre produção, trabalho e consumo na sociedade

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contemporânea. Por meio do trabalho, o ser humano produz e reproduz sua própria existência, organizando-se em sociedade para transformar a natureza e prover seu sustento. Em meio a uma sociedade cada vez mais complexa, surgiu a propriedade privada, a separação das pessoas em classes e uma divisão social do trabalho, que conduziu a profundas diferenças no modo de produção e consumo da população. Se por um lado as inovações do setor produtivo foram positivas no que concerne à descoberta de novos materiais e formas de ampliar quantitativa e qualitativamente a produção e o consumo, mediante desenvolvimento de tecnologias mais avançadas e modernas, por outro prisma observa-se um grande incremento da exploração de trabalhadores e recursos naturais, bem como a criação de falsas necessidades mercadológicas que precisariam ser supridas mediante um consumismo desenfreado de produtos e serviços não essenciais.

Durante as últimas décadas, as economias capitalistas desenvolvidas e em desenvolvimento vêm sofrendo profundas transformações. Previtali5 observa um intenso processo de reestruturação produtiva do capital por meio da integração e globalização dos mercados financeiros, fundamentada, por sua vez, no ideário político neoliberal de livre comércio e de uma menor presença do Estado enquanto poder regulador das relações entre capital e trabalho. Como resposta à crise de acumulação no final dos anos 1970, o capital iniciou, ao longo das décadas de 1980 e 1990, um amplo processo que envolveu a introdução de...

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