Traços da atividade de polícia administrativa no brasil colônia: o directorio como um dos elementos de dissolução da sociedade corporativa e patrimonial

AutorAdriano De Bortoli
CargoMestre e Doutorando em Direito pelo CPGD/UFSC. Professor de Direito Administrativo do CESUSC e da UNIVALI
Páginas286-293

Adriano De Bortoli1

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1 Introdução

Ao tratar do surgimento do Direito Administrativo, Hespanha traça três planos que possibilitaram a sua constituição como ramo autônomo da ciência jurídica no decorrer do século XVIII: a) o plano institucional, ao ocorrer a dissolução da organização corporativa da sociedade e a assunção das atividades de polícia pela coroa; b) o plano ideológico, ao haver a substituição da "realização da justiça" pela promoção do "interesse público" como objetivo da atividade de poder; c) o plano científico-doutrinal, ao surgir uma nova disciplina jurídico-processual, pautada pela executoriedade independentemente de decisão judicial, não sujeição de suas decisões a embargos, não obediência ao princípio do contraditório2.

Para os administrativistas brasileiros, em geral, o surgimento do Direito Administrativo está relacionado somente com o plano científico-doutrinal, com ênfase para a publicação da Loi de 28 do pluviose no ano VIII (1800) na França3 e para a decisão do "arrêt Blanco", em 8 de fevereiro de 18734. A partir dessas referências, o Direito Administrativo brasileiro é apresentado como uma recepção da doutrina francesa pós-revolução por meio da publicação dos primeiros tratados sobre a matéria ou da criação de cátedras nos cursos jurídicos5.

Esses fatos, entretanto, podem ser insuficientes para responder com segurança como se originaram os principais institutos e como se construíam as condições institucionais para a constituição do Direito Administrativo no Brasil.

A existência de uma linha de continuidade entre a estrutura administrativa do Antigo Regime e a dos Estados Liberais6 permite uma abordagem que fuja das referências "consagradas" e tente explorar outros caminhos.

Um desses caminhos é o da atividade de Polícia no período do Marquês de Pombal (1750-1777), no qual se percebe uma mudança na atuação da Coroa portuguesa por meio da produção legislativa de diversos alvarás com caráter regulatório e disciplinador das atividades dos súditos, voltado para uma maior racionalização das atividades do Estado7.

Para tanto, o trabalho tem por objetivo compreender os traços que compõem a atividade de Polícia Administrativa no período correspondente ao absolutismo esclarecido do Marquês de Pombal, comparando-se a estrutura administrativa da ordem patrimonialista da Coroa Portuguesa com um alvará específico daquela época: "Directorio, que se deve observar nas Povoaçoens dos Indios do Pará, e Maranhaõ", como uma tendência de assunção das atividades de polícia pela Coroa e, com isso, também, compreender o processo de construção do Direito Administrativo no Brasil.

2 Traços patrimonialistas da Administração Pública no Brasil colônia

O Estado do Antigo Regime em Portugal vai se caracterizar pela divisão das tarefas de governo, guerra, justiça e fazenda, realidade muito distante da separação entre Estado e Sociedade Civil e da divisão de poderes. A sua finalidade última deveria ser "garantir a justiça e a paz que era a inclusão de todos os interesses no mais alto valor do bem comum"8, modelo próprio do Estado Jurisdição.

A ordem estamental fundava-se na concepção de hierarquia e de dignidades que suportavam a idéia da Criação e que resultaram, no plano do direito, no reconhecimento de "estados" e de "privilégios" e na estruturação de um pluralismo jurídico:

O poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica (iurisdictio) dos corpos sociais. A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio própria, o funcionamento próprio de cada uma das partes do corpo), mas por um lado, a de representar externamente a unidade do corpo e, por outro, a de manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi); garantindo a cada qual o seu estatuto ('foro', 'direito', 'privilégio'); numa palavra, realizando justiça (iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi [a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu], D., I,1,1,10,1) 9.

Nesse quadro institucional o monarca assume o papel de protetor de seus vassalos e súditos, cuidando antes da administração do que da justiça e legislando, embora muito distante da realida-Page 287de da colônia10, para delimitar o exercício de poderes a cada membro da burocracia:

Quando o Estado português começa a instalar-se no Brasil já o fez sob a forma que será conhecida como Antigo Regime. Carrega ainda instituições formadas na Idade Média, de caráter feudal ou corporativo; nele sobrevivem distinções de nascimento, estamentos, ordens e corporações 11.

Assim como a Índia e a África eram consideradas como empresas para o Reino de Portugal12, o Brasil, por muito tempo não passará de "um negócio do rei, integrado na estrutura patrimonial13, gerida pela realeza, versada nas armas e cobiçosamente atenta ao comércio"14.

A primeira unidade administrativa do império português no Brasil foi a feitoria, que consistia num "mero galpão de madeira, cercado por uma paliçada de toras pontiagudas, tendo por mobília somente arcas e caixotes e onde, ao longo do ano inteiro, ficavam apenas três ou quatro homens"15. Seus funcionários tinham por função fiscalizar e guardar o pau-brasil extraído do território brasileiro.

Todavia, esta pequena estrutura não daria conta da empreitada colonizadora que já se fazia necessária para assegurar a posse e exploração do território brasileiro em proveito do comércio europeu, verdadeiro sentido da colonização tropical, alimentada por açúcar, tabaco, ouro e café pelos séculos seguintes16. A feitoria passa, então, ao status de agência de distribuição de terras, de cobrança de tributos, cumulando o poder administrativo com as funções bancárias e mantém-se até o surgimento das capitanias hereditárias.

2. 1 A Administração Pública nas Capitanias hereditárias

Pela pena real surge o primeiro "programa"17 colonizador do território brasileiro: as capitanias hereditárias. "A capitania seria um estabelecimento militar e econômico, voltado para a defesa externa e para o incremento de atividades capazes de estimular o comércio português"18.

O capitão recebia através da carta de doação território e atributos da autoridade soberana, exercendo seus poderes dentro dos limites da competência pública atribuída, quer pelas ordenações do reino, quer pelo conceito dos poderes centralizadores do soberano19.

Após, era entregue à capitania ou foral que estipulava os direitos, foros, tributos e coisas que deveriam ser pagos ao rei e ao donatário20. Com esses elementos se desenhava o quadro jurídico da Colônia, dividido entre o caráter público - subordinação às ordens do soberano - e seu caráter patrimonialista - decorrente dos privilégios dos donatários.

A constante vinculação dos poderes dos donatários às vontades do soberano permitiu aos historiadores concluírem que o rei dava a terra para o donatário administrá-la como província ao invés de propriedade privada21.

2. 2 A Administração Pública dos governos-gerais

As capitanias não conseguiram dar conta da defesa do negócio do rei das ameaças externas e internas e os dois núcleos que prosperaram, Pernambuco e São Vicente, serviram de modelo para a reforma do sistema. Por meio do Regimento de 17 de dezembro de 1548, institui-se o Governo-Geral que "não nasce da ruína da colônia, mas da esperança de seus lucros"22.

Essa nova estrutura administrativa da colônia, centralizada na figura do governador-geral e hierarquicamente subordinada ao soberano português, absorve as capitanias, revogando os direitos públicos dos capitães. Contudo, respeita o instituto patrimonial destes e retoma esses direitos somente por meio de compra, renúncia dos proprietários ou justo confisco23.

Os agentes coloniais são reduzidos a agentes do soberano. Ao Governador-Geral somam-se variadas atribuições que têm por finalidade reduzir o espaço econômico ao espaço administrativo24. O Governador-Geral governava, mas não podia fazê-lo sozinho, ao seu lado faziam uso de atribuições autônomas o ouvidor-mor (justiça), o provedor-mor (fazenda) e as juntas gerais (assessoria institucionalizada).

Com essas medidas completava-se a obra de incorporação e absorção dos assuntos públicos da colônia à autoridade real, por meio de seus agentes diretos. Era a unidade administrativa, judicial e financeira, assentada sobre a disciplina da atividade econômica 25.

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Para combater o poder sem "rédeas" do fazendeiro ou do senhor de engenho e dominar as populações dispersas implantam-se os municípios, aumentando-se a malha burocrática a serviço do estamento26 que geria a monarquia centralizada do século XVI. O esquema da administração pública na colônia estava completo: rei, governador-geral (vice-rei), capitães (capitanias) e as autoridades municipais. Autoridades estas servidas por agentes públicos e agentes por delegação. O funcionário será apenas a sombra real, não tendo o cargo como um negócio a explorar. Porém a sombra, como adverte o Padre Vieira, citado por Faoro, quando está no zênite, é muito pequenina, e toda se vos mete debaixo dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no ocaso, essa mesma sombra se estende tão imensamente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim nem mais nem menos os que pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o sol está no zênite, não só se metem estas sombras debaixo dos pés do príncipe...

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