Titularidade patrimonial na empresa frente à ordem civil constitucional e o papel empresarial para a dignidade humana: primeiras anotações

AutorMarcia Carla Pereira Ribeiro; Guilherme Borba Vianna
Páginas71-93

Marcia Carla Pereira Ribeiro. Mestra e Doutora em Direito. Professora titular de Direito Societário da PUCPR. Professora adjunta de Direito Comercial da UFPR, graduação, mestrado e doutorado. Procuradora do Estado do Paraná.

Guilherme Borba Vianna. Mestre em Direito Econômico e Social. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Direito Societário. Advogado.

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Si quid universitati debetur, singulis non debetur, nec quod debet universitas, singuli debent. (Ulpiano. Dig. 3,4,71) 1

1 A personalidade jurídica societária frente à nova ordem civil-constitucional: o papel central da pessoa humana

A pessoa natural (o ser humano) é o centro do ordenamento jurídico de vários países, de modo que se torna natural a tutela legislativa voltar-se para ela, corroborando para o papel de destaque do princípio da dignidade da pessoa humana nas ordens jurídicas, inclusive na brasileira.

No entanto, é da natureza do homem se associar (para as mais variadas finalidades) e o Direito não se furta de programar regras e princípios para regular esse fenômeno social que pode surgir revestindo-se de personalidade jurídica.2

Sob um viés positivo (art. 45, CC), a pessoa jurídica surge com o registro do contrato ou do estatuto social nos órgãos registrais (v.g. Juntas Comerciais, Cartórios de Registro de Pessoas Jurídicas etc.), no campo empresarial, associase à organização societária (BORGES, 1975). Do reconhecimento legislativo extrai-se a lição de Vicente Ráo com respeito à consagração da aptidão tanto das pessoas físicas, como também outorgada às pessoas jurídicas, para serem sujeitos de direitos (RÁO, 1999).

Para Gonçalves Neto (2004) o mais relevante é sua aptidão a dar nascimento a uma entidade autônoma que tem por função facilitar a prática de atos negociais.

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Com efeito, toda pessoa natural é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. 1º, CC), da mesma forma que possui personalidade civil, a qual, para as pessoas naturais, começa com o nascimento com vida (não obstante existirem os direitos do nascituro desde a concepção) e vai até a sua morte. Os direitos de personalidade atribuídos à pessoa natural (v.g., direito à integridade física, à integridade intelectual, integridade moral) são absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, indisponíveis, vitalícios e necessários (LOTUFO, 2004), encontrando previsão nos artigos 11 a 21 do Código Civil.

Por outro lado, o mesmo Código Civil que tutela os direitos de personalidade da pessoa natural, estendeu os direitos de personalidade à pessoa jurídica, conforme se depreende do art. 52 (“Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”). Por certo, nem todos os direitos personalíssimos da pessoa natural se aplicam à pessoa jurídica, já que, v.g., a pessoa jurídica não possui integridade física (direito à vida, ao corpo, aos alimentos etc.).

Todavia, outros se aplicam, como os que dizem

[...] respeito à integridade intelectual, como os direitos autorais (marca), artísticos, científicos e literários, e também a aplicação dos mesmos no que diz respeito à integridade moral3, como o segredo profissional da pessoa jurídica, sua identidade (nome e marca) e, por conseguinte, o seu direito à imagem (ESTEVES, 2007, p. 195).

Expressão desse reconhecimento é o teor da Súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça, a qual reconhece que a pessoa jurídica pode sofrer dano moral4, desde que as lesões atinentes repercutam no desenvolvimento de suas atividades econômicas, as quais são um dos instrumentos de promoção dos valores sociais e não-patrimoniais.

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Logo, a atribuição patrimonial – especialmente dos bens de produção – reconhecida pelo ordenamento jurídico à pessoa jurídica, da mesma forma como se opera em relação à pessoa física, tem por fundamento o cumprimento de uma função pelo seu titular, de forma a contribuir para a efetivação da dignidade da pessoa humana. E para a obtenção dos melhores resultados da ordem do coletivo, também a pessoa jurídica precisa ser preservada e mantida como fonte produtora de desenvolvimento, por meio do exercício da atividade empresarial.

No esforço de preservação do ente coletivo, o entendimento no direito italiano também se direciona ao reconhecimento de alguns atributos imateriais da pessoa jurídica.

A personalidade jurídica societária tem significativa importância para o desenvolvimento da sociedade humana nos últimos dois séculos, podendo se afirmar que a civilização contemporânea não teria atingido seu nível de desenvolvimento social e econômico sem que o Estado houvesse estabelecido a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas em relação aos sócios, por meio da aceitação da personalidade jurídica societária.

Por outro lado, também não se pode negar que os problemas decorrentes da personalidade jurídica sempre caminharam paralelamente com o seu desenvolvimento, datando da segunda metade do século XIX as polêmicas surgidas “na conferência de Nuremberg e no Senado Italiano, quando elaboraram os Códigos comerciais da Alemanha e da Itália” (MENDONÇA, 1954, p. 77).

No entanto, os benefícios e os problemas da personalização societária evoluíram no decorrer dos séculos, sendo possível analisá-los sob uma nova exegese, consentânea com a evolução do Direito Empresarial e da própria empresa, esta como expressão maior da utilização da personalidade jurídica em benefício de toda a coletividade que se relaciona direta ou indiretamente com a sua atividade.

O Direito Empresarial no Brasil ainda reclama profundas mudanças legislativas e doutrinárias neste tema, todavia, o seu reconhecimento e importância para a sociedade também evoluíram paralelamente ao capitalismo moderno, ainda que a passos lentos em relação ao crescimento da economia (WALD, 2003).

Com efeito, no início da comercialização em massa (fruto da revolução industrial e da produção em série), a personalização societária foi importante para atrair investimentos no setor produtivo e criar uma nova forma de incentivo para a atividade econômica. Atração associada à atribuição patrimonial específica do ente coletivo, em relação aos sócios, e a conseqüente possibilidade de limitação da responsabilidade patrimonial dos últimos pelas obrigações societárias.

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Com o passar dos séculos, “sem qualquer sinal de retrocesso e com o avanço da tecnologia, os investimentos se fizeram cada vez mais necessários e vultosos, estimulando os empresários e agentes econômicos em geral a constituírem sociedades para a busca dos fins comuns” (RIBEIRO, 2002, p. 88) e repercussões extra-societárias.

O que se alterou com o passar do tempo, na verdade, foi a necessidade cada vez maior de se preservar o risco dos empreendedores, pois, conforme Ribeiro (2002, p. 88), “quanto maior o investimento e maior o volume de negócios jurídicos realizados, [...], maior o interesse em se buscar, para a organização dos agentes econômicos, limitação dos riscos a que estariam sujeitos em razão dos negócios”.

E a personalidade jurídica societária foi a fórmula encontrada, na sociedade capitalista (desde o século XIX até o século XXI), para amenizar os riscos dos investimentos no setor produtivo e propiciar que a livre-iniciativa empresarial cumpra sua função, como veículo de geração de empregos e de riquezas para o país. Como relata Catelano (1995, p. 51), com base na formação dos grupos de sociedade e crescente especialização dos objetos societários

[...] a pessoa jurídica (ou melhor, o benefício da responsabilidade limitada) assume a função não mais apenas de eximir o patrimônio pessoal dos riscos da empresa, mas também de eximir o capital investido em algum ramo ou setor dos riscos relativos a cada um dos outros ramos ou setores.

No que toca à importância da personalidade jurídica societária no capitalismo contemporâneo há de se destacar o papel catalisador das sociedades por ações (RIPERT, 1947).

Por outro lado, a importância da personalidade jurídica societária não é a mesma no transcurso destes últimos séculos (existindo um longo caminho entre as formulações de Savigny, passando por José Lamartine Corrêa de Oliveira Lyra e Rubens Requião, até chegar aos estudos realizados neste século XXI), devendo ser analisada e interpretada, hodiernamente, tanto sob a ótica dos fundamentos e princípios estabelecidos na Constituição de 1988 e no Código Civil de 2002, como também pela realidade econômica e social que leva algumas pessoas jurídicas, geralmente multinacionais, a tratar em pé de igualdade (ou até de superioridade) com os Estados.

A atividade econômica encontra seu tripé de sustentação no art. 170 da Constituição da República, para o qual a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, com a finalidade de assegurar a todos existência digna5, conforme os ditames da justiça social.

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Ou seja, não se pode assegurar uma livre-iniciativa empresarial senão por meio da coexistência com os demais fundamentos e princípios gerais da atividade econômica. E é a pessoa humana (base do sistema jurídico na maior parte dos países ocidentais) quem está por detrás da pessoa jurídica, sendo, por isso mesmo, a maior beneficiária da sua criação e manutenção.

Em razão da pessoa humana se privilegia a personalidade jurídica societária, também em seu benefício se aplica a própria desconsideração da personalidade jurídica.

Neste sentido, Verçosa (1995, p. 51), parafraseando Tullio Ascarelli, afirma que a personalidade jurídica não corresponde a um dado normativo...

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