Tipificação criminal de lesões bucomaxilo-faciais

AutorMário Marques Fernandes
Páginas229-247

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Introdução

Preliminarmente, cumpre esclarecer que a prática pericial em âmbito criminal dos Cirurgiões-dentistas é prevista na Lei nQ 5.081/66, mais especificamente no seu Art. 6Q, o qual versa sobre as competências destes profissionais, no seu inciso IV, in verbis: "proceder à perícia odontolegal em fôro civil, criminal, trabalhista e em sede administrativa" (Brasil, 1966). Assim, estarão agindo secundum legem os profissionais da Odontologia ao avaliar agressões que acometem o complexo estomatognático, buscando fornecer subsídio para o futuro enquadramento penal pelas autoridades.

Alterações acometidas no corpo das vítimas decorrentes de uma ação suposta-mente criminosa e que envolvem violência física são encaminhadas pela autoridade policial ou judiciária ao serviço competente, para que este possa produzir um documento oficial denominado laudo. O laudo é um registro organizado com base científica e, na estrutura judicial, compõe a prova, a qual deve convencer o juiz durante o processo, com o intuito de decidir o processo penal (Mirabete, 2003).

De interesse ao presente tema, a cabeça corresponde à região do corpo mais frequentemente comprometida pelas lesões corporais, atingindo um percentual de 40%. A face por ser pouco protegida, é uma das áreas mais acometidas pelos traumatismos, levando-se em conta, ainda, a complexidade anatômica, funcional e estética da região, e que esta desempenha um importante papel no relacionamento intra e interpessoal (Fávero, 1975).

Ainda nesse contexto, o exame pericial realizado em pessoas vivas ou mortas, ou em objetos, torna-se de extrema importância para a justiça. No caso de exames no vivo, os quais somam mais de 90% dos exames realizados, o vestígio gerado de uma ação de pequeno porte, como uma bofetada, necessita ser examinado, registrado e encaminhado para a autoridade policial, a fim de comprovar a relação

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entre o histórico apresentado e o traumatismo observado pelo perito, definindo o nexo de causalidade (Carvalho, 2017).

Além da comprovação da existência de lesões, da verificação do nexo causal e das repercussões na vida do indivíduo agredido, cabe à perícia odontológica o esclarecimento sobre a sua gravidade, permitindo assim as autoridades, principalmente nos âmbitos policial e judicial, com tais dados e elementos técnicos o seu enquadramento legal. A abordagem prevista para o perito Cirurgião-den-tista (muitas vezes ocupante do cargo de Odontolegista nos Institutos Médicos Legais — IMLs) ou pelos assistentes técnicos contratados ou atuando de ofício pelo Ministério Público, remete às agressões físicas que envolvem o complexo bucomaxilofacial, bem como outras lesões específicas fora da cabeça e do pescoço também podem ser analisadas pela Odontologia, como as impressões e/ou lacerações deixadas por dentes humanos ou não.

Existem ainda poucos estudos disponíveis que se aprofundem na avaliação dos danos no complexo maxilomandibular, especialmente quando envolvem lesões dentárias e, como este assunto até o presente momento não está pacificado, há ainda várias formas de interpretação, necessitando, ad cautelam, um amplo debate sobre esses aspectos. Evidencia-se a necessidade de validação de metodologias para enquadramento criminal de prejuízos aos elementos dentais na população brasileira. Vale ressaltar que cabe aos magistrados a tipificação penal definitiva, sendo função do perito Cirurgião-dentista propiciar elementos valiosos para a fundamentação da conclusão, esclarecendo todas as questões relativas quando as lesões situarem-se no aparelho estomatognático.

Com as justificativas apresentadas, o presente capítulo tem o objetivo de evidenciar e debater a atuação da perícia odontológica no enquadramento penal das lesões corporais, à luz do Art. 129 do Código Penal.

Breves considerações sobre as funções mastigatória, fonética e estética desempenhada pelos elementos dentais

FUNÇÃO MASTIGATÓRIA

Na mastigação se dão a apreensão, o corte e a trituração dos alimentos. Não é específica apenas dos dentes, sendo necessária também a participação dos lábios, da língua, dos músculos da face, principalmente dos músculos mastigatórios, da articulação temporomandibular e dos maxilares, assim como vascularização e inervação adequadas.

Os dentes propiciam ao organismo a melhor assimilação dos alimentos mediante uma mastigação adequada, a qual é resultante da ação desenvolvida pelo conjunto de estruturas do complexo craniomandibular. Abre o caminho para

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uma melhor digestão mediante a fragmentação dos alimentos e sua mistura com a saliva, formando o bolo alimentar, que pode ser então deglutido, evitando, inclusive, engasgar-se com pedaços de alimentos mal triturados. Para a deglutição fisiológica, os dentes servem de apoio à musculatura elevadora e abaixadora da mandíbula, em harmonia com os músculos do assoalho da cavidade oral, a língua, a bochecha e o selamento labial, determinado pelo encontro dos dentes superiores com os inferiores em posição de relação cêntrica das estruturas articulares, que ocorre, em média, de 1.800 a 2.500 vezes a cada dia (Moreira e Machado, 2011).

FUNÇÃO FONÉTICA

Contribui para a emissão de sons e a articulação das palavras. Na divisão das consoantes existe o grupo das oclusivas linguodentais — "T", "D", "N" (ponta da língua e arcada dental superior). Participa, ainda, como item importante e integrante da socialização e da imagem do indivíduo, sendo componente indi-vidualizador pelas características dos sons emitidos (Moreira e Machado, 2011).

FUNÇÃO ESTÉTICA

Consiste na característica individual mais óbvia e acessível às outras pessoas. Constitui um fator de indubitável relevância no âmbito da eficiência social, permitindo ao indivíduo ampliar a própria consciência e agir utilitaristicamente no campo das relações humanas. Os elementos dentais anteriores superiores (incisivos centrais, laterais e caninos) situam-se na região mais evidente do sorriso de uma pessoa, devido a seu posicionamento anatômico, e auxiliam a sustentação das partes moles da face, colaborando, portanto, com a estética facial (Silva, 1999).

Crimes contra a pessoa e as lesões corporais

Animus adjuvanti, sugere-se estudar o tema abordado neste capítulo observando os dois primeiros capítulos do Título I do Código Penal, o qual versa sobre os crimes contra a pessoa, analisando seu primeiro capítulo (crimes contra a vida), composto pelos Arts. 121 a 128. A seguir, o segundo capítulo, dedicado às lesões corporais, sendo composto por um único artigo, o 129, o qual apresenta 12 parágrafos, contendo diversas modalidades de lesões corporais. Imperativo o conhecimento do conteúdo desses parágrafos e incisos, devendo preocupar-se para que o laudo ateste todo e qualquer aspecto previsto nesses dispositivos legais. O trabalho do perito Cirurgião-dentista é decisivo para que o desfecho da ação penal esteja o mais próximo possível da realidade dos fatos. Relatórios abreviados ou mal constituídos tanto podem levar à condenação um inocente quanto absolver um criminoso. Logo, é essencial que o profissional seja detalhista na descrição do

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que verificou e que tenha pleno conhecimento sobre o crime a ser esclarecido. A fim de evitar tautologia, optamos por não reproduzir na sequência deste texto o Art. 129 do Código Penal na íntegra, sendo que orientamos o leitor a procurar o referido dispositivo legal em livros ou por meios eletrônicos.

Percebe-se que a legislação estabelece diferentes níveis de gravidade para o crime de lesões corporais. A forma prevista no caput do Art. 129 é conhecida como lesão corporal leve. Se a lesão gerar alguma das consequências arroladas nos quatro incisos do § t° do Art. 129, a lesão é considerada grave. Há casos em que somente é possível identificar a gravidade da lesão após certo lapso de tempo, como ocorre na lesão corporal considerada grave por gerar incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias (Art. 129, § 1ª, I, do CP). Para esses casos, o Código de Processo Penal prevê a realização do exame de corpo de delito complementar, que deverá ser feito logo que decorra o prazo de 30 dias, contado da data do crime (Art. 168, § 2Q do Código de Processo Penal). Se a consequência observável for alguma daquelas arroladas nos cinco incisos do § 2Q do Art. 129, a lesão corporal é considerada gravíssima. Para a lesão corporal seguida de morte há um dispositivo específico que é o § 3Q do Art. 129. Cabe ao perito consignar no laudo toda circunstância prevista na lei capaz de influenciar o enquadramento da lesão sofrida pela vítima (Carvalho, 2017).

Destaca-se que, ao término da investigação, o Delegado de Polícia concluirá o inquérito policial e formalizará o indiciamento do investigado, atribuindo-lhe a prática do crime de lesão corporal conforme a depender do que foi constatado no exame de corpo de delito. Depois, os autos do inquérito policial são encaminhados ao Ministério Público, o qual pode efetuar outras diligências ou oferecer denúncia com base nos elementos informativos coletados na investigação. A sentença a ser prolatada pelo juiz que preside o processo é que dirá se as provas produzidas realmente confirmaram a existência das lesões e sua respectiva gravidade, conforme já comentamos acima.

Aspectos básicos a serem considerados na avaliação de lesões corporais

Do ponto de vista médico-legal ou odontolegal, entende-se por lesão toda alteração anatômica ou funcional ocasionada por agente traumatizante externo ou interno. Já a lesão corporal, por sua vez, é "toda e qualquer ofensa ocasionada à normalidade funcional do corpo ou...

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