Tinha uma grippe no meio da cidade

AutorSaulo de Araújo Lemos
CargoProfessor assistente de Literatura Portuguesa na Universidade Estadual do Ceará e doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal do Ceará
Páginas18-38
doi:10.5007/1984-784X.2015v15n23p18
18
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 15, n. 23, p. 18-38, 2015|
TINHA UMA GRIPPE NO MEIO DA CIDADE
Saulo de Araújo Lemos
UECE/UFC/FUNCAP
RESUMO: O mez da grippe, de Valêncio Xavier (1933-2008), é uma obra inovadora que cria um
espaço e uma ânsia narrativa a partir de imagens e textos extraídos diretamente dos meios de co-
municação da época, de fontes diversas, e de inserções ficcionais de texto escrito pelo autor-organi-
zador. O tema que reúne os elementos dessa colagem é o episódio da epidemia de gripe espanhola
que acometeu Curitiba em 1918, ano em que se encerrava tanto a Guerra Mundial como a belle
époque europeia. Neste artigo, pretende-se discutir de que modo a forma literária é móvel em sua
aparente fixação, e como isso produz relações inusitadas entre o homem e seus outros (o animal, o
vegetal, o vírus e ele mesmo); assim, entende-se que a civilização é alimentada pela barbárie que
ameaça destruí-la, e nisso há uma espécie de música.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura comparada. Movimento. Vírus.
THERE WAS INFLUENZA IN THE MIDDLE OF THE WAY
ABSTRACT:
O mez da grippe [The month of the influenza], by the Brazilian writer Valêncio Xavier
(1933-2008) is an innovative work which creates a space and a narrative anxiety from images and
texts directly extracted from the media of that times, from varied sources and from fictional insertions
of text by the author-organizer. The theme that assembles the elements of that collage is the episode
of the epidemic of Spanish Flu which undertook the Brazilian city of Curitiba in 1918, the same year
of the end of the First World War and the European belle époque. In this paper, it's aimed to discuss
how literary form is movable, even seeming to be fixed, and how it produces unusual relations be-
tween man and his others (animal, vegetable, virus, himself); thus, one can say that civilization is
fed by the barbarity which menaces to destroy it, and that comprehends a kind of music.
KEYWORDS: Comparative literature. Movement. Virus.
Saulo de Araújo Lemos é professor assistente de Literatura Portuguesa na Universidade Estadual do
Ceará e doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal do Ceará.
doi:10.5007/1984-784X.2015v15n23p18
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|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 15, n. 23, p. 18-38, 2015|
TINHA UMA GRIPPE NO MEIO DA CIDADE
Saulo de Araújo Lemos
Eles conversam e conversam, e muito disso passa despercebido pela maio-
ria dos outros, que em geral também estão conversando. Nesse quadro de que
o plano ocasionalmente descola, escorrega, eles conversam às vezes sobre
como gostam quando as palavras, levadas do ouvido ao papel, ficam próximas
umas das outras. Veem, nesse encontro de disparidades, alegria encanto, no-
vidade, entretenimento. Parecem esquecer das asperezas e complicações que
se arqueiam quando se misturam sons e retina, palavras e traços, figuras de
cor e figuras de frase. Olhos e ouvidos acompanham aqueles a que nos refe-
rimos como “nós”, os ditos humanos, desde um tempo longo, transbordado
daquilo que chamamos de memória e talvez não seja mais que a impaciência
nossa de cada dia. As texturas de voz e os rabiscos de rasurar o mundo, eles
supõem (“eles” não passa de um nome desconfiado para “nós”), tudo isso vem
da mesma medida do antes de que vêm olhos e ouvidos.
Quem dirá por que olhos e ouvidos parecem se misturar, mas não palavras
e rabiscos? Eles, nós, alguém pode pensar e/ou dizer, a qualquer momento,
que, em trilhas que passem dos rabiscos de desenho e às palavras, ou em ru-
mo contrário, rabiscos e palavras ameaçam, como quem promete algo, deixar
de ser o que são (ou seriam); nesses mesmos trajetos entre traçados e sons
sistemáticos (toda figura talvez tenha perto um espaço em branco para uma
legenda mental), as palavras coladas em texto anunciam sussurrando: po-
demos cair ou subir, resvalar ou afundar, sem avisar vocês, sem avisar a eles,
sem nos avisar. Porque, quando vocês menos esperam, o animal que vocês
carregam os trapaceia e, à maneira dele, domestica-os: suja e contamina os
sentidos, esses bichos tão acostumados a ser domésticos, a ser bichos, a ser.
Mudando aparentemente de assunto, é possível pensar, num projeto de
convívio com a perplexidade da obra de arte, um projeto que não a atenue,
mas a mantenha como aresta, como alavanca para o selvagem, é possível pen-
sar o não-doméstico, pensar algumas proposições para a produção literária de
Valêncio Xavier Niculitcheff (1933-2008). Em literatura, Valêncio publicou,

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